Artesão da minha própria felicidade
Para uma engenharia de produção substantiva
José Augusto Nogueira Kamel
Para
uma Engenharia de Produção Substantiva
Conhecer é tornar humano.
(Max Scheler)
Esta tese tem por finalidade refletir sobre um homem dialógico acerca
do binômio tecnologia e desenvolvimento social a partir dos valores da
cultura, vetores fundamentais ao exercício de uma engenharia de produção
que entenda o desenvolvimento do Brasil, não perseguindo o padrão
impositivo do progresso científico e tecnológico internacional,
mas que considere a identidade cultural brasileira critério sine qua
non desde sua formulação como ciência substantiva.
O título da tese Para uma Engenharia de Produção
Substantiva traz a tentativa de reconceituar a engenharia de produção,
para além de um conhecimento estritamente técnico, sendo denominado
engenharia de produção substantiva, com o objetivo de incluir
a tecnologia, o desenvolvimento social e os valores culturais na amplitude do
inquirir-se engenheiral. A questão não é de uma engenharia
de produção substantiva como um conhecimento estático e
acabado, mas sim como construção necessária e carente da
vinculação de sentido ético como afazer, dever-ser, essencial
e intencional. O título do livro foi garimpado no livro A Pessoa
e o Mundo, do Romano Guardini. A banca sublinhou a idéia, tive
momentos de dúvida e desconforto, mas nenhum capaz de dissuadir a palavra
felicidade. Eu não relutei mais, ter no título um palavrão,
pois busca e amor estão interligados nesta difícil missão
quixotesca, nesta simplicidade cotidiana no afã contemplativo do encontro,
no aprendizado triste do desencontro, a paciência e a reconstrução
nas entrelinhas da alegria e do amor na vida. É uma visão afirmativa
da pessoalidade.
Um dos objetivos da tese é cumprir o ciclo da redução como
ciência substantiva, elaborando criticamente uma síntese dinâmica
e não estática da redução engenheiral comprometida
com a sociedade. Mais que comparar a redução sociológica
de Guerreiro Ramos com uma possível redução engenheiral,
o que o próprio autor explicita e aponta numa possível redução
tecnológica, este estudo visa estabelecer vínculo do pensamento
científico substantivo: tecnologia e desenvolvimento social a partir
dos valores pessoais e éticos.
Pensar tecnologia sem desenvolvimento social não é atitude de
cientista que reduz, que vai à essência. Não tem a dimensão
duma ciência que é a partir do Outro. A autonomia epistemológica
é condição de possibilidade para podermos nos apoiar sobre
toda a herança científica daquilo que é universalmente
humano, para podermos nos confrontar com os problemas enraizados em nossa história
como povo e nação. A autonomia tecnológica é necessária,
porém ainda não é suficiente para formular e estruturar
os problemas a serem enfrentados, investigados e solucionados. É preciso
investigar na vocação cultural características dos valores
pessoais e éticos dentro da comunidade: cooperação, solidariedade,
diálogo. Aventamos uma análise sobre a possibilidade de organização
substantiva a partir de valores humanos e sobre os limites que os objetivos
que uma organização pode almejar a partir destes critérios.
Num tempo em que o Governo Federal privilegia os programas de excelência
nas universidades, em que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia
estão dissociados e direcionados para uma perspectiva de exclusão
social (tendo como uma das formas o desemprego em massa), é tarefa fundamental
pensar e pesquisar as conseqüências dessas exclusões e possíveis
reinserções e objetivar num plano maior, refletir sobre o desenvolvimento
substantivo de uma política de ciência e tecnologia para a engenharia
de produção e para o povo brasileiro.
A tese está estruturada em cinco capítulos. O primeiro capítulo,
Memória, é homenagem aos rebeldes amorosos. Memória como
condição de possibilidade de abertura ao diálogo. Diálogo
entre gerações para celebrar o enraizamento nas nossas tradições,
na nossa história e assim, sem a pretensão de se tornar hegemônico,
sobreviver como rebeldia amorosa, como ritual estranho e desajuizado para os
paladinos modernos. Este capítulo expõe a necessidade
de elo, diálogo geracional para o desenvolvimento do humano. A celebração
de uma cadeia eterna. Sim, sigo porque cheguei. Cheguei para seguir. Páscoa.
Sentir. Amar. Dialogar.
