O Triunfo do Falo
Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas Clássica
Não será
exagero afirmar que um dos aspectos da vida dos antigos gregos que mais tem
despertado curiosidade (e boa dose de desconcerto) nos tempos modernos diz respeito
ao modo como praticaram a sexualidade, melhor, como dela trataram em pinturas
e textos. Recordo-me o quanto uma colega, a propósito dos poemas de Teógnis,
se sentia constrangida de abordar as declarações do poeta dirigidas
ao amado Cirno, escapando de enfrentar a questão da importância
do contexto amoroso para os ensinamentos relativos à virtude. O que dizer
do visitante desavisado dos museus onde se encontram exemplares da pintura grega
que hoje trataríamos de erótica (com suas cenas curiosamente gravadas
no vasilhame em cerâmica) ou do leitor das comédias de Aristófanes,
em que abundam referências ao sexo capazes de ainda escandalizar ouvidos
mais sensíveis? Para muitos de nós, modernos, que nos habituamos
com padrões morais vitorianos ou, mais exatamente, aprendemos
a ver neles algo de idealmente virtuoso os discursos e imagens dos gregos
provocam extrema estranheza, quando não autêntico choque.
Nesse contexto,
tudo o que diz respeito às representações que hoje se tratam
como homoeróticas implicam um grau a mais em termos de dificuldade
de compreensão, sobretudo em vista da liberdade com que comparecem em
pinturas e textos. Georges Dumézil recorda como, na segunda década
do século XX, seu professor, o ilustre helenista Émile Bourguet,
em curso na Sorbonne, comentando a cena do Banquete de Platão
em que Sócrates recusa os favores de Alcibíades, alertava seus
alunos: não se ponham a imaginar coisas!, como se o texto
não fosse suficientemente claro. A recusa está em relação
direta com o incômodo de admitir-se que num local de tão elevada
reflexão, como são os diálogos platônicos, se encontrem
não só testemunhos de práticas homoeróticas, quanto
até seu elogio. Acrescente-se ainda que foi nessa esfera que se procedeu
a uma sorte de descobrimento do amor na Grécia, com a produção
de poetas como Safo e Anacreonte, bem como a mitologia conhece entrechos, como
o do rapto de Ganimedes por Zeus, tratados sem nenhuma conotação
pejorativa ou condenatória. Mais surpreso ainda se torna o recebedor
quando, enfim, descobre que a divisão que hoje parece natural entre homossexualismo
e heterossexualismo não é funcional para os antigos, uma vez que
suas práticas sexuais e o discurso sobre elas são regulados por
temporalidades, espacialidades e normas de conduta diferentes.
O esforço
de compreensão tem impulsionado estudiosos a proporem chaves de leitura
diversas, como o fizeram, nas três últimas décadas do século
passado, por exemplo, Kenneth James Dover, em Greek homosexuality (1978),
livro que procede a extenso inventário e discussão das fontes
literárias, epigráficas e iconográficas sobre o tema; Bernard
Sergent, com Lhomosexualité dans la mythologie grecque (1984),
que, como o título indica, se concentra no material fornecido pelas mitografias;
e Claude Calame, em seu LÉros dans la Grèce antique
(1996), onde trata do homossexualismo no contexto mais amplo das práticas
e discursos eróticos. Assim, pode-se dizer que, desde o artigo inaugural
de Erich Berthe, publicado em 1908 na revista Rheinisches Museum (Die
dorische Knabenliebe, ihre Ethic, ihre Idee), o qual rompeu com a abordagem
tradicional do assunto, envergonhada e preconceituosa, muito se avançou
no século XX em termos de conhecimento. O que não significa que
as possibilidades de leitura se tenham esgotado ou que se possa prescindir de
novos avanços. Contudo, há agora uma vantagem, a de que se podem
recusar dois extremos indesejáveis: a detração e a apologia.
A contribuição
do livro de Daniel Barbo, O triunfo do falo, está em aproveitar
o que se produziu antes e propor uma nova leitura do homoerotismo grego, alinhando-se
com os historiadores da cultura que investigam os processos sociais de
subjetivação e de construção de identidades.
De modo inteligente, o autor aciona o arsenal teórico que lhe fornecem
as correntes da poética cultural do desejo, do imaginário
social e das culturas políticas, dialogando especialmente
com Michel Foucault, Bronislaw Baczko e Serge Berstein. Conta ainda com
outros interlocutores privilegiados, na esfera dos estudos gregos, como David
Halperin, John Winkler e Froma Zeitlin, os quais propõem uma interpretação,
na linha construcionista, segundo a qual as experiências eróticas
são construções culturais, logo, categorias
históricas, e não categorias universais ou naturais. Assim,
termos e conceitos como sexualidade, homossexualidade
e heterossexualidade são tratados como criações
recentes, não podendo ser aplicados indiscriminadamente a qualquer época
ou cultura, incluindo-se a grega.
Essa postura teórica
fornece a Daniel Barbo um ponto de referência para abordar a documentação
antiga, em busca de compreender o que estruturava, na Atenas clássica,
a relação homoerótica entre o erastés e o
erómenos (o amante e o amado), tanto a que se tinha por virtuosa,
quanto a que se situava na esfera do vício. Recusando as categorias anacrônicas
acima elencadas, ele conclui que as relações eróticas
atenienses eram estruturadas, fundamentalmente, pelas relações
de poder, expressas em imagens que compõem uma verdadeira cultura
falocêntrica, ou seja: uma cultura em que as posições eróticas
dos indivíduos se identificam com suas posições sócio-políticas.
Dessa perspectiva,
ele passa em revista dois discursos de Ésquines com destaque para
o Contra Timarco , textos de Platão e as comédias
de Aristófanes, selecionando dois aspectos para análise: a representação
do masculino/feminino e a construção da polaridade infra-masculina.
Os três tipos de corpora permitem uma abordagem multifacetada,
situando a análise do homoerotismo numa perspectiva cultural mais ampla,
em que se torna possível perceber como se entrelaçam relações
eróticas e de dominação.
Com efeito, jovens,
mulheres, estrangeiros e escravos compartilham da mesma privação
de direitos políticos, um traço que permeia todas as demais relações
sociais, estabelecendo uma fronteira criada pelo discurso masculino através
de sua representação do feminino. Nesse contexto, se a
mulher é dominada de todas as formas, também o é
o erómenos, um sujeito dominado (...) na esfera política
e na esfera erótica, salvaguardada a sua maturidade ulterior. O
respeito aos limites assim estabelecidos é que conforma a relação
virtuosa e sua ultrapassagem estigmatiza os que a empreendem como efeminados
(a exemplo de Agatão, conforme Aristófanes), ou como prostitutos
(como Ésquines acusa de ter sido Timarco). Noutros termos: a virtude
do erómenos não se encontra na busca de seu próprio
prazer, mas em assumir o papel de objeto de prazer.
Finalmente, a abordagem de Daniel Barbo ressalta a importância de considerar-se a interdependência cultural entre práticas sociais e experiências subjetivas, em qualquer esfera, para concluir que, no que diz respeito à Atenas clássica, o falo domina duplamente na esfera política e na esfera erótica. Daí o título da obra, que pretende desvelar o que o discurso masculino antigo pretendeu deixar velado: o triunfo do falo.
Jacyntho
Lins Brandão
Universidade Federal de Minas Gerais