Luiz Carlos Sarmento
Crônicas de uma Cidade Maravilhosa
José Amaral Argolo e Gabriel Collares Barbosa (orgs.)
Ontem, somente
ontem e poucos minutos antes que a emissora de televisão aberta
da minha preferência começasse a transmitir (terrível ironia!)
o que a crítica especializada classificava de uma deliciosa comédia
tive a notícia da morte (aos 55 anos, num leito simples de enfermaria
do Hospital Municipal Souza Aguiar) de Luiz Carlos Sarmento. E esta triste notícia
me foi dada, durante breve conversa telefônica, pelo companheiro Ubirajara
Moura Roulien, o Bira, um dos excelentes repórteres que o Jornal do
Brasil mantinha em sua espinha dorsal entre os anos 1970 e o
início da década de 1980.
Morreu Luiz Carlos
Sarmento e eu fiquei ainda mais surpreso quando soube das circunstâncias
do seu final melancólico: um ataque cardíaco no interior do modesto
apartamento (emprestado por uma tia) onde morava com a mulher, Aleina, numa
das ruas mais tradicionais do Centro da Cidade: a Gomes Freire.
À tristeza
da morte desse extraordinário repórter mesclou-se num átimo
do pensamento a inutilidade da glória que salpicou tantas vezes
sua carreira jornalística: centenas de manchetes e chamadas de primeira
página, crônicas cativantes por sua delicadeza e conteúdo
humano, elogios a mais não poder nos diários onde exerceu a profissão
com zelo apaixonado e sólida competência.
Era um caçador
de notícias, desses que aparecem vez por outra e fazem a alegria
dos editores pela sensibilidade expressa no texto e criatividade incomuns.
Eu o conheci no Globo, segunda metade daquela tristemente conhecida como
década do ódio (1970-1980); os cabelos razoavelmente
compridos, a boca praticamente oculta pelo imenso bigode daqueles que
vemos nos álbuns de fotografias do século XIX , os dedos
das mãos amarelados pela nicotina das não sei quantas carteiras
de cigarros que fumava diariamente.
Eu era relativamente
novo na Grande Imprensa; minha experiência (até então)
limitava-se a uma interessante (e tensa!) passagem por modestos jornais alternativos
que proliferavam nas metrópoles do País na sua quase totalidade
contrários ao regime político de exceção
e, em Luiz Carlos Sarmento, encontrei um expert no fascinante mundo da
Reportagem Policial.
Durante aproximadamente
seis anos tempo em que trabalhei no Globo (sob a orientação
séria e precisa de Evandro Carlos de Andrade) muito aprendi com
ele e outros profissionais que menciono por dever de justiça: Ely Moreira,
Milton Coelho da Graça, Aguinaldo Silva e Luciano de Moraes (este último,
seguramente, um dos melhores pauteiros do País).
Com Sarmento,
porém, a conversa era diferente. Morávamos próximos e,
com certa freqüência, conversávamos horas a fio, até
virando noites. É verdade que ele gostava de beber (um uisquinho
aqui, um chopinho ali...) e, às vezes, exagerava na(s) dose
(s). Mas a sua prosa era das melhores, tinha fascinação pelo Rio
de Janeiro e, além disso, memória fotográfica para nomes
de pessoas e de lugares, o que lhe assegurava excelente performance como
contador de histórias.
No ambiente da
Redação muitos de nós, jovens repórteres (alguns
atualmente bem situados no mercado profissional), observávamos com admiração
aquele jornalista de gestos largos e nervosos, por vezes alucinado, tiquetaquear
apressadamente na primeira Remington que encontrava e, com a precisão
instintiva do artista, construir imagens belíssimas (dramáticas
ou delicadas) sobre os fatos que presenciara.
Quanto a mim,
com a curiosidade típica do aprendiz, aguardava o momento em que ele
finalmente entregava o texto ao chefe de reportagem, pegava a cópia destinada
ao Controle da Produção e lia sossegadamente (antes dos outros)
a notícia que redigira.
Diferentemente
da maioria dos profissionais de imprensa da sua geração, Luiz
Carlos Sarmento foi, simultaneamente, repórter e personagem. Antes, durante
e depois da sua passagem pela Redação do Globo, onde, aliás,
trabalhavam algumas das melhores cabeças do jornalismo brasileiro: de
Janus Lengyel (correspondente em Genebra) a José Pretextato de Assis;
de Guilherme Heringer e José Carlos Monteiro a Affonso Cascon; de Sonia
Coutinho a Deodato Maia, entre outros talentos.
