Disciplina na Escola e Constituição da Subjetividade
Desde os gregos, sabemos
que a educação não se reduz à mera transmissão
de conhecimentos, mas que se trata de uma Paidéia, ou seja, de
um conjunto de normas, saberes e valores que regem uma comunidade humana.
Nesse sentido, a educação não visa apenas o ensino/aprendizagem,
mas, principalmente, a formação do homem, ou, em termos
mais contemporâneos, a constituição de uma subjetividade.
Sabemos também, com Foucault, que a instituição escolar
se estabelece no seio das sociedades disciplinares, quando a disciplina
se torna o mecanismo privilegiado pelo poder para a formação
de corpos dóceis e de subjetividades sem arestas. Ora, nesse caso,
a escola, enquanto instituição privilegiada de constituição
da subjetividade, só poderia ser vista como um instrumento de manutenção
da ordem social. Mas será que devemos reduzi-la a essa condição?
Perguntando de outro modo: seria a escola uma instituição
unicamente disciplinar? Suas práticas seriam sempre homogeneizadoras,
isto é, tratar-se-ia sempre da transmissão de conhecimentos,
normas e valores instituídos ou haveria na instituição
escolar um espaço para a emergência do singular e do ato
criativo? Afinal, que tipo de subjetividade é hoje produzida nas
escolas que compõem a nossa realidade social?
São estas as principais questões enfrentadas por Rosane
Albuquerque Costa neste livro, elaborado a partir de sua dissertação
de Mestrado em Psicologia Escolar. Todavia, esses problemas não
são abordados aqui apenas no plano da abstração teórica,
ou segundo conceitos que se apresentam de maneira puramente lógica,
desafeiçoada, como se pudéssemos simplesmente aplicar a
teoria de alguns autores como Foucault e Freud, por exemplo
às situações concretas das instituições
escolares. Este modo de proceder não seria compatível com
a autora
desta obra, com a garra, paixão e entusiasmo que sempre caracterizaram
o seu trabalho como professora primária da rede pública
estadual.
Rosane Costa foi capaz de exercer essa paixão sem descuidar da
reflexão crítica. É aí, justamente, que reside
o grande valor de sua escrita: ela combina o encontro afetivo e existencial
com seus alunos, exercido na experiência concreta de uma escola
da rede pública, a conceitos capazes de problematizar esse encontro,
os quais só adquirem relevância na medida em que se conectam
com a vida e com suas inquietações. Trata-se, portanto,
de utilizá-los na medida em que eles não se afastam da experiência,
mas a enriquecem, levam-na mais adiante, tornam-se ferramentas capazes
de conduzir a novas maneiras de pensar e de praticar as relações
entre professor e aluno, entre ambos e a instituição escolar,
entre a transmissão do instituído e a irrupção
do instituinte que se pode verificar numa escola concreta.
Assim, o livro inicia-se com um panorama histórico a partir do
qual poderemos entender a emergência das escolas tais como as conhecemos
hoje. A Paidéia grega e a formação do homem, Rousseau
e a concepção de educação na idade moderna,
a construção do sentimento de infância, o surgimento
da instituição escolar, a disciplina eclesiástica
e sua utilização na escola, as técnicas de sujeição
e de produção de saberes, tão bem descritas por Foucault,
esse panorama será desenvolvido para dar todo o seu peso à
questão que constitui a espinha dorsal dessa pesquisa: haveria
na escola alguma possibilidade de escape à dimensão saber-poder
que molda as subjetividades?
Rosane busca in loco a resposta a essa pergunta. Analisa desde a distribuição
do espaço físico até as normas institucionais de
uma escola da rede pública, ouve os alunos, lê suas redações,
dialoga com eles a respeito do modo como se sentem frente ao aparato pedagógico-disciplinar.
A pesquisadora, todavia, mantém os olhos e ouvidos abertos para
os ditos e os subentendidos das falas e dos textos. Desse modo, a discussão
conceitual apresenta-se com carne e sangue, desdobrando-se a partir da
experiência do dia-a-dia numa escola estadual semelhante a tantas
outras. Amparada pelo instrumental teórico de Foucault, mas também
no de Freud, Rosane Costa aponta a moldagem, mas, ao mesmo tempo, aquilo
que se furta ao molde na situação escolar.
Com efeito,
Freud reconhecia três tarefas como impossíveis: governar,
educar e psicanalisar. Seriam impossíveis na medida em que existe
uma dimensão de resistência à completa sujeição
às normas que regem as relações entre os homens (governo),
à total transformação de um ser humano num ser de
cultura (educação), à interpretação
de todos os processos psíquicos que ocorrem num sujeito (psicanálise).
Nesse sentido, poderíamos dizer que qualquer escola, governo ou
psicanalista sempre falham em seu projeto.
Falham? Talvez aí mesmo, onde se falha, resida a raiz da singularidade
subjetiva. Da mesma maneira, um aparato pedagógico-disciplinar
jamais consegue um êxito completo, pois na medida em que produz
uma subjetividade aplainada, produz, também, os atritos que a vitalizam.
Assim, a disciplina falha na medida em que traz consigo, inevitavelmente,
a indisciplina. Todavia, é justamente essa conjugação
entre a disciplina e a indisciplina que fornece a margem de transgressão
necessária à irrupção do novo.
Este livro nos mostra o modo como o novo se manifesta concretamente na
escola e os momentos em que ele termina por ser capturado pelas normas.
Mostra outros em que, ao contrário, uma singularidade se afirma
no dia-a-dia da experiência. Daí sua importância para
todos os que se interessam, direta ou indiretamente, pela educação
e pela constituição das subjetividades. A pesquisa de Rosane
Costa nos questiona e nos confronta, mas nos faz também acreditar
que existe, no trabalho social e institucional, uma dignidade capaz de
ser exercida.
Jô
Gondar
Professora Adjunta do Departamento de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade do Rio de Janeiro.
.