Humanismo e Tecnicismo na Formação Médica
As idéias hegemônicas
não resistem ao tempo. Também os sistemas que se impõem
como paradigmas únicos a gerenciar a vida humana são inevitavelmente
corroídos pelos ventos da História; e é ela, a história,
que desmascara os referenciais que se arvoram em únicos. Impérios,
religiões, reinados e ideologias que atribuíam a si o ser para
sempre, o ter vindo para ficar, só o conseguiram na medida em que ficaram
para sempre... nos anais da História como algo a não ser revivido.
A razão do desmoronamento é que o ser humano necessita de mais
de um referencial, sua constante procura de liberdade exige alternativas, quer
escolher, e toda hegemonia, qualquer que seja, põe em xeque esse desejo
de liberdade que o humano tem de gerenciar sua própria vida. Daí
que todo poder que se quer absoluto traz em suas entranhas a raposa que vai
corroer-lhe as vísceras.
Entretanto, por se erigir como absoluto, todo referencial hegemônico imiscui-se
em todos os ramos do conhecimento, em todos os ramos da atividade humana.
O tecnicismo é emblemático nesse universo de hegemonias. Filho
dileto e direto do reducionismo, tem lá seus encantamentos. A técnica
encanta por conseguir o máximo com o mínimo dispêndio; reduz
esforços, ganha tempo; é asséptica, não se contamina;
racional, não se coaduna com emoções; analítica,
recusa sínteses. O passo seguinte, inevitável, é reduzir
o complexo ao simples; o universal ao particular; o todo às partes, o
bom ao útil; enfim, a verdade ao dogma. Isso é o reducionismo.
E encanta.
O tecnicismo é emblemático porque, como todo referencial que se
embrenha por todos os interstícios da vida humana, está fadado
a ver surgir a insatisfação que quer, sim, a racionalização,
quer o mínimo desperdício de esforço e de tempo, quer o
racional, quer análises, mas anseia também pelo universal, pelo
todo, pelo bom, pela verdade. Quer grandes sínteses. O tecnicismo tolhe
esse anseio.
A insatisfação diante do reducionismo se mostra mais patente ora
numa atividade ora em outra, ora mais num período que em outro da História,
dependendo da intensidade e da abrangência do dogma que se quer enfiar
goela abaixo dos seres humanos em suas atividades e em seu modo de pensar.
Margarida Maria de Ramos mostra neste livro como essa insatisfação
vem se mostrando atualmente, depois de trezentos anos através dos quais
a cultura ocidental adotou a concepção do corpo humano como uma
máquina, tecnicamente sujeita a análises cada vez mais detalhadas,
decompostas. Isso é fascinante, uma vez que mente e corpo estariam estrategicamente
separados, dando à Ciência a confortável tarefa de dissecar
a máquina, atribuindo a doença a meras disfunções
dessa maquinaria que nada mais seria do que um conjunto de peças de engrenagem.
Uma peça não funciona bem? Conserta-se a peça! Isso é
tecnicismo reducionista.
Essa concepção, escreve Margarida Maria, está
sendo lentamente eclipsada por uma concepção holística
e ecológica do mundo, que não considera o universo como uma máquina,
mas um sistema vivo. Essa nova concepção enfatiza a inter-relação
e a interdependência essenciais de todos os fenômenos e procura
entender a natureza não só em termos de estruturas fundamentais
mas também em função de processos dinâmicos subjacentes.
Margarida Maria retoma toda a envergadura do termo universo e o aplica a um
ramo da atividade humana que é a Medicina. Seu livro é uma resposta
à grande pergunta que faz ao introduzir o leitor nesse universo: Será
que existe uma reflexão sobre a complexidade das relações
existentes entre os profissionais envolvidos nesse processo e a forma como é
desenvolvido o ensino-aprendizagem e o relacionamento que o futuro médico
terá com seu paciente?. O universo agora é tanto o processo
de formação do futuro médico quanto o paciente enquanto
tal, não mais reduzido à peça de Engenharia Mecânica,
mas contemplado dentro de contornos cujos limites são impermeáveis
a análises simplistas e que só confia seus segredos às
grandes sínteses compostas pelas tênues fronteiras entre o físico,
o psicológico e o social.
Ao convidar o leitor a percorrer com atenção este livro, vale
lembrar que quem o escreve é uma médica.
Augusto
Novaski
Professor Titular do Mestrado em
Educação UNISAL- Americana, São Paulo
Setembro de 2003