O segundo capítulo é contextualização da proposta
teórica da tese. Introduz as reflexões de Alberto Guerreiro Ramos
em seu livro Introdução à Cultura, que perpassa toda a
tese. Aborda de maneira genérica a possibilidade de uma filosofia autêntica
na América Latina. Passa pela caracterização da modernidade
moderna, do ocidente anglo-americano, que se planetariza e oprime na virada
do século XX. Pensa com isto, referir o Brasil com uma fome, um modo
de modernidade autêntica. Este capítulo faz-se necessário
para apontar que Alberto Guerreiro Ramos, marco teórico da tese, não
é o primeiro pensador a inaugurar a possibilidade de filosofar na América
Latina e especificamente no Brasil. Não é o único. Ele
faz parte de uma tradição de pensamento que crê num Brasil
capaz de expressar-se na modernidade num modo autêntico de existência.
O terceiro capítulo convida os leitores à delimitação
do estudo e ao diagnóstico da dicotomia moderna entre Valor e Fato como
uma tensão entre o afazer e a contemplação. Apresenta a
importância e a influência do pensamento de Guerreiro Ramos no autor
desta tese. Passa em resenha a necessidade do diálogo em relação
aos valores pessoais e éticos para estabelecer critérios e, posteriormente,
elaborar e exercer a função normativa da razão a
prescrição. A prescrição deve conter diálogo
e dinâmica suficientes para assegurar os valores humanos.
O quarto capítulo contempla o pensamento de Guerreiro Ramos. Aproxima-se
de modo crítico, às definições e conceitos que o
autor desenvolveu em sua rica trajetória como pensador do desenvolvimento
da ciência e do povo brasileiro. Desenvolve uma singular e original análise
das fases da vida e obra de Guerreiro Ramos como uma viagem redonda:
a visceralidade antropofágica na Bahia da Primeira República,
o artesanato institucional já no Rio de Janeiro e o anarquismo intelectual
na Califórnia/Estados Unidos.
A atitude metodológica e científica que encontramos em A Redução
Sociológica nos interessa para traçar a trajetória do seu
pensamento até a formulação do seu livro A Nova Ciência
das Organizações coroamento dessa atitude, síntese
e novo saber. O pensamento de Guerreiro é possibilidade no campo do saber
da sociologia enraizada na identidade cultural brasileira, que não foi,
nem é hegemônica. O quadro sinótico da tese mostra as tríades
de correspondências entre a redução sociológica de
Guerreiro e a teoria substantiva de Weber.
A engenharia de produção é pensada no contexto de um projeto
nacional, vislumbrando a possibilidade do Brasil (não do Brazil) existir,
do surgimento de um staff de engenheiros enraizados capazes de alavancar
uma necessidade de desenvolvimento, numa atitude que possibilite ao povo brasileiro
libertar-se das dependências históricas
e atuais. É na imbricação da ciência e da tecnologia
que podemos elucidar uma categoria política mais abrangente para nosso
desenvolvimento. A autonomia epistemológica é condição
de possibilidade para fazer uso da redução como processo científico
e tecnológico ético, como ciência do ethos enraizada na
identidade cultural brasileira.
Em seguida são reconstruídos o contexto e os objetivos da engenharia
de produção para o desenvolvimento do Brasil, compondo os elementos
essenciais da redução engenheiral para uma engenharia de
produção substantiva: assimilação crítica,
resistência e novo saber. Donde partiremos para as possibilidades
de elaboração de critérios para um novo modelo
alternativo de desenvolvimento social a partir de uma ciência substantiva
fundamentada nos princípios antropofágicos, artesanais e anarquistas
identificados na cultura.
O manifesto do quinto capítulo bebe do novo saber, Para uma
engenharia de produção substantiva e das correspondências
trinitárias explicitadas no quadro sinótico entre a redução
sociológica, a teoria substantiva e a redução engenheiral
para investigar as raízes dos valores culturais. É uma proposta-resposta-utópica
e entende que para esta tarefa urge um novo homem. Um homem dialógico.
Explora os valores da visceralidade antropofágica da primeira fase de
Guerreiro Ramos contida no livro Introdução à Cultura,
principalmente nos exemplos dos santos e da poesia como saudade do céu.
