Breves Notas ao Ensino de História da Educação
Prezado leitor,
A obra que ora inicia
a leitura é composta por um conjunto de textos apresentados sob a forma
de notas preliminares. Emana dos textos, uma memória de alunos
que não esqueço e que me motivaram a um conjunto de aprenderes
e de rearranjos de saberes. Intimamente, confesso, sofro a dupla, grata e paradoxal
tensão do desafio de, por um lado, conseguirmos realizar belamente a
leitura, construindo novos sentidos e, de outro lado, temer que conseguiremos...
A redação dessas notas preliminares respondeu a necessidade de
apresentar conteúdos de introdução àqueles que,
em sua maioria, encontram-se no primeiro semestre acadêmico da universidade,
em cursos de Pedagogia no âmbito das disciplinas de História da
Educação dos Cursos de Pedagogia dos campus de Angra dos Reis
e de Niterói, da Universidade Federal Fluminense. Portanto, nossos leitores
são ingressantes em novas ambiências de ensino e sociabilidade.
Nos textos propostos, ambicionei ser sensível a esse perfil de parceiros
na viagem que se anuncia, seja na linguagem escrita que adotei, seja nas estratégias
didáticas que escolhi, seja na seleção de conteúdos
que optei em abordar. Contudo, apesar da flexão verbal, nada que lerá
foi feito originalmente apenas na primeira pessoa do singular.
Na verdade, tudo resulta da produção coletiva de conhecimentos,
realizada em muitas turmas e com muitos, muitos alunos, co-autores queridos.
Seus colegas, leitor, hoje veteranos ou formados, em algum momento de suas vidas
estiveram supostamente como meus alunos, dando-me a oportunidade
luminosa de, muitas vezes, num repente, aprender-me aprendiz e poder oferecer
à você a oportunidade da crítica, da eventual apropriação
e da indispensável resignificação.
A responsabilidade que temos eu, supostamente o autor e você que
me lê, enganosamente apenas na posição de aluno leitor
é muito, muito grande. Porque ambos estamos em transição
e, ainda, em um ritual de passagem. Estamos igualmente frágeis, inseguros
e, simultaneamente, entusiasmados por fazer e acontecer... Como diziam os anarquistas
ao início do século XX: o que nos liga, professores e alunos,
é que desconhecemos muito, ignoramos outros tantos e o pouco que conhecemos,
se trocado e acrescentado, nos fará perceber que sabemos muito pouco
ainda do mundo. Explico.
Entendo que você, leitor, com quem terei o prazer de conviver, detém
uma história com características ainda marcadamente
fundadas nos Ensino Médio e Fundamental, onde a atuação
discente é de modo geral limitada pela grande diretividade docente, imperando
uma didática permeada (quando não pervertida) pela memorização
e disciplinarização, sendo o processo educacional equivocadamente
percebido apenas como conteúdos programáticos, tratados apenas
no tempo e no espaço da sala de aula, como de transmissão
de conhecimento ou, se tanto, ensino-aprendizagem.
Caso consideremos o tempo vivido na pré-escola, nos primeiro e segundo
segmentos do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, nossos calouros ingressam
na Universidade com uma respeitável experiência de 12, 15 anos
de escola. Não é algo que deva ser ignorado e vocês são,
antes de tudo, doutores em escola. Todavia, carregam essa experiência
sem o estímulo de maior tratamento analítico e, quando feita,
a partir naturalmente do ponto de vista de aluno o que não é
pouco, sendo que esse conhecimento não deve ser ignorado ou perdido.
Considero que existe um grande número de calouros que chegam à
Universidade com uma memória da escola muito agradável
e bela, fazendo-os desconfiar (e as vezes, no íntimo, desejar) que o
presente, no curso superior, não seja tão bom quanto o foi no
passado quem pode afirmar que mesmo o jovem não tenha um outrora
que ama e para onde, em devaneios, muitas vezes, retorna e de onde, cético,
vê e critica a turbulência do presente?
