capa do livro

O avesso do espelho

Relações comunitárias e divisão do trabalho na experiência da Unilabor

Carla Cipolla

A história que deu origem a essa dissertação surgiu há alguns anos.

Estar em uma rotina de trabalho de nove horas diárias, servindo à uma máquina da mais alta tecnologia – e não sendo servida por ela – e isolada dos outros trabalhadores não tão altamente qualificados; é um bom momento da vida para se fazer algumas perguntas.

Assim se encontrava Dante Alighieri na sua Divina Comédia no início de sua viagem. No meio do caminho da vida, isto é com 35 anos, Dante se encontrava em uma selva obscura:

Nel mezzo del cammin di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura

E descrever qual fosse essa selva era para ele uma tarefa assim dolorida que na memória o seu pavor renovava:

Ah quanto a dir qual era è cosa dura,
Questa selva selvaggia ed aspra e forte
che nel pensier rennova la paura!

Vejo, ainda como Dante, o aquário refrigerado e protegido onde funcionava minha selva tecnológica feita de terminais de computador e equipamentos de milhares de dólares. Nos monitores transitavam todas as imagens fotográficas que fariam parte de diversos comerciais de televisão, revistas e outdoors.

E vejo ainda do lado de fora, nos outros pavimentos do prédio a mesma selva com diversos contornos: os funcionários fechados em seus cubículos escuros, seus próprios aquários, revelando essas mesmas imagens durante nove horas por dia. Vejo seu Gilberto, Solón, seu Getúlio, e um outro senhor da revelação preto e branco do qual não recordo o nome, mas sim o olhar.

Eles não estavam mais no “meio do caminho da vida”: muitos tinham 65 anos ou mais.

Entretanto, o meu aquário era no topo. E todos queriam ali entrar. Queriam que eu os ensinasse a tecnologia potente que os estava desempregando, e que com um toque fazia o trabalho de muitos homens. Queriam subir ao terceiro andar e fechar-se comigo no meu aquário. Parecia-lhes o céu.

Mas lá do alto, onde me encontrava, conseguia observar com clareza toda a estrutura. Não havia nenhum céu. Estávamos presos apenas em um dos inumeráveis infernos temáticos. O nosso tema eram as revelações fotográficas e nossa produção objetivava principalmente gerar imagens de sedução para o mundo do consumo.

Foi então que Frei João ali chegou. Veio chegando como um pequeno sopro sutil e quente dentro da refrigeração do aquário. Eram apenas três parágrafos de um artigo perdido em uma revista de arquitetura e design. Dizia apenas que um frei havia fundado nos fundos de sua capela uma comunidade de trabalho chamada Unilabor cujos móveis foram marcos na história do design brasileiro.

Iniciei um percurso em busca de sua história. Descobri um livro de sua autoria junto a seus confrades dominicanos e onde ele contava toda a experiência da comunidade. Foi assim, nesse livro, que João Baptista Pereira dos Santos abriu uma pequena porta. E ela continha essas palavras:

"Nossa meta final, o motivo pelo qual nos reunimos em comunidade é elevar o homem e torná-lo digno de seu destino espiritual e não constituir um formigueiro no qual o homem seja apenas um número, um elemento, nada mais. Somos contra o individualismo capitalista mas somos também contra toda transformação do homem em mero fator econômico, em simples peça de uma imensa máquina coletiva de produzir riquezas. O homem não pode viver sem ideal. Cada companheiro deve escolher uma finalidade para a sua vida e ser capaz de justificar esta escolha a qualquer momento" (Santos, 1962, p. 56).

Essas palavras ecoaram por muitos meses. Ele já estava morto, mas suas inquietações continuavam mais vivas que nunca em mim. E a sua história realmente parecia conter alguma resposta.

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