Televisão e Política no Brasil
A Rede Globo e as Interpretações da Audiência
Quando os brasileiros
ligam os aparelhos de televisão durante o horário nobre para saber
quais são as últimas notícias ou simplesmente para relaxar,
a grande maioria deles assiste a Rede Globo. A programação da
emissora neste horário é dominada por dois gêneros, telenovela
e telejornal. O noticiário Jornal Nacional e as novelas que o antecedem
e o sucedem são os programas de maior audiência da televisão
brasileira. Estes programas são importantes janelas para
o mundo da política, uma das fontes mais acessíveis de informação
e interpretação à disposição dos brasileiros.
Qual é a relação entre os principais programas da Rede
Globo e o processo por meio do qual os cidadãos brasileiros fazem sentido
de temas e eventos políticos? Este livro tem por objetivo apresentar
algumas respostas a esta difícil questão. Existem poucos estudos
no Brasil sobre a recepção e os efeitos dos conteúdos políticos
da televisão. No caso do Jornal Nacional, vários autores
já demonstraram o seu papel político ativo e sua tendência
de alinhamento com grupos de poder, em especial com o governo federal (Ramos,
1985; Lima, 1988, 2001; Straubhaar, 1989; Guimarães e Amaral, 1990; Albuquerque,
1994; Miguel, 1999; Porto, 2002, 2003). Todavia, ainda existem poucas pesquisas
sobre os eventuais efeitos destes conteúdos no modo como a audiência
do telejornal interpreta o mundo da política. Uma das raras exceções
é o estudo pioneiro realizado por Lins da Silva (1986) em duas comunidades
de trabalhadores. Os resultados desta pesquisa sugerem que a influência
do Jornal Nacional no modo como os cidadãos comuns entendem a
realidade não é tão grande como geralmente se supõe.
Os trabalhadores que participaram do estudo apresentaram uma capacidade crítica
de resistir a forma como o telejornal da Rede Globo cobria os problemas
nacionais. Por outro lado, Alessandra Aldé (2004) argumentou mais recentemente
que, ao elaborar reflexões sobre o campo político, os membros
da audiência incorporam vários dos enquadramentos apresentados
pelos noticiários, incluindo o Jornal Nacional.
O estudo sobre a relação entre o Jornal Nacional e o processo
pelo qual a sua audiência desenvolve entendimentos sobre a política
permanece, portanto, como um campo aberto de pesquisa. A pesquisa empírica
apresentada na segunda parte deste livro sugere que o Jornal Nacional
tem um papel importante neste processo. Os resultados dos dois experimentos
controlados conduzidos com moradores do Distrito Federal, relatados a seguir,
demonstram que o telejornal mais assistido do País contribui para dar
forma às interpretações que os membros da audiência
elaboram sobre temas e eventos políticos.
No caso das novelas brasileiras, pesquisadores têm demonstrado o seu papel
ativo na discussão de temas e eventos políticos em diferentes
períodos da história nacional (Straubhaar, 1988; Rubim, 1989;
Weber, 1990; Lima, 1993; Porto, 1998, 2000; Hamburger, 1999). Todavia, ainda
não sabemos se este conteúdo político da ficção
televisiva tem alguma relação significativa com o processo pelo
qual os membros da audiência desenvolvem entendimentos sobre o mundo da
política. Um estudo etnográfico em uma pequena cidade no estado
da Paraíba argumentou que os espectadores pensam de forma crítica
sobre as novelas, resistindo o seu conteúdo político
(Sluyter-Beltrão, 1993). Um outro estudo etnográfico mais recente,
também realizado em uma cidade nordestina de pequeno porte, desta vez
no Rio Grande do Norte, apresentou evidências de que grande parte da audiência
da novela O Rei do Gado, especialmente as mulheres, não percebeu
as referências do texto ficcional aos políticos reais
ou considerou monótonas e desinteressantes as discussões de temas
políticos (La Pastina, 1999, p. 219-222). Por outro lado, alguns sugerem,
a partir de entrevistas realizadas com telespectadores, que as representações
apresentadas sobre a política pelas novelas são freqüentemente
incorporadas às narrativas que as pessoas elaboram sobre o mundo da política,
dependendo do tema (Guazina, 1997).
Assim como no caso do Jornal Nacional, necessitamos mais pesquisas sobre
a possível influência da ficção televisiva na formação
de atitudes políticas. Neste livro, apresento os resultados de seis grupos
focais conduzidos com moradores do Distrito Federal sobre a novela Terra
Nostra. Os resultados deste estudo sugerem que as novelas desempenham um
importante papel de orientação para a sua audiência,
especialmente para as mulheres. Segundo esta perspectiva, as novelas oferecem
marcos interpretativos específicos que são freqüentemente
incorporados nas explicações desenvolvidas pela audiência
sobre temas e eventos políticos.
