Ares do Brasil
Celso Furtado, o lugar do desenvolvimento
O
modo de inserção da economia brasileira na economia mundial
evidenciou especificidades em nossa formação econômica
e social que se tornaram elementos rígidos de nossa estrutura, que
caracterizavam o subdesenvolvimento. Ainda que, desde a década
de 1950, uma vertente do pensamento econômico brasileiro, e dentro dela
Celso Furtado, propusesse a reflexão sobre as possibilidades de um
caminho próprio a ser trilhado para superar a situação
de subdesenvolvimento, a trajetória histórica das nações
industrializadas era apresentada pelo pensamento hegemônico das teorias
econômicas do desenvolvimento como o modelo único
a ser seguido, uma espécie de espelho do futuro das economias periféricas.
Os avanços da industrialização brasileira, apoiada em
forte participação estatal, não conseguiram efetivar
um desenvolvimento social homogêneo. Ao crescimento econômico
associara-se a desigualdade social e a concentração de renda,
situação agravada com a intensificação do processo
de transnacionalização e desregulamentação da
economia. A unidimensionalização de imperativos vinculados à
lógica do mercado eficiência, produtividade, competitividade
desconstruiu as estratégias desenvolvimentistas no mundo dito
globalizado, fazendo tarefa urgente se repensar as estratégicas de
desenvolvimento, incorporando uma reflexão interdisciplinar e focada
na concretude e singularidade dos lugares, superando o dilema
da compatibilização entre globalização e diversidade
cultural.
A prevalência de um modelo único e unipolar se vincula aos efeitos
perversos da transposição de modelos, do mimetismo cultural,
da modernização mimética e dos limites da abordagem puramente
economicista. Foi desde essa premissa que buscamos resgatar o tema abordado
por Guerreiro Ramos no livro Redução sociológica:
a autonomia epistemológica. Trata-se de abrir a possibilidade para
uma reflexão autêntica e criativa capaz de lidar com a diversidade
de realidades situacionalmente concretas e propor caminhos alternativos para
elaboração de um projeto próprio de desenvolvimento.
A Redução sociológica é fruto da discussão
capitaneada por Guerreiro Ramos, na década de 1950, em torno da fundação
de uma sociologia brasileira. Sua proposta pode ser entendida como uma crítica
à cega e automática transposição de teorias
importadas inadequadas para compreensão das especificidades da
sociedade brasileira. Ela parte de uma atitude metódica que pauta a
elaboração teórica a partir do enraizamento no próprio
contexto situacional da vida vivida das diversas identidades culturais específicas.
Guerreiro Ramos procurava contribuir para formulação de um projeto
próprio de desenvolvimento nacional por meio da fundação
de uma sociologia operativa intencional e funcional. Para
ele, o estabelecimento de relações vinculantes e estreitas entre
teoria e prática era o caminho para se efetivar um desenvolvimento
autêntico. Cabia, portanto, considerar a realidade econômica e
social em comprometimento com as comunidades e em atenção às
particularidades estruturais da realidade concreta daquela região ou
nação. As implicações referenciais de natureza
histórica deveriam ser consideradas de modo a captar a direção
da evolução da cultura, aprendendo a dinâmica do sentido
daquele momento vivido.
A Redução sociológica de Guerreiro Ramos não
propõe que a intelectualidade periférica faça de um isolamento
autárquico falsa virtude. Muito menos nega a universalidade da ciência.
O que ela afirma é sim o caráter subsidiário da
produção estrangeira e propõe um método
de assimilação crítica de teorias e arranjos institucionais
exógenos, refutando transplantações miméticas
e estéreis.
Com referência a Guerreiro Ramos procuramos demonstrar que, em seu empenho
por entender o Brasil, Celso Furtado operou uma autêntica redução
econômica em suas teorizações sobre desenvolvimento
e subdesenvolvimento, evidenciando essa atitude redutora em episódios
de sua vida e obra.
Esses elementos já podem ser observados no período de doutoramento
de Furtado em Paris. O jovem Furtado, numa postura de diálogo e interação
com o mundo, se propõe a mergulhar na realidade concreta do pós-guerra.
Em tal experiência de vida identificamos não apenas aspectos
teóricos que irão amadurecer mais tarde relativos ao
planejamento, à inserção internacional da economia, à
perspectiva histórica, à visão social e política,
à cultura mas também, e com forte destaque, a interação
entre o aprendizado e a ação e a necessidade de liberdade para
pensar, criar e agir com compromisso e responsabilidade.
A experiência de Furtado na Comissão Econômica para América
Latina (CEPAL) é das mais ricas no exercício de um saber
situado. Foi essa sua grande oportunidade de vida para conhecer e pensar
a América Latina (e o Brasil nesse contexto). Foi também momento
decisivo na construção histórico-biográfica de
sua trajetória de economista heterodoxo. Suas participações
como membro da Cepal em diversos debates e missões criaram a base para
uma confrontação crítica com as doutrinas hegemônicas
do mainstream acadêmico, incentivando-o a afirmar uma teorização
situada, autônoma e comprometida.
Furtado coloca para si, o desafio de teorizar o subdesenvolvimento. O método
histórico-estruturalista, por ele desenvolvido na Cepal, é resultado
dessa busca incansável por uma abordagem que não se deixa tolher
pelos limites da ciência econômica hegemônica, incapaz de
compreender e propor caminhos de superação para as especificidades
do subdesenvolvimento latino-americano e brasileiro.
Seu livro Formação econômica do Brasil é
referência clássica do método histórico-estruturalista,
como suporte para se efetivar uma interpretação situada,
comprometida e enraizada. Nele a análise faseológica é
um recurso para identificar linhas-mestras das transformações
estruturais no âmbito organizacional e nas bases materiais da dinâmica
econômica.
A identificação das especificidades situadas e situacionais
das estruturas subdesenvolvidas configura a intenção de Furtado
de elaborar um saber operativo. E a técnica de programação
voltada para os países subdesenvolvidos, desenvolvida na Cepal por
Furtado, emerge com o amadurecimento da análise cepalina. Ela pode
ser caracterizada como uma ferramenta fundamental para um agir situado.
O exercício desse saber operativo e enraizado nos permite
identificar dois momentos fundamentais da trajetória de vida de Furtado:
sua participação no grupo misto BNDE-Cepal e sua contribuição
para a elaboração de uma política de desenvolvimento
para o Nordeste.
Em sua fase mais madura, Furtado afirma explicitamente que toda estratégia
de desenvolvimento se assenta sobre uma perspectiva antropológico-filosófica.
E desde tal perspectiva propõe o desenvolvimento como processo endógeno,
que abre espaço para a potencialidade cultural. O debate sobre estratégias
do desenvolvimento brasileiro requer, portanto, uma reflexão sobre
a herança cultural e suas potencialidades. Nessa perspectiva, o legado
de Furtado pode servir de referência à teoria dos sítios
proposta por Hassan Zaoual, que afirma o primado do homo situs (o homem
situado) sobre o homo oeconomicus como parâmetro e referência
valorativa das estratégias de desenvolvimento globalizantes baseadas
na lógica do mercado.