Audácia,
Audácia...
A conversa ao
telefone terminou. Despeço-me do velho e querido companheiro de lutas
Bira e, em pensamento, volto mais uma vez à Redação na
rua Irineu Marinho (a comédia anunciada e televisionada já não
faz mais sentido).
Lembranças:
estávamos em plena Semana Santa e lá pelas 16 horas conforme a
programação antecipada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, teria
início a Procissão do Senhor Morto. Iram Frejat (editor
local, falecido em 1994 no RJ, tão-somente três linhas no obituário
do próprio jornal onde trabalhou com dedicação durante
17 anos) chegou por volta das 14h30min e encontrou sobre a sua mesa (habitualmente
repleta de papéis e correspondência variada) um belíssimo
e pitoresco texto descritivo elaborado por Sarmento na parte da manhã
sobre aquele evento.
Mas como?
(indagou Frejat, bastante irritado). A Procissão sequer começou
e você escreveu sobre o que não viu? Vá cobrir direito esse
negócio!
Protesto tímido
e lá foi ele. Duas horas depois, o radiotransmissor-receptor (que ficava
ao lado da mesa do chefe de reportagem) começou a pipocar.
Alô,
Frejat ! É Sarmento!
Estou ouvindo,
continue!
É
somente para lhe dizer que aquele texto que escrevi está correto; basta
retirar a observação que fiz sobre balões coloridos
no início da Procissão. O resto, pode confiar, é igualzinho
ao que acontece todo ano! (gargalhadas gerais entre os colegas).
De outra feita,
alta madrugada num boteco localizado quase na esquina das ruas Prado Júnior
com Barata Ribeiro (Copacabana), bebericávamos um chope geladíssimo
na companhia de Luis Carlos Modesto (na época repórter-especial
do Jornal do Brasil) e sua namorada Ivian. De repente, afogueado e vindo
não se sabe de onde, chegou Sarmento. Ele pediu um schnitt ao
garçom e integrou-se à conversa; todavia, passados alguns minutos,
percebeu que havia alguma coisa diferente no ar. Estalou os dedos
e perguntou quem era a senhorita. Luis Carlos Modesto cuidou da apresentação
e logo se arrependeu. Sarmento entrou numa espécie de transe e começou
a proferir frases em latim, ao mesmo tempo em que espargia sobre o casal (com
as pontas dos dedos) flocos e mais flocos da espuma cremosa do chope, como se
fossem grãos de arroz destinados a prover a felicidade dos noivos quando
terminada a cerimônia de casamento.
Era ele, de fato,
um grande camarada. Trazia consigo o riso fácil e uma espécie
de magnetismo capaz de atrair para si as situações mais insólitas.
Na época dos fatos acima descritos ele morava no Leme, num prédio
de apartamentos cujo pavimento térreo era ocupado por conhecido reduto
da boemia. Era beber e subir. Dormir, descer, trabalhar, voltar e beber
novamente, acentuava. Praia? Embora distante poucos metros de casa, não
lhe atraía tanto como nos tempos em que escrevia crônicas no Correio
da Manhã.
Histórias
O aparelho de
TV está agora desligado. Lembrei-me, como em efeito cascata, de mais
alguns episódios curiosíssimos que ocorreram com Luiz Carlos Sarmento.
Todos dignos de registro. Ei-los, com os lapsos naturais que o tempo provoca
na memória.
Este me foi contado
originariamente por Paulo Siqueira (um dos redatores mais rápidos da
imprensa do Rio de Janeiro) e posteriormente confirmada pelo próprio
Sarmento, entre generosos goles do chope gelado do Restaurante Lisboeta,
no Centro da cidade.
Na ocasião
dos fatos, adiante relatados, ele morava num apartamento de fundos em Copacabana.
