capa do livro

Celso Furtado e a dimensão cultural do desenvolvimento

Rosa Freire d’Aguiar (Org.)

Este livro nasceu do encontro “Celso Furtado e a dimensão cultural do desenvolvimento”, organizado em novembro de 2011 pelo Centro Celso Furtado.

Mas não só. Desde que o Centro inaugurou, em 2009, a biblioteca de seu patrono, com todo seu acervo bibliográfico catalogado em linha, começou a ser consultada por estudantes e pesquisadores a respeito de trabalhos de Celso sobre as questões culturais, sem dúvida por ter sido ele ministro da Cultura por quase três anos, quando o ministério recém-nascia e praticamente tudo estava por fazer, a começar pela primeira legislação, por ele implementada, de incentivos fiscais à cultura. Pouco a pouco, as solicitações foram se estendendo a textos sobre inovação, tecnologia, criatividade. Em conversa com Pedro de Souza, então superintendente-executivo do Centro, pareceu-nos chegada a hora de promover uma reflexão mais abrangente sobre Celso, que o estudasse também como pensador de questões que vão além da economia. Afinal, uma das marcas de sua obra de mais de trinta volumes, traduzida em uma dúzia de idiomas, era a dimensão cultural do desenvolvimento, conforme já percebera, de forma pioneira, o economista uruguaio Octavio Rodríguez, para quem a produção intelectual de Celso se distingue da de outros estruturalistas por essa peculiaridade: o estudo sistemático do elo entre cultura e desenvolvimento.

Desde meados dos anos 1970 Celso foi expandindo a moldura teórica e recorrendo ao instrumental de outras ciências sociais para uma compreensão interdisciplinar do fenômeno do subdesenvolvimento. Mas foi na década seguinte que a imbricação com a dimensão cultural tornou-se mais explícita. Disse ele em 1984, durante um encontro de secretários de Cultura em Belo Horizonte: “Sou da opinião de que a reflexão sobre a cultura brasileira deve ser o ponto de partida para o debate sobre as opções do desenvolvimento”.

Quanto à interdisciplinaridade, vale lembrar como concluiu uma resenha a respeito de Sobre ética e economia, de Amartya Sen, seu amigo desde os anos 1950 quando ambos estudavam na Universidade de Cambridge. O livro de Sen, disse Celso, “nos leva a antever o caráter interdisciplinar que, no enfoque dos problemas sociais, prevalecerá no século que desponta. A idéia de uma ciência econômica pura será vista como um anacronismo. No caso da economia, essa interdisciplinaridade se apresenta como ampliação de seu marco epistemológico.”

 Cultura e desenvolvimento, pois, de um prisma interdisciplinar: este o fio que alinhavou o seminário de novembro de 2011, e, agora, a organização deste livro. Aqui estão onze pesquisadores de grande capacidade, de áreas diversas (veja-se a seção “Sobre os autores”). Todos já haviam estudado, alguns continuam a fazê-lo, o pensamento de Celso. Empenham-se numa releitura original que cruza as fronteiras da teoria econômica e revela terrenos insuspeitados. Ora pegam pistas apenas esboçadas por ele, ora abrem novas, consoantes com o entendimento plural do desenvolvimento – ou do subdesenvolvimento, como Celso preferia dizer. Ora aprofundam temas que ele sinalizou, ora expõem suas próprias reflexões, reportando-se à produção acadêmica mais recente.

Este livro divide-se em dois capítulos, cujos títulos são um clin d’oeil ao que Celso escreveu mais voltado para a cultura. O primeiro traz os artigos dos participantes do seminário de novembro de 2011. O segundo reúne dois textos que foram apresentados na mesa Celso Furtado, cultura e criatividade, durante o encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em outubro de 2012; e dois assinados por sócios do Centro Celso Furtado que têm se dedicado a essa temática.

Abre o volume o trabalho “Celso Furtado, desenvolvimento e transformação social”, de João Antônio de Paula. Trata-se de uma abrangente exposição sobre o pensamento social brasileiro e o lugar que nele ocupa a obra de Celso. Vale refletir sobre o que é dito acerca de seu projeto de desenvolvimento, defendido nos anos 1960 em que, superintendente da Sudene e ministro do Planejamento, Celso participou ativamente da conturbada vida política anterior ao golpe militar de 1964. Esse projeto, escreve João Antônio, era a revolução social possível no Brasil. Observe-se também a fina ironia com que glosa a tese de que o Brasil está em vias de superar o subdesenvolvimento, se já não o fez – o que, a seu ver, embutiria o paradoxo de tê-lo feito sem as indispensáveis reformas estruturais defendidas por Celso.

Da necessidade de um projeto para superar o subdesenvolvimento também trata o texto de Gilberto Bercovici e Alessandro Octaviani, “Direito e subdesenvolvimento: o desafio furtadiano”. Aqui, o enfoque é jurídico. Gilberto e Alessandro coordenam na faculdade de direito da USP um grupo de pesquisa sobre as relações entre o direito, especialmente o direito público, e os mecanismos para se enfrentar num quadro democrático os impasses do subdesenvolvimento, a partir do pensamento de Celso. Especialmente feliz é o propósito dos autores de ressaltarem a dimensão nitidamente emancipatória da Constituição de 1988, que traz todos os elementos necessários para se compor um projeto de construção nacional, tão caro a Celso.

Em “Atualidade da teoria do subdesenvolvimento de Celso Furtado”, Plinio de Arruda Sampaio Jr. retoma a ideia do mimetismo cultural como elemento-chave do subdesenvolvimento, esse processo decorrente da dinâmica da expansão capitalista cujo fulcro é a irradiação do progresso técnico. Instigante é a conclusão de seu artigo, em que afirma que, embora ausente do ensino da economia, o pensamento de Celso “é um fantasma que incomoda a burguesia”, posto que como o subdesenvolvimento padece de solução, “a cada marco histórico os problemas se reapresentam com força redobrada.”