Além de apresentar os resultados de um estudo empírico sobre o
papel político da televisão, este livro também tem por
objetivo desenvolver um marco teórico para a análise da relação
entre televisão e o processo pelo qual suas audiências fazem sentido
no mundo da política. Este não é, certamente, um tema recente.
A relação entre mídia, opinião pública e
democracia tem sido objeto de pesquisa e de debate há muitas décadas.
Um grande número de pesquisas empíricas foram desenvolvidas a
partir de uma variedade de perspectivas teóricas. Diante deste quadro,
como um novo estudo pode contribuir para aprimorar nossos conhecimentos neste
campo? Necessitamos de novas abordagens teóricas e metodológicas
para uma melhor compreensão da influência da televisão nos
valores e preferências políticas da audiência?
O marco teórico e a pesquisa empírica apresentados a seguir foram
desenvolvidos a partir do pressuposto de que a investigação da
recepção e dos efeitos da mídia ainda inclui questões
importantes que não foram respondidas de forma adequada. Esta convicção
não significa que os estudos desenvolvidos até aqui não
oferecem marcos teóricos ricos e sofisticados ou que não apresentam
resultados válidos e interessantes. Todavia, a pesquisa empírica
sobre a recepção e os efeitos da mídia permanece como uma
das áreas mais problemáticas das ciências sociais contemporâneas.
O processo por meio do qual a mídia afeta suas audiências é
por causa da sua natureza complexa e dinâmica difícil
de ser identificado e avaliado. Já na década de 1950, Wright
Mills (1956, p. 311) argumentava que pouco se sabia sobre as funções
da mídia porque estas funções eram tão disseminadas
e sutis que não podiam ser identificadas pelos métodos de pesquisa
então existentes. Quatro décadas depois, o descontentamento em
relação à situação do campo permanecia presente.
Larry Bartels (1993, p. 267) argumentou, por exemplo, que a pesquisa sobre os
efeitos da mídia é um dos maiores embaraços das ciências
sociais, já que esforços para comprovar estes efeitos por parte
de cientistas políticos enfrentam uma grande variedade de dificuldades
metodológicas. Ao fazer um balanço dos estudos de comunicação
no mesmo período, Levy e Gurevitch (1994, p. 8) argumentaram que a questão
dos efeitos da mídia inclui os problemas menos esclarecidos desta disciplina.
O estudo dos efeitos da televisão na política é importante
não só devido às dificuldades teóricas e metodológicas
das disciplinas acadêmicas, mas principalmente por guardar uma clara relação
com as perspectivas das democracias contemporâneas. Ao buscar marcos de
referência na literatura acadêmica para enfrentar e resolver os
grandes dilemas da relação entre mídia e democracia, leitores
podem se surpreender com a freqüente ausência de uma reflexão
sistemática sobre os limites e dilemas da democracia nos estudos sobre
a recepção e os efeitos da mídia. Por outro lado, existe
uma injustificada falta de preocupação com o papel da mídia
por parte dos teóricos da política e da democracia (ver Miguel,
2000). Não desejo com isto sugerir que os pesquisadores da mídia
não fazem referência à questão democrática
ou que os teóricos da política nunca consideram a mídia.
Todavia, são raras as tentativas de debate e intercâmbio entre
os dois campos de pesquisa. Este debate poderia contribuir na consolidação
das duas áreas e nos ajudar a entender melhor tanto os efeitos da mídia,
como os dilemas da democracia no mundo contemporâneo. Os argumentos aqui
apresentados buscam contribuir neste processo ao vincular o estudo da recepção
e efeitos da mídia a algumas das questões mais centrais da teoria
democrática.
ESTRUTURA DO LIVRO
A primeira parte deste livro é dedicada a discussões teóricas
e ao desenvolvimento de um modelo para o estudo do papel da televisão
na política. O Capítulo 1 discute questões relacionadas
ao problema da competência cidadã, ou seja, os fatores
que capacitam os indivíduos para atuarem plenamente e de forma eficaz
como cidadãos. Em especial, o capítulo discute um dos principais
dilemas da teoria democrática. De um lado, as teorias clássicas
da democracia esperam que os cidadãos sejam bem informados e capazes
de deliberar de forma racional. Por outro lado, pesquisas de opinião
pública realizadas em diversos países revelam uma realidade incômoda:
a maioria dos cidadãos possui poucas informações sobre
o mundo da política. Depois de revisar e avaliar as principais respostas
apresentadas a este dilema, o capítulo propõe um novo modelo de
cidadania (o cidadão interpretante) como uma solução
mais apropriada para os dilemas da teoria democrática.
O Capítulo 2 apresenta uma revisão dos estudos e das teorias no
campo da psicologia política. Esta revisão é importante
porque os debates sobre a relação entre mídia, política
e democracia dependem de pressupostos implícitos ou explícitos
sobre o processo pelo qual as pessoas fazem sentido do mundo da política.
Em outras palavras, noções sobre a natureza humana (racionalidade,
ignorância, autonomia etc.) influenciam teorias e agendas de pesquisa.
