Prefácio
A pesquisa de Cristiano Barreira, no panorama dos estudos dedicados à história das ideias psicológicas, mostra-se extraordinária e excepcional. A novidade da sua impostação consiste no fato de ter ido além de uma simples descrição histórica, chegando a descobrir as motivações de fundo que fazem nascer uma “visão do mundo”. Neste sentido, o trabalho se valeu da união entre a Psicologia e a Fenomenologia, união que pouco frequentemente é utilizada, apesar de desejada por expoentes da escola fenomenológica que se constituiu, graças ao fi lósofo Edmund Husserl, na Universidade de Friburgo, na Alemanha, na primeira metade do século XX.
Uma das ideias norteadoras de Husserl era fornecer ao psicólogo esclarecimento acerca das noções de fundo que dizem respeito à estrutura do ser humano, noções necessárias para proceder, em seguida, a um esclarecimento do campo específi co da psique. Dessa forma, a análise fenomenológica identifi ca uma série de atos vividos pela consciência, através dos quais é possível identifi car as características do ser humano, na sua estratifi cação em corpo, psique e espírito. Tudo isso poderia ser útil a qualquer outro pesquisador que se interessasse pela compreensão até ao fundo das posturas humanas, das produções culturais, dos comportamentos éticos. Esse objetivo se atinge através da escavação, semelhante à do arqueólogo, realizada para dentro da subjetividade humana; trata-se de colocar em evidência a estrutura presente em todos os sujeitos e, portanto, a ponto de justifi car também a dimensão intersubjetiva na qual todos os seres humanos vivem. A análise dos vividos coletivos permite, de fato, traçar a origem das diversas visões do mundo e, ao mesmo tempo, estabelecer a existência de um terreno comum para a humanidade, que torne possível a compreensão recíproca entre os seres humanos.
É por meio deste tipo de investigação que Cristiano Barreira analisa um fenômeno cultural que parece ser absolutamente estranho à cultura brasileira, mas que se difundiu também no Brasil: o fenômeno do karate, não como simples atividade física, mas como visão do mundo complexa. Sua investigação mostra todos os seus componentes e a articulação das suas estruturas quando submetido a uma investigação ao mesmo tempo psicológica e fenomenológica. Isso permite obter um duplo resultado: compreender o que é tal fenômeno, mas também entender as razões de sua difusão num contexto cultural diverso, na medida em que a diversidade das culturas encontra um denominador comum nas dimensões profundas do ser humano.
Resolve-se, assim, um problema de grande relevância, que costuma se apresentar como um dilema: como encontrar a unidade da humanidade comum em meio à multiplicidade das expressões culturais? Frequentemente, aceita-se somente uma visão relativista das culturas, porque não se identifi ca o ponto focal do terreno comum que justifi ca a unidade e, ao mesmo tempo, também a diversidade.
Deste ponto de vista, a pesquisa de Cristiano Barreira tem o mérito de ter identifi cado este ponto focal, que permite analisar até ao fundo as características de ambas as culturas – a oriental e a ocidental –, mantendo-as em sua autonomia própria, na medida em que também mostra sua possível compreensão recíproca.
Não se pode silenciar também acerca de outra contribuição importante da pesquisa que se apresenta aqui, que consiste no trabalho de escavação dentro do karate mesmo, que é examinado com grande perícia, através de algumas fi guras eminentes de mestres e de seus ensinamentos; isso permite colocar em evidência o tipo de mentalidade que o caracteriza. Este tratamento, por si só, já seria de grande valor, mas, como se disse, o autor não parou aí.
Os resultados atingidos pela investigação de Barreira revelam- se, portanto, múltiplos, estratifi cados e conectados uns aos outros de modo muito interessante e convincente. Trata-se não apenas de uma “história das ideias”, que analisa uma expressão cultural particular, mas de uma pesquisa que se localiza nos limites entre uma antropologia psicológica, a antropologia fi losófi ca e a antropologia cultural, utilizando, de modo coerente, as três perspectivas, até ao ponto de poder ser lida pelo psicólogo, pelo fenomenólogo das culturas e das religiões e pelo antropólogo cultural. A visão do mundo analisada aqui mostra, de fato, uma complexidade de planos que convergem de modo interessante, tendo como fundo uma perspectiva religiosa que demonstra o caráter insuprimível desta dimensão nas produções culturais humanas.
Angela Ales Bello
SUMÁRIOSUMÁRIO
Prefácio
Apresentação
Karate e Psicologia: do entendimento à compreensão
Delimitação da proposta
Introdução
A interterritorialidade paradoxal
Karate: as ideias psicológicas do caminho
Por que uma história para as ideias psicológicas no karate?
Entre história e lendas
Reminiscências históricas do karate
Objetivos do karate: os documentos
Bubishi: o documento secreto
Sokôn Matsumura (1809-1899): o verdadeiro budo
Anko Itosu (1830-1915): o nascimento do karate moderno
Gichin Funakoshi (1868-1957): sua vida
O karate como prioridade de Funakoshi
Contra Funakoshi
Panorama: as ideias psicológicas na obra de Gichin Funakoshi
Capítulo 1
Análise documental
O caminho do corpo
Kime e Sun-dome: entre o corpo e o espírito
Zanshin: o espírito de luta
O caminho do espírito
As duas vias do karate shotokan
Unissonância e dissonância do Caminho
O modelo do kime
O modelo do sun-dome
Capítulo 2
Arqueologia fenomenológica das culturas: uma metodologia
Fenomenologia: origens e contrastes
Um método fiel ao objeto: contra o positivismo
O idealismo e o realismo
A subjetividade como itinerário da objetividade: por uma origem do fato
Arqueologia das culturas
O universo na consciência: a intencionalidade como ponto de partida
A noética e a hilética: traços gerais de um método de comparação cultural
Capítulo 3
Arqueologia da intenção do caminho do karate
Kime
Sun-dome
Escavação rumo ao momento hilético do kime
A estratificação instrumental e moral
Análise dos atos
Escavação rumo ao momento hilético do sun-dome
O Corpo como Sacriticio: Yasutaka Tanaka e a vivência do sun-dome como ascese moral
O Corpo como Vontade: Yoshizo Machida e o kime como realização da vontade
O Corpo como Encontro: Hiroyasu Inoki e o kime como acesso à alteridade
O Corpo como Purifi cação: Taketo Okuda e o retorno à origem
Capítulo 4
Discussão
A capacidade de penetração do religioso
A peculiaridade do caminho
O pensamento e o não pensamento
A pedagogia do erro
Reflexão negativa e moralidade negativa
Reflexão positiva e moralidade positiva
Da diferença à unidade
Da espacialização na tensão intersubjetiva
Da temporalidade
Capítulo 5
Conclusão
Análise psicológica e fenomenológica do caminho do karate
Três eixos
Abandono de uma categoria
Análise histórica e fenomenológica
Análise psicológica
Concluindo
Referências Bibliográficas
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