O Desfile e a Cidade
O carnaval seria a antítese
de tudo o que marca o desencantamento do mundo. Ele é festa, efervescência,
comunhão entre as pessoas. Ritual no qual a inversão
da ordem cotidiana estaria momentaneamente suspensa. Esta perspectiva, marcada
por um romantismo temperado, permeia um conjunto de análises sobre a
folia carnavalesca. Ordem/desordem, efervescência/cotidiano, são
pares de oposição que se insinuam na organização
de pensamento de vários autores.
O corso das elites, ao percorrer no início do século XX as avenidas
cariocas, não possui o mesmo significado, o mesmo sabor, da apresentação
das escolas de samba, hoje televisionadas, contidas ao exíguo espaço
do sambódromo, e cujas imagens circulam rapidamente através das
fronteiras transnacionais. Entre essas duas manifestações insere-se
a história da sociedade brasileira. Ela marca o compasso das músicas,
a eleição dos temas estéticos, a composição
da população, que desfila e assiste, brinca e degusta o evento.
O espetáculo mantém sua continuidade ao longo do tempo, por isso
é possível apreendê-lo historicamente, mas ele encontra-se
em constante metamorfose, diferenciando-se do passado e deixando claro que uma
época efetivamente passou. A abordagem proposta [pelo autor], uma história
cultural, ajuda o leitor a entender o conjunto de mudanças que o Brasil
conheceu.
É possível ler o livro num duplo registro. O mais evidente, uma
história cultural no qual a festa carnavalesca se desdobra e se modifica
ao longo do tempo. Mas ela traz ainda um tema para reflexão. Tampouco
a modernidade é um arquétipo, uma estrutura
à margem da história. Como a festa, ela somente pode existir ao
realizar-se numa sociedade concreta. Através do carnaval explicita as
transformações da modernidade brasileira, na sua diversidade ela
se desdobra em modernidades qualitativamente distintas, marcadas ora pela ingenuidade
dos anos 20, o otimismo desenvolvimentista dos 30 e 40, e o pessimismo que hoje
habita a efervescência administrada das indústrias culturais.
Renato Ortiz