Através da revisão dos principais marcos teóricos no campo
da psicologia política, explicitarei os meus pressupostos sobre o processo
por meio dos quais as pessoas formam suas preferências. Estes pressupostos
são desenvolvidos a partir de conceitos como senso comum, narrativas
e interpretação. Esta definição mais explícita
e sistemática sobre processos cognitivos pode ser bastante útil
na pesquisa sobre a recepção e os efeitos da mídia, já
que a maioria dos marcos teóricos existentes neste campo tende a ignorar
processos psicológicos.
O Capítulo 3 apresenta uma revisão das principais tradições
no estudo da recepção e dos efeitos da mídia. São
analisados os dois paradigmas principais neste campo que são geralmente
apresentados como perspectivas opostas e irreconciliáveis: o estudo dos
efeitos e a pesquisa de recepção. A primeira tradição,
o estudo dos efeitos, surgiu a partir das ciências sociais empíricas
e geralmente utiliza métodos quantitativos (principalmente experimentos
controlados e surveys) para investigar como a mídia afeta atitudes e
crenças. A segunda tradição, a pesquisa de recepção,
surgiu a partir dos estudos culturais e da teoria crítica e tem utilizado
métodos qualitativos para analisar o processo mediante o qual audiências
socialmente localizadas constroem e negociam de forma ativa suas interpretações
sobre o conteúdo da mídia. Após discutir os principais
estudos desenvolvidos neste campo, o capítulo propõe um enfoque
integrado que combina elementos das duas tradições de pesquisa.
A primeira parte do livro é concluída com o Capítulo 4
que apresenta o marco teórico da pesquisa e suas hipóteses. Este
modelo teórico define a televisão, para fins analíticos,
como uma arena na qual diversos grupos e instituições disputam
a interpretação dos eventos e temas políticos. A partir
do conceito de enquadramento, proponho investigar o papel da televisão
no desenvolvimento e resolução de controvérsias interpretativas,
disputas que não são resolvidas através do apelo a fatos
ou informações, mas que são conduzidas principalmente através
de enquadramentos interpretativos. O modelo das controvérsias
interpretativas, apresentado neste capítulo, sugere que quando a
televisão apresenta um único enquadramento ou ponto de vista sobre
um determinado tema ou evento político, adotando assim um formato restrito,
um número maior de pessoas faz sentido do evento ou tema de acordo com
este enquadramento. Por outro lado, quando expostos as mensagens com formatos
mais plurais, que apresentam mais de um enquadramento, os cidadãos
têm acesso a um conjunto mais amplo de atalhos e recursos, desenvolvendo
interpretações mais variadas sobre a realidade política.
A segunda parte do livro apresenta os resultados de uma pesquisa empírica
sobre o papel político da televisão no Brasil. Este estudo foi
desenhado para testar a hipótese principal do modelo das controvérsias
interpretativas e inclui tanto uma análise de conteúdo de
programas de televisão, quanto um estudo de recepção deste
conteúdo com moradores do Distrito Federal. O Capítulo 5 apresenta
os procedimentos metodológicos adotados e introduz os dois programas
analisados, o Jornal Nacional e a novela Terra Nostra, ambos da
Rede Globo. O Capítulo 6 apresenta os resultados de uma análise
de conteúdo do Jornal Nacional. A pesquisa demonstra que quando
o principal telejornal do País apresenta uma cobertura noticiosa restrita,
privilegiando um único enquadramento interpretativo sobre um tema ou
evento, as fontes oficiais do governo federal recebem posição
de destaque no telejornal.
Os Capítulos 7 e 8 apresentam os resultados de dois estudos de recepção
sobre os efeitos das notícias do Jornal Nacional no processo de
deliberação política de sua audiência. Foram realizados
dois experimentos controlados com moradores do Distrito Federal e os resultados
destes estudos comprovam a hipótese principal do modelo das controvérsias
interpretativas. Ou seja, quando exposta a reportagens com um único enquadramento
interpretativo, mais pessoas fazem sentido de um tema (a eficiência do
Congresso) e de um evento (uma decisão do Supremo Tribunal Federal) de
acordo com a interpretação promovida por este enquadramento.
O Capítulo 9 apresenta os resultados de um estudo de caso sobre a telenovela
Terra Nostra. A partir de uma análise de conteúdo da novela
e das discussões realizadas com moradores do Distrito Federal em seis
grupos focais, a pesquisa demonstra que o conteúdo político da
ficção televisiva desempenha um importante papel de orientação
para sua audiência, especialmente mulheres. Os marcos interpretativos
da novela foram freqüentemente incorporados às narrativas que cidadãos
comuns desenvolveram sobre temas e eventos políticos da atualidade. Finalmente,
o Capítulo 10 apresenta as conclusões da pesquisa.
Ao citar trabalhos publicados originalmente em inglês, optei por apresentar
minha própria tradução ao português. Portanto, as
traduções contidas neste livro são de responsabilidade
do autor e não refletem necessariamente com exatidão o seu sentido
original.