Conselhos de Saúde
Informação, poder e política
Clóvis Ricardo Montenegro de Lima
Esta dissertação
sobre informação, poder e política social não é
uma discussão de caso, mas sim um exercício do pensamento a partir
de um caso: o processo de legalização e de organização
do Conselho Municipal de Saúde de Joinville, em Santa Catarina. O caso
opera como espaço de encontro de acontecimentos e de conceitos, que são
articulados em diferentes tópicos.
Os conselhos de saúde são uma esfera pública de deliberação
das políticas de saúde em todos os níveis de governo, que
sintetizam o princípio constitucional de participação comunitária
no Sistema Único de Saúde e que estão regulamentados na Lei
Federal no 8.142, de 28 de dezembro de 1990.
Os conselhos de saúde podem ser reduzidos a um espaço burocrático
de acordos entre segmentos previamente estabelecidos, criados apenas para cumprir
as exigências da legislação. Ou podem ser espaço de
expressão de interesses que só são tornados públicos
com ampliação da comunidade de relevância na discussão
das políticas de saúde.
Esta amplitude de possibilidades compreende, em verdade, as múltiplas possibilidades
de composição das forças sociais em conflito nas sociedades
contemporâneas. Estes conflitos estão diretamente associados com
a crise da modernidade e de suas utopias, que estão evidentes inclusive
nos indicadores da qualidade material de vida da população brasileira
e na ruína dos modos de representação política e sindical.
Esta dissertação não usou um método, mas articulou
diversos instrumentos de trabalho que foram mobilizados de acordo com os diferentes
contextos. De certo modo, pode-se dizer que o autor funcionou como um interlocutor
privilegiado em todo o processo de legalização e organização
do Conselho Municipal de Saúde de Joinville.
Em um cenário em que a experiência de participação
nos termos da Lei Federal no 8.142/90 é escassa, o trabalho de fala na
esfera pública e de encontro com diversos segmentos organizados da sociedade
funcionou como uma verdadeira alavanca.
Pode-se mesmo dizer que os acontecimentos foram articulados com diferentes demandas
e necessidades emergentes, produzindo um espaço de composição
que canalizou poderosos interesses contra o governo municipal de Joinville. O
que ocorreu foi uma composição social que, sobre o ponto de apoio
do conhecimento preciso das leis, impulsionou a participação comunitária
nas políticas de saúde.
O pressuposto de trabalho fundamental é a micropolítica, isto é,
uma dimensão da ação política que, sem ser menor,
concentra suas forças sobre temas específicos e busca a consolidação
de uma base ampla de sustentação. Desse modo, foi possível
aproximar os sindicatos operários das associações de moradores
e das representações dos profissionais de saúde.
A ética da micropolítica abandona o fardo das grandes narrativas
e a âncora dos determinismos ideológicos. A micropolítica
penetra nos capilares do tecido social para compor interesses e produzir mudanças
para além das formas tradicionais de representação e de governo.
A recuperação dos acontecimentos não tenta produzir um encadeamento
de fatos a partir de um fio de condução de sentido que explique
a priori ou a posteriori todos os detalhes de uma história que não
tem origem fixa nem destino definido. Os conselhos de saúde são
apenas uma perspectiva para olhar os acontecimentos e para manusear os conceitos,
que se cruzam de vários modos e em vários momentos.
A estética da genealogia na construção do texto tenta fugir
das prisões da história das datas e dos heróis e da geografia
que se fecha para as forças que lhes são externas. A definição
do período entre 02 de abril de 1990 e 31 de dezembro de 1992 no espaço
do município de Joinville funciona como referência frágil
de uma experiência que transcende estas demarcações.
A política de saúde opera como elemento fundamental na produção
e na reprodução social moderna, quando a medicina é posicionada
como um encontro de produção de saber e de exercício de poder
que funciona na disciplina dos corpos e no governo das populações.
A medicina acontece na sociedade, dentro dela e como instrumento de poder. É
um saber da política social.
As formas da política de saúde mudam conforme as relações
de forças e são, portanto, contextuais. A expansão da medicalização
social corresponde ao processo de burocratização e de racionalização
das esferas do mundo e da vida. Cada exercício de poder opera com dominação
e com resistência, conflito que produz diferentes políticas sociais.
A participação comunitária é, por um lado, um esforço
do Estado e dos seus aparelhos políticos e sindicais para legitimar a ação
social, e, por outro, uma exigência da sociedade para recuperar esferas
públicas onde possam ser deliberadas composições de interesses
que contemplem o princípio constitucional de universalização
assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os conselhos de saúde são uma proposição da legislação
federal que cria um espaço deliberativo permanente das políticas
de saúde. Eles devem ser compostos por representantes do governo, dos prestadores
de serviços, dos profissionais de saúde e por 50% de representantes
da comunidade usuária.
