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Rádio, Cidadania e Campanhas Eleitorais (1998-2008)

Marcia Vidal Nunes

Embora os estudos sobre as articulações entre os campos da mídia e da política tenham se multiplicado no Brasil a partir da redemocratização do país na década de 1980, com o reconhecimento de profundas alterações nas formas de "fazer política" e de modo especial de produzir campanhas eleitorais, o foco das análises direcionou-se predominante aos usos dramatúrgicos da TV. São ainda escassas as pesquisas sobre o lugar ocupado pelo rádio nos processos de midiatização da política brasileira. O livro de Márcia Nunes, Rádio, Cidadania e Campanhas Eleitorais (1998-2008), contribui para preencher a lacuna mencionada apresentando um conjunto de textos escritos ao longo de um extenso período de sua profícua atividade como pesquisadora. No primeiro capítulo, uma visão histórica das íntimas conexões entre rádio e política ressaltando seu papel inovador na definição de estratégias militares na Primeira Guerra Mundial, e de modo especial destacando o seu uso como "arma política" nos tumultuados anos de ascensão e queda do nazi-facismo na Europa cujos reflexos se estenderam e reconfiguram a geopolítica ocidental ao longo e após a Segunda Guerra Mundial. Sem dúvida, o rádio demarca um momento de mudança e expansão da esfera pública ocidental não só por romper os limites temporais e espaciais da comunicação presencial direta, mas principalmente por atingir com a linguagem oral uma grande massa dos não letrados.

Se nos períodos ditatoriais o rádio atua como voz dos ­donos do poder no comando ideológico e unificador das massas, sua importância não decresce nos regimes políticos democráticos representativos que têm nas eleições o momento de manifestação através do voto da vontade do povo na escolha de seus representantes. O rádio foi durante muito tempo o veículo principal no estabelecimento de contato entre candidatos e eleitores. O desenvolvimento de uma retórica política específica do rádio ao longo do tempo ainda me parece uma tarefa a ser desenvolvida. Sem dúvida que os programas eleitorais das campanhas radiofônicas no Brasil de hoje em nada lembram a retórica erudita dos grandes tribunos políticos, aproximando-se cada vez mais da linguagem radiofônica comercial em seu tom coloquial, no trato dos problemas miúdos do cotidiano, na preocupação em manter um tom de entretenimento e do humor para prender a atenção dos ouvintes. Estas mudanças são boas ou más para a vivência da democracia? Sobre este ponto as controvérsias teóricas e normativas se estabelecem. A revisão da literatura feita pela autora é por si indicativa dos impactos positivos e negativos da mídia no fenômeno de "espetacularização" da política. Pessoalmente, prefiro afastar-me das posições mais polarizadas, alinhando-me àqueles que reconhecem que não há uma conexão intrínseca e demoníaca entre espetáculo e "manipulação política". Afinal, a dimensão persuasiva dos discursos políticos é parte do jogo democrático e o que há de cuidar é em cultivar na audiência uma atitude mais cautelosa, mais reflexiva, que não a torne uma vítima inocente de manipulações indevidas. Sou mais propensa a admitir que as formas menos herméticas da linguagem política midiática possibilitaram que os eleitores, e não apenas os políticos profissionais, partilhassem um conhecimento comum sobre as regras do jogo político que lhes permitam uma participação mais competente e menos desigual. Qual a "lógica da prática" das decisões eleitorais pelos cidadãos comuns? Um ponto da pesquisa em ­comunicação política no Brasil que me parece ainda incipiente é exatamente este, que versa sobre os processos de recepção ou consumo dos discursos políticos pelas pessoas comuns. Evitaríamos assim, por desconhecer os pressupostos da lógica das pessoas comuns em situações de ação da vida prática, de tratá-los de forma simplificadora como "de juízo dopado" (tese elitista confrontada pela perspectiva da etnometodologia).

Ressalto a importância da análise feita pela Márcia sobre a construção de carreiras políticas de radialistas cearenses (fenômeno recorrente em outros estados do país) que como locutores de programas populares de grande audiência invocam para si e como tal são reconhecidos, pela função de "delegados do povo" atuando como mediadores privilegiados entre as demandas dos ouvintes e os representantes dos poderes e órgãos públicos competentes. A transversalidade dos campos da mídia e da política fica patente nos casos estudados em que "delegados do povo" transferem o capital simbólico acumulado no rádio para obter dos ouvintes-eleitores votos necessários à conquista de postos nos poderes legislativos estadual e municipal. É interessante a constatação da efemeridade da carreira política de radialistas eleitos que, ao se afastarem do comando de programas radiofônicos nos quais ganharam notoriedade, perdem o crédito e os votos obtidos no contato permanente com o seu público. A dupla militância na profissão de radialista e político institucional tem que ser cultivada com delicadeza para que o crédito político seja preservado em pleitos posteriores.

Os capítulos II , III e IV apresentam uma análise das múltiplas possibilidades de relações que se estabelecem entre as rádios comunitárias, movimentos sociais e lutas no campo político-institucional. Se a instrumentalização das rádios comunitárias é denunciada no crescimento do número de políticos profissionais que as controlam, isto não impede que a autora reconheça o potencial que as mesmas detêm como espaços de exercício criativo e relativamente autônomo de cidadania pelas camadas populares.

A análise do formato e conteúdo assumidos por campanhas de rádio no horário eleitoral gratuito para cargos majoritários municipais, estaduais e federais no período de 1998 e 2008 conduz a autora a uma visão pessimista sobre a contribuição que trazem para o incremento da participação popular no debate das questões públicas e para o aperfeiçoamento democrático. Os programas político-eleitorais tentam reproduzir o mais proximamente possível as fórmulas de sucesso das "gramáticas" de comunicação da programação normal das rádios AM: a emocionalidade, a fala reiterativa, a conversa fixadora, o tom coloquial, o humor escrachado, a informação fragmentada... Ficam aqui inquietações minhas para as quais não tenho resposta: como estabelecer outros e mais positivos nexos entre política e comunicação midiática? De que forma, os estudos e pesquisas nesta área podem através da crítica "desnaturalizar" formas de fazer política que, no dizer de Márcia, são "sempre mais do mesmo", reeditando à exaustão os mesmos scripts?

Rejane Vasconcelos Accioly Carvalho
Professora doutora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFC

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