César Bolãno, coorganizador do encontro de novembro de 2011, tem se dedicado a uma pesquisa mais ampla sobre a cultura no quadro de seus estudos sobre a economia política da informação e da comunicação. O texto “Considerações sobre o conceito de cultura em Celso Furtado” analisa diversas de suas obras teóricas em busca de elementos que emprestem coerência ao instrumental necessário para o entendimento da atual crise do capitalismo. Nelas Bolaño também pretende detectar novas perspectivas que levem a se pensar um projeto nacional em termos de cultura e desenvolvimento.

Bruno Borja tenta apreender a dimensão cultural da obra de Celso a partir de dois enfoques precisos: por um lado, traçando a gênese e evolução da teoria do subdesenvolvimento, por outro, adotando uma metodologia baseada no materialismo histórico. “Notas sobre a dimensão cultural na obra de Celso Furtado” cobre quatro décadas de produção teórica, de meados dos anos 1940 a fim dos 1980. Bruno analisa ainda as várias controvérsias teóricas de que Celso foi objeto, as concordâncias e discordâncias em relação a seus trabalhos, salientando sua centralidade na evolução do pensamento social brasileiro.

Outro aspecto não precipuamente econômico é lembrado no texto que fecha o primeiro capítulo: “Inovação em Celso Furtado: criatividade humana e crítica ao capitalismo”. Seu autor, Eduardo da Motta e Albuquerque, nos mostra a presença na obra de Celso do tema da inovação, sempre a partir da dialética inovação/imitação. Singularizando o livro em que esse tema é tratado mais a fundo, Criatividade e dependência, ele ressalta que a inovação vem associada, para o autor, à criatividade humana e à dinâmica transformadora, sendo assim um componente essencial para se entender o subdesenvolvimento e o fosso que se alarga entre centro e periferia.

O primeiro dos artigos apresentados na reunião da Anpocs, em outubro de 2012, é o de Thales Novaes de Andrade, “Celso Furtado: um pensador da criatividade e da ciência”, e aborda o problema da tecnologia nos países subdesenvolvidos. Aqui, o livro Criatividade e dependência serve de tutor para amparar a argumentação de Thales sobre o impacto da internacionalização da ciência, com seus critérios de medição e avaliação, nas instituições acadêmicas brasileiras. A seu ver, o mimetismo que Celso apontava nas elites periférias ao importarem padrões de consumo dos países centrais se reproduz no sistema brasileiro de ciência e tecnologia, enquanto não trilhamos um caminho mais nosso.

Marcos Costa Lima foi dos primeiros pesquisadores a ressaltar a importância de Celso como autor fundamental para o campo teórico das relações internacionais. Em “Cultura e pós-colonialidade: afinidades intelectuais entre Celso Furtado, Leopoldo Zea e os Subaltern Studies”, ele traça um estimulante paralelo entre Celso, o filósofo mexicano que melhor situa o lugar da América Latina na história da cultura universal, e o grupo de acadêmicos indianos que, desde os anos 1980, repensaram sua própria história a partir dos “subalternos” como agentes de mudança. Todos eles, diz Marcos, coincidiriam ao apontar, senão denunciar, a modernização ocidentalizada em detrimento das necessidades das grandes massas da população, o desprezo das elites pelas culturas locais, a dependência dos padrões econômicos e sociológicos estabelecidos.

Jair do Amaral Filho se concentra nos nexos entre “Cultura, criatividade e desenvolvimento”. Vivemos, diz ele, um momento inédito em que a necessidade, a cultura e a criatividade se uniram para constituir a chamada economia da criatividade, com a decorrente expansão do tempo livre de lazer e entretenimento. Daí o fantástico incremento, desde final do século XX, do mercado de atividades culturais paralelo à globalização. Jair trata também da elaboração dos conceitos cada dia mais correntes de indústria e economia criativas e atividades culturais. E lembra que Celso já há trinta anos definia que o objetivo da política cultural deve ser o de “liberação das forças criativas da sociedade” a fim de abrir espaço para que a criatividade floresça e possibilite a liberdade de criar, “a mais vigiada e coatada de todas”, alertava então.

Fecha este livro o ensaio de Carlos Brandão, “Celso Furtado: subdesenvolvimento, dependência, cultura e criatividade”. É um texto de síntese sobre a originalidade da proposta teórica de Celso, orientada para a construção de “trajetórias mais autônomas, ancoradas num patrimônio cultural específico”. Essa tarefa, conclui Brandão, é politicamente árdua, pois “desenvolvimento é tensão, é distorcer a correlação de forças, importunar diuturnamente as estruturas e coalizões tradicionais de dominação e reprodução do poder, é exercer em todas as arenas políticas e esferas de poder uma pressão tão potente quanto o é a pressão das forças que engendram e perenizam o subdesenvolvimento.”

Em graus diversos, os onze pesquisadores que aceitaram o convite para participar deste livro sublinham o conteúdo político e reformista subjacente à luta pela superação do desenvolvimento que marcou a vida pública de Celso. E trazem para o presente, com rara competência, aspectos relevantes e mesmo inesperados de sua herança intelectual. É com satisfação que registramos que, quase dez depois da morte de Celso Furtado, sua obra guarda intocável atualidade. Afinal, como ele escreveu certo dia, “nem sempre as ideias ficam obsoletas com o passar do tempo; por vezes, ganham em vigor”.


Rosa Freire d’Aguiar

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