A época era outra: nada de rajadas de metralhadoras ou disparos intermitentes
de fuzis de assalto AK-47 ou AR-15 na direção dos edifícios
habitados pela classe média. Pois bem, após uma noite de farra,
Sarmento chegou em casa torto por causa da bebida, abriu a porta
e observou, caído, com as patas voltadas para o teto, a cabeça
enorme banhada em sangue, morto, mortíssimo no meio da sala, um cavalo
baio. Sem acreditar no que via desceu ao pavimento térreo e chamou o
porteiro. Explicou o que se passava e ouviu em resposta um monte de desaforos.
Ligou em seguida
para o Corpo de Bombeiros. Nova seqüência de impropérios e
a recomendação do plantonista:
Vá
dormir !
Foi.
Acordou tarde.
Cabeça doendo, caminhou até a cozinha e fez café bem forte.
De volta à sala, olhou novamente. O cavalo continuava lá, indubitavelmente
rígido; o sangue coagulado manchando o carpete. Então é
verdade, resmungou. Desta vez, porém, preferiu incomodar o vizinho
(que lhe bateu a porta na cara). Voltou ao térreo, convocou
o porteiro e este, por precaução, chamou o síndico.
De volta ao apartamento,
os dois últimos confirmaram a situação insólita.
Quanto ao cavalo, fora vítima da mais absurda falta de sorte. Ele pastava
a relva verdinha existente no barranco atrás do prédio quando
a terra afofada pela chuva que caíra na véspera
não resistiu ao peso do animal, cedeu parcialmente e arrastou consigo
aquele descendente de Bucéfalo, o qual se estatelou no primeiro ponto
em linha reta a partir do morro: a janela da sala do apartamento onde residia
o jornalista.
Os bombeiros voltaram
a ser contactados (desta vez pelo síndico) e, finalmente, mandaram uma
guarnição ao local para retirar o cavalo morto.
Segunda história.
No dia seguinte
ao desabamento do pavilhão central do Riocentro (no qual morreram esmagados
nove trabalhadores, em 1979) e após uma angustiante madrugada de plantão,
em que os jornalistas somaram esforços aos bombeiros na tentativa de
resgatar com vida alguns operários, deixei a Redação empoeirado,
exausto e faminto.
Daí, enquanto
caminhava pela rua Marquês de Pombal, encontrei-me com Sarmento
que também havia concluído sua jornada de trabalho e procurava
um restaurante. Escolhemos um bastante simples na Praça da Cruz Vermelha.
Resultado: entre o almoço propriamente dito, uns chopes e muito bate-papo,
saímos de lá quase às nove da noite; ele, decididamente
disposto a emendar em algum boteco do Leme ou Copacabana o que me confirmou
depois. Somente voltou para casa dia claro, tomou banho, trocou de roupa e retornou
ao jornal. De minha parte, dormi um sono de chumbo de quase 10 horas,
até porque estava dispensado do trabalho.
Terceira.
Este é,
muito provavelmente, o maior exemplo da criatividade jornalística de
Luiz Carlos Sarmento. Rendeu um mês de manchetes, editoriais, chamadas
de primeira página; ocupou generoso espaço gráfico; comoveu
a opinião pública e garantiu (segundo o Departamento Comercial
do diário para o qual trabalhava), esplêndida vendagem nas bancas.
Foi assim:
Em suas andanças pelo Centro da cidade, ele soube através de Cachimbo
(humilde vendedor de sacos de milho na Cinelândia) que alguns pombos tinham
sido mortos e estraçalhados possivelmente por um gato ou ave de rapina.
Imaginou então
o seguinte: um gavião, desses que voam milhares de quilômetros
à procura de caça, poderia ter construído seu ninho junto
ao relógio da torre da Mesbla (na época um dos prédios
mais altos do Centro do Rio) e, dali, partiria para o massacre dos inofensivos
pássaros, deixando sobre as calçadas como resíduos
da sua fúria , algumas penas, sangue e pedaços de carne
sangrenta.
Drama. Os gaviões
trazem consigo uma aura de crueldade: são audaciosos e implacáveis;
mexem com o imaginário popular. Estruturada a idéia, os textos
de Sarmento dividiram a opinião pública. Morte ao gavião!,
exclamavam alguns; vida e liberdade!, proclamavam outros. O debate
sobre o assunto ganhou proporções e, como de hábito, houve
quem se aproveitasse. Se tais fatos acontecessem nos dias de hoje, teríamos
hipóteses do gênero:
Seja como for,
durante os 30 dias em que o assunto foi notícia, a imaginação
do repórter ultrapassou todos os limites. O massacre das avezinhas potencializou
o sentimento de piedade que ainda resiste na massa da população.