De fato, essa bagagem pessoal de experiências escolares envolve tanto
seqüelas quanto belas lembranças na relação com professores,
nas amizades que frutificaram com colegas, nos primeiros amores que surgiram,
no prazer de trato (ou nem tanto) com conteúdos das disciplinas, nas
rotinas cotidianas (entrada, recreio, saída de casa e da escola), nas
festas e formaturas. Cada um dos alunos enfim, carrega para a Universidade uma
rede de lembranças envolvendo atmosferas sensoriais feitas de burburinho,
de cheiros, de sabores, de imagens que remetem não apenas à escola
como instituição mas, principalmente, como pregnância e
interioridade, que fala à construção de sua própria
personalidade.
A escola, portanto, pode ser vista para além do exercício da cognição,
dos domínios intelectuais, da construção de hábitos,
transformando-se também e principalmente, em espaço de sociabilidade
onde os indivíduos se apreendem em permanente construção
como sujeitos, (não diria o poeta, cada um é um universo,
porque cada um, é um igual?).
Frente a essa herança, o que é a Universidade para você,
leitor? Talvez um vir-a-ser desconhecido, desejado e, também, um-tudo-ainda-muito-estranho,
mas que deseja ser-barato-total. O Curso de Pedagogia pode ser a possibilidade
de afirmação de seu amadurecimento, ao mesmo tempo em que quer
(mas ainda não sabe) se será tão bom ou melhor que o do
tempo da escola fundamental. Além disso, o Curso de Pedagogia é,
também, e com toda justiça, a oportunidade de sua afirmação
existencial, como resultado de sua vitória pessoal em realizar sonhos
frente aos desafios antepostos por uma sociedade injusta e desigual. Chegar
portanto à Universidade é, também, um grande e merecido
abraço que a Vida dá em sua auto estima.
Temos uma co-responsabilidade enorme. Você, leitor, os demais colegas
e eu, em trabalharmos essa inestimável herança, reconhecendo-a
como um saber que não pode ser ignorado, dela nos servindo como terra
boa para cultivo do trigo e feitura, se a Vida for generosa, de saboroso e partilhado
pão. Em decorrência, nosso percurso na obra que inicia irá
buscar intensamente sua Memória de vida escolar como base
de trabalho, articulada e confluente às lembranças para o tratamento
da História e da Educação como
História da Educação.
Trabalharemos, portanto, ambicionando o trato com a experiência individual
e coletiva, enfeixadas por um patrimônio de conhecimentos envolvendo continuidades
e rupturas. Em outras palavras, iremos incorporar metodologicamente
a memória dos alunos como continuidade, propondo rupturas
analíticas, que rearranjem em uma história da escola,
desconstruindo uma tradição de se considerar a história
da educação a partir da escola vazia, isto é,
sem considerar e registrar a presença dos sujeitos que a tornam polissêmica
e que lhe dá, de fato, sentidos múltiplos e muitas vezes contraditórios.
Falo sobre isso porque, creio, firmou-se uma tradição errônea
de se considerar apenas uma versão histórica para o percurso da
escola, a partir apenas dos rituais, das solenidades, dos programas, dos currículos,
dos desfiles, das formaturas, das leis. Sem negá-los como fontes documentais,
iremos ampliar nossa visão, incorporando outras histórias,
outros participantes (professores, cozinheiros, inspetores, pipoqueiro e sorveteiro
da frente da escola), outros tempos simbólicos (construídos pela
relação dos próprios alunos) e outros espaços que,
presentes no cotidiano da escola, são desqualificados como sem
importância educativa (recreios, quadras, a rua) e discursos (materializados
seja nas colas, seja na escritura das últimas folhas dos
cadernos dos alunos, seja na tampa das mesas discentes ou na porta dos banheiros).