Os conselhos de saúde são o produto amadurecido entre a VIII e a
IX Conferência Nacional de Saúde, entre 1986 e 1992. Se em 1986 os
conselhos eram apenas uma miragem teórica que deveria ser consultada sobre
as políticas de saúde, em 1992 foram inúmeros os relatos
de experiências muito ricas em termos de cidadania, de democracia e de mudanças
nas políticas sociais. Joinville pode incluir o seu caso neste último
grupo.
Joinville é uma cidade industrial no nordeste de Santa Catarina, com quase
meio milhão de habitantes, e que se tornou um centro urbano típico:
periferia sem infra-estrutura e carregada de patologias da pobreza e um centro
capaz de produzir belíssimos cartões postais das casas de enxaimel
com seus jardins floridos.
A existência de grandes corporações industriais interfere
nas formações subjetivas locais, particularmente pelo modo como
se compõem os interesses do capital e do trabalho. A existência de
mais de 80 mil operários industriais evidencia o poder de um certo feudalismo
industrial nas relações sociais.
É no espaço dessa colônia alemã invadida por migrantes
em busca de empregos nos últimos quarenta anos que se situam os acontecimentos
de nosso caso de experiência com os conselhos de saúde. O período
em que se passam os acontecimentos vão da promulgação da
Lei Orgânica do Município até o fim do mandato do governo
municipal que tanto se opôs à legalização e à
organização do Conselho Municipal de Saúde.
Nosso relato não tem heróis, não tem cronograma de eventos,
assim como tenta mostrar que não existe exatamente uma origem, do mesmo
modo que não afirma o que acontecerá com o Conselho Municipal de
Saúde criado. Ele tanto pode se posicionar como espaço público
de expressão de interesses sempre desestabilizadores, como pode se transformar
em uma máquina burocrática de filtro seletivo das demandas e das
necessidades sociais.
O caso dá o que pensar. E duas são as trilhas que seguimos para
tentar articular os conceitos com os acontecimentos. Por uma via, estudamos a
ética da discussão de Jurgen Habermas. Por outra, estudamos a microfísica
do poder de Michel Foucault e a micropolítica de Félix Guattari.
Essas duas trilhas seguem paralelas e talvez só se encontrem no infinito.
Não existe a preocupação de produzir uma síntese que
explique e capture todos os acontecimentos em uma lógica de sentido. Existe
sim o agenciamento do desejo no espaço dos conselhos de saúde enquanto
exercício ético de uma micropolítica que exigiu discussão
e argumentação.
Os conceitos de ética em Habermas e Guattari abandonam os núcleos
de dogmas morais e se situam como exercícios sociais que querem operar
com transformações no campo da subjetividade, seja pela comunicação
orientada pelo entendimento, seja pela formação das máquinas
de guerra produtoras de singularidades.
Não estamos preocupados com os conflitos que os próprios autores
produzem entre suas teorias. O Habermas desta dissertação talvez
não se reconheça no próprio autor alemão, assim como
o Guattari talvez não seja o analista francês. Existem aqui extrações
e colagens de conceitos de acordo com o interesse desta dissertação,
muitas vezes fora do lugar para o qual foram criados.
É assim que podemos reproduzir longos trechos de citações
dos autores sem que estejamos necessariamente reproduzindo a aproximação
de conceitos supostamente originária. O que existe presente é o
desejo de ir além das fronteiras das estratégias do poder, das burocracias
restauradoras, e tentar encontrar as linhas de fuga, de diálogo e de singularização
subjetiva.
O pensamento vai além do próprio território sugerido pelo
caso, pois sabe que existem apenas esboços de uma existência menos
ameaçada pela mediação racional e tecnológica. Ao
mesmo tempo, não se está obcecado em tentar reencontrar uma totalidade
perdida da vida social. Estamos divididos e talvez seja melhor assim.
O que esta experiência com os conselhos de saúde indica é
que estamos longe de poder afirmar, que as articulações de interesse
não têm mais espaço para se afirmarem enquanto ação
coletiva, mas também não conseguimos fazer com que estas experiências
não se cristalizem em composições burocráticas.
Abrimos um caminho de investigação. Agimos no sentido de mudar uma
situação que excluía amplos segmentos sociais das discussões
e das deliberações das políticas de saúde. Acreditamos
que os conselhos de saúde possam ser esferas públicas produtoras
de legitimações. Os acontecimentos continuam se sucedendo, sem qualquer
ordem e sem se submeter a quaisquer represas construídas para aprisioná-los
em um manual de instruções.