O ritmo da mistura e o compasso da história
O modernismo musical nas Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos
Villa-Lobos é
uma dessas figuras que fascinam o estudioso. Se não bastasse a qualidade
excepcional da obra, herdeira de múltiplas influências, há
ainda a sua personalidade tão marcante, que lhe custou, ao longo da vida,
o amor e o ódio de muitos. Ao pesquisador, os fios que ligam a obra ao
homem se impõem de forma inescapável. Afinal, como separar a imagem
que construiu de si mesmo, com o recurso à genialidade precoce, expressa
ainda na infância, quando se comprazia ao ouvir Bach, e o projeto de construção
de uma música nacional, afeita ao ideário nacionalista do modernismo
brasileiro, capaz de traduzir ao mesmo tempo o local e o universal? Este é
apenas um dos desafios a que Loque Arcanjo se propõe, no presente estudo
que, filiando-se às novas abordagens da história cultural e à
musicologia, coloca em questão o Villa-Lobos compositor das Bachianas
Brasileiras, compostas entre os