Enfim, ambicionamos recuperar um conjunto de conhecimentos que fazem a escola
memorável e que, sintomaticamente, não é guardada
ou registrada. Tentaremos discutir, debater, trabalhar esses conteúdos
a partir de um andamento temático cadenciado, através de estratégias
fundadas parcialmente em experiência acumulada com outras turmas, bem
como na dinâmica que o acaso felizmente possibilita e provoca.
Considere que os primeiros semestres na universidade devem favorecer a passagem
(é, como transição) para novas práticas escolares,
distinta daquelas vividas no Ensino Fundamental ou Médio. A prática
universitária é de diferente natureza, caracterizada por uma maior
autonomia do discente e sua co-responsabilidade. A presente obra opera nesse
contexto e os capítulos que lerá pretendo que sejam encontros
dinâmicos e, quando possível, apaixonantes, envolvendo a minha
e a sua experiência pessoal.
Nesse contexto, pretendo que, ao final do livro, o leitor disponha de um banco
de idéias e conteúdos, como capital acumulado, permitindo-lhe
difundir, aperfeiçoar e ampliar esses conhecimentos em futuras oficinas,
cursos e reuniões com seus professores ou alunos, quando pedagogos atuantes.
Quero dizer que também trago como bagagem uma memória
e sinto-me também em transição, como aluno que fui e sou
e como professor de diferentes turmas em cursos de História da
Educação. Isso porque, quando da elaboração
e tratamento das notas preliminares ainda atravessou-me em névoa
imagens translúcidas, nas quais desaguam a realização intelectual
e a emoção do afeto que não se encerra: de lugares onde
alunos doutros tempos fizeram visitas maravilhosas; a percepção
da transpiração presente nos debates e da audição
cúmplice, dissolvendo em risos o nervosismo e a adrenalina de minhas
exposições em temas complexos ou dos alunos, quando de seus primeiros
seminários; a fraternidade do carinho dos depoimentos e das críticas
ao fim do Curso.
Agradeço de antemão o prazer de partilharmos essa curta e intensa
viagem. Advirto que ela não será simples: para termos sucesso
em cursá-la, fazendo seu estranho percurso, temos que estar abertos a
formas diferentes de trabalhar, pensar, interagir com esse algo agora, ainda,
estranho e diferente do que até aqui pensávamos que fosse o ensino
de História. Numa metáfora, teremos que caminhar juntos,
dependendo um do outro, como que olhando ao mesmo tempo para a frente (visão
prospectiva, do horizonte e do futuro), para trás (visão em perspectiva,
contemplando e recuperando o passado) e para nós mesmos (visão
sobre o presente, tão fugaz e que agora, já-era). Para fazê-lo,
caminhando, teremos que alternar momentos em que um de nós andará
de costas, olhando para trás, ao mesmo tempo que apoiado, ombro-a-ombro,
confiando no olhar do Outro, que andará olhando para a frente. Só
assim veremos o todo: vendo, por nós mesmos e vendo, também, com
o olhar do Outro. Assim, portanto, poderemos ver mais e melhor pois a partir
de diferentes pontos de vista. Para tanto, é preciso irmos ombreando,
de mãos dadas. Como fazê-lo sem estranhamentos? Talvez parte da
resposta esteja em irmos de mãos dadas. Assim sugere o eterno jovem,
Carlos Drummond de Andrade:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso a Vida e olho meus companheiros,
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles considero a enorme realidade.
Não nos afastemos. Não nos afastemos muito.
Vamos de mãos dadas.
O livro portanto que inicia é resultado de um trabalho coletivo, fundada em pessoas, alunas do Curso de Pedagogia de Niterói/UFF, com quem partilho cumplicidades, adesões, entusiasmo e um desejo sincero de aprender de forma fraterna, sabendo que a cognição articula-se ao sabor, ao sentimento ao prazer. Assim, bem-vindo ao tempo dessa leitura. Que se divirta, caminhando de mãos dadas pelas veredas da escrita para, num repente (quem sabe?) perceber-se co-autor e aprendiz!
Cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro,
Morro do Vintém, março de 2003
Armando Martins de Barros