Rio de Janeiro, uma cidade portuguesa com certeza
Uma proposta para manter a característica lusitana da cidade
O presente trabalho
segue a linha aberta pelo trabalho Rio de Janeiro e a música (EVANGELISTA,
2005). Na oportunidade observamos que o Rio de Janeiro produziu dois gêneros
musicais que marcam a identidade brasileira, a saber: o samba e a bossa nova.
Quando nos aprofundamos na história destes dois gêneros percebemos
que não decorrem de escolas musicais devidamente configuradas, ou seja,
não houve mentor do processo; não houve nenhuma escola teórica
melódica a conduzir a produção musical. Os dois gêneros
musicais simplesmente surgiram na cidade; assim, qual o segredo desta cidade
para tais produções? O que chama a atenção no Rio
de Janeiro é a sua interatividade. O lugar é marcado pela interação
entre diferentes pessoas, de diferentes classes, de diferentes áreas.
E é este aspecto que está na base da geração do
samba e da bossa nova.
Os dois gêneros
surgiram nas ruas, nas rodas musicais, nas quadras de esporte, nos apartamentos
e nas boates. Foram forjados com instrumentos relativamente baratos e as pessoas
que os promoveram tinham em comum o talento, a criatividade, enfim, a intuição
musical.
No caso específico
da música concorreu tanto a beleza humana quanto a beleza física
da cidade. O povo carioca é um povo que sorri. Que se reúne em
multidões e realiza grandes espetáculos.
Mas deixando de
lado a música e voltando nossa atenção para a presença
portuguesa no Rio de Janeiro, encontramos um fio condutor comum, a saber: tanto
em um caso como no outro, destacam-se a dimensão da ambiência,
a interação entre as pessoas, as trocas, as combinações,
os projetos comuns. E é isto que explica a semelhança entre a
explosão da música no passado do Rio de Janeiro e a presença
portuguesa na cidade. O Rio de Janeiro foi e ainda é fortemente marcado
por uma ambiência lusitana que possibilita a ascensão social de
muitos.
O fato de ser
português descendente na cidade do Rio de Janeiro é algo que confere
certa base de sustentação material. Entre os miseráveis
da cidade, raros são os portugueses. O português, chegando à
cidade do Rio de Janeiro, dispunha e dispõe de uma sintonia lusitana
conferida por uma ambiência lusitana.
Justificativa
do trabalho
Passei a dar a
atenção à questão portuguesa quando me casei. Meu
sogro era português. Veio para o Rio de Janeiro com 12 anos, no intuito
de morar em casa de conhecido da família; em pouco tempo, encontrava-se
sozinho, morando de empréstimo na parte de trás de um armazém,
onde trabalhava entregando produtos.
Quando passei
a estudar os portugueses no Rio de Janeiro percebi que esta trajetória
era comum a tantos outros portugueses que, pobres e com vontade de vencer, tentam
a sorte no Brasil.
Porém,
ao mesmo tempo em que tem este espaço de vivência fomentado pela
raia miúda, com baixa escolaridade, temos também o próprio
espaço constituído por grandes iniciativas empresariais, tais
como o hospital Beneficência Portuguesa, o prédio do Real Gabinete
Português, o estádio do Clube de Regatas Vasco da Gama e tantos
outros, tais como escolas, casas de encontros etc.
O que chama a
atenção na forte presença portuguesa no Rio de Janeiro
é o fato de não suscitar reação em igual proporção
a esta força; ou seja, em geral, os portugueses eram bem aceitos na cidade.
Isto destaca uma
marca da cidade do Rio de Janeiro: é uma cidade que recebe diferentes.
O Rio de Janeiro
é português! Para tanto, destacamos os espaços da guerra
representados pelos fortes militares, os espaços das festas e encontros
representados pelas associações portuguesas (casas regionais),
o espaço do saber, representado pelas escolas, bibliotecas e promoção
de cursos, o espaço da dor, representado pelos hospitais, o espaço
da morte, representado pelos cemitérios e o espaço da oração,
representado pelas igrejas.
O trabalho apresenta
a percepção de que os portugueses do Rio de Janeiro configuraram
internamente um sentimento comum de pertencimento pelo simples fato de terem
nascido em Portugal. É até provável que os portugueses,
aqui no Rio de Janeiro, mostrem-se mais solidários com os seus do que
na própria terra de origem.
Este sentimento
de pertencimento foi elaborado de diferentes formas, ao longo da história
do Rio de Janeiro, tendo isto diferentes conseqüências.
As formas consideradas
vão dos equipamentos aqui instalados (de ordem cultural, recreativa,
educacional, previdenciária, hospitalar, esportiva etc.) aos convênios
de intercâmbio entre os governos brasileiro e português e os laços
familiares que infundiriam uma preferência pelo que vinha de Portugal.
Nas conseqüências nós temos não só um processo
de retroalimentação, ou seja, a comunidade fomentada pelo equipamento
aqui implantado passa também a suscitar novos aparelhos, como também
se cria uma associação de índole temporária, mas
que se mostra muito eficaz na constituição de laços de
migrantes que acabam desdobrando-se em casamentos ou sociedade em empresas.
Há, ao
cabo, um denominador comum em todos os portugueses que chegam ao Rio de Janeiro:
desejam vencer na vida. Visam construir um futuro. Buscam um projeto. Não
vêm refugiados, humilhados por uma invasão em seu país de
origem; pelo contrário, vêm porque desejam conquistar espaço,
possuir; o português no Rio de Janeiro tem em comum a ambição.
Este estilo, este
ethos, ajuda a compreender muitas das características que eles
assumiram no Rio de Janeiro. De certo modo, curiosamente, segue uma ordem um
tanto auto-segregadora. Este aspecto pode ser permeado, por exemplo, por certa
resistência em se oficializar casamentos com não portugueses, ou,
ainda, nas próprias associações criadas por portugueses,
ou nos hospitais, bibliotecas etc., com cláusulas no estatuto que vedavam
o pleno acesso aos seus recursos por não portugueses.
Estes que migram,
por sua vez, mesmo pobres e com baixo grau de instrução, costumavam
ser os melhores, entre os mais fracos, ou, ao menos, os mais corajosos (ou temerários).
São os que se sentem aptos a vencer além-mar. Esta ousadia, audácia,
de arriscar o seu fito em uma terra da qual há esparsas notícias,
dadas por pessoas ou por algum meio de formação, enrijece nos
migrantes um modelo de procurar vencer.
Por fim, ao estudar
o Rio de Janeiro de vários modos, seja levando em conta a questão
do narcotráfico, pois muito me preocupou o grau de violência na
cidade (EVANGELISTA, 2003), seja elaborando uma reflexão sobre a cidade
e a música, chamou-me a atenção que, fora a questão
da violência física, há uma violência à imagem
do Rio de Janeiro; assim, a cidade maravilhosa passa a ser vista como a capital
do medo. Ao analisar a presença portuguesa no Rio de Janeiro, por sua
vez, chama a nossa atenção a existência de várias
vivências na cidade: a musical é uma delas, a lusitana é
outra, a nordestina uma terceira e, ao contrário das outras duas mencionadas,
não se tem uma política voltada para a preservação
da vivência lusitana.
Assim, do espaço vivência lusitana o que temos como estratégia de preservação? Literalmente nada: ao que havia de construto nada foi acrescentado nos últimos anos; assim, fica o desafio de se fortalecer este espaço vivência que tanto marcou e ainda marca a cidade, daí porque, ao final do trabalho, no item 5.1, lanço uma idéia, uma boa idéia, por sinal.