Quanto à figura do gavião (seus olhos agudos e o bico afiadíssimo)
representava, no plano simbólico, auto-suficiência e audácia
conjugada à irreversibilidade do destino (simultaneamente) heróico
e patético da espécie ameaçada de extinção...
Mas como todo
e qualquer problema enfastia os leitores após longo período de
exposição, aquele precisava ter um ponto final. E este
segundo a lógica do seu criador deveria ser igualmente formidável,
espetacular.
O gavião
teria que ser morto. Entretanto, como eliminar (de fato) um personagem inexistente?
Como suprimir, sem aviso prévio, aquela fonte geradora de
tantas notícias?
Com uma pedrada? Pancada com um cabo de vassoura? Forjando o vôo
dia claro para lugar algum? Nada disso! Seria necessário ritualizar
a ação com a típica prosopopéia ao gosto brasileiro.
Sarmento articulou
o seguinte: pediu emprestado um gavião empalhado que enfeitava
a seção de Caça e Pesca de uma loja, arranjou quem se fizesse
passar por caçador (com chapéu de modelo inglês e roupas
cáqui semelhantes às utilizadas nos safáris africanos
carabina equipada com mira telescópica etc.) e, com a colaboração
de algumas pessoas, dispôs a ave de modo que esta ficasse apenas parcialmente
visível na torre do relógio da Mesbla.
Em seguida, com
o maior aparato possível, escolheu um horário de intenso movimento.
O caçador saltou do carro empunhando a arma, olhou para o ninho
do predador assassino, fez cuidadosa pontaria e com um certeiro
disparo abateu o gavião.
Aplausos frenéticos,
algumas vaias, a multidão se dispersou e... ponto final para a história
com direito, é claro, à mais uma primeira página.
Vôo noturno...
para sempre!
As madrugadas
insones entre os eixos Leme-Copacabana e Ipanema-Leblon; as tantas lembranças
de Antônio Maria e Dolores Duran; o canto amargurado de Maysa; a ternura
imensa cantada por Silvinha Telles e Waleska estão presentes nas crônicas
que ele escreveu para o Correio da Manhã e adiante transcritas.
Luiz Carlos Sarmento
não poderia, na minha imaginação, ter partido assim, tão
abrupta e melancolicamente. Vivia uma situação profissional complicada:
após um longo período em que sobreviveu trabalhando como freelancer,
conquistou na Justiça o direito de ser reintegrado à
Bloch Editores, de onde fora demitido sob o frágil pretexto de contenção
de despesas.
Curioso destino! Num dos textos inseridos na primeira parte deste volume, consta
a observação do jornalista Zevi Ghivelder um dos editores
da Revista Manchete segundo a qual talvez um dia alguém
se animasse a escrever um livro contando as peripécias de Sarmento. Procuramos
fazê-lo, enfatizando o lado humano, bem-humorado e criativo desse repórter.
Devo dizer que a idéia que norteou a elaboração deste volume
nasceu na manhã seguinte à conversa telefônica com Ubirajara
Roulien. Falei imediatamente com Aleina, expliquei a essência do projeto
e, dela, recebemos não somente a indispensável autorização,
como um esplêndido material.
Aleina guardava
zelosamente (em caixas de papelão) dezenas de fotografias, recortes das
crônicas que o marido publicou no Correio da Manhã, bem
como de algumas reportagens que o notabilizaram profissionalmente.
A complementação
dos textos tornou-se possível graças ao empenho de Gabriel Collares
Barbosa no garimpo das coleções de jornais e revistas
onde Luiz Carlos Sarmento emprestou sua inteligência e criatividade.
Gabriel foi meu orientando relativamente à monografia de final de curso na ECO-UFRJ. Pelo projeto demonstrou entusiasmo ímpar e nele engajou-se em tempo integral. Concluiu com brilhantismo o mestrado e o doutorado em Comunicação e Cultura e atualmente é professor adjunto da Escola de Comunicação da UFRJ. É, pois, com satisfação que o apresento aos leitores como pesquisador e divido a autoria deste livro.
José A. Argolo
Rio de Janeiro,28 março 1995 / julho 2008