Apresenta difusa, nossa experiência de trabalho em projetos cooperativos
e comunitários da Coppe/UFRJ. Na Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares (SMDS/RJ, A Royal Flash-cooperativa de costureiras, a Coopluz); no
Projeto Arte de Ser, e no LTDS-Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento
Social (Sebrae/RJ e MG, Mãos de Minas, Cooperativas de Artesãos
de MG, Banco do Brasil/MG ...), amálgama de nossa experiência de
trabalho de campo ao longo desses últimos cinco anos; e uma contextualização
das propostas práticas com as quais a tese dialoga. Começamos
a correspondência trinitária dos princípios da redução
engenheiral, baseados na teoria substantiva e na redução sociológica
com os valores da cultura, para refletir sobre uma engenharia de produção
substantiva.
A partir da Antropofagia como característica da identidade cultural brasileira,
imaginamos a construção dos pilares de um novo saber, ou
melhor, sabor. Trata-se de adicionar à redução engenheiral,
aqui sendo desenhada em seus princípios anarquistas e artesanais, elementos
da cultura brasileira: antropofagia, miscigenação, festa e alegria.
Ou seja, alimentar a experiência prática da fundamentação
teórica baseada no processo de redução que nos leva a uma
autonomia epistemológica: tecnologia e desenvolvimento social a partir
de valores da cultura. Autonomia epistemológica é, também,
legitimidade para uso de vários campos da ciência na construção
de um novo saber enraizado na identidade cultural brasileira. Visa
refletir as questões cruciais de nosso tempo: profundo desequilíbrio
social e violência como marcas de uma vida absurda e caótica; a
necessidade de uma ciência comprometida com seu tempo; e uma posição
existencial que se mobiliza como um cavaleiro andante a sonhar de modo desconcertado
e dispersivo perante a imposição de uma racionalidade instrumental
e funcional vigente nas organizações e nas relações
entre os homens. A intenção principal é apontar a necessidade
de pensar e refletir o desenvolvimento social a partir de critérios pertinente
a nossa identidade cultural.
O Artesanato é visto enquanto modo de vida e visão de mundo. Trataremos
da segunda correspondência entre as tríades da redução:
resistência, herança, tradição, festa. Retomo minha
tese de mestrado, onde estudei a cosmovisão dos artesãos medievais:
a centralidade da pessoa, a relação mestre-artesão, a organização
da sociedade, as corporações de ofícios e guildas. Dialogo
e convivo com nossos queridos mortos, nossa saudade e nostalgia compartilhada
por Guerreiro e Buber do romantismo alemão, nosso samba como
memória coletiva para poder apontar critérios éticos para
o aprendizado, o afazer e para contemplação humana.
A explicitação da terceira e última correspondência
da tríade da redução: o Anarquismo. Propõe alternativas
de posicionamento das comunidades e suas especificidades ao estado, ao mercado,
à produção, baseado numa descentralização
Kropotkiana e no modelo multicêntrico de Guerreiro. Aborda a noção
de um anarquismo religioso, colocado por Löwy e a utopia messiânica
em Buber. Capítulo conclusivo onde retomo a redução, ciência
substantiva, descrita na memória e também na dicotomia
moderna entre valor e fato descrita por Guerreiro Ramos; para pensar o anarquismo
e seus princípios, o artesanato enquanto modo de vida e a antropofagia
como característica da identidade cultural brasileira, como uma via de
desenvolvimento alternativo ao modelo ocidental-anglo-americano que se planetariza
impositivamente. Uma engenharia de produção substantiva fundamentada
nos princípios da antropofagia, do artesanato e da anarquia é
dialógica na construção de critérios pessoais e
éticos para o desenvolvimento da sociedade.
Pensar modo de vida e trabalho para o Brasil generalizáveis em taylorismos
ou toyotismos não é só incorrer em erro, é confinar
toda uma essência, todo um veio tropical, antropofágico, a uma
condição não remediável por programas de qualidade
e produtividade. É necessário e urgente colocar o potencial criativo
dos milhões de brasileiros a serviço do seu bem estar e do seu
povo. A postura anárquica, a organização do artesanato
e uma fome de justiça encorpam esse modo de vida antropofágico,
romântico, utópico e rebelde do viver com o coração
na modernidade cristalizada, encastelada num silencioso labirinto
kafkaniano.
A capa coloca para reflexão a possibilidade de diálogo do Engenhoso
Fidalgo Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes com o Castelo, o Processo
de Franz Kafka. Metáfora que me ocorreu durante todo o doutorado, ora
mais cavaleiro ora mais castelo, sempre artesão contemplando felicidade
numa tourada imaginária onde o respeito e o amor pelo Outro torna o confronto
na arena digno dos maiores feitos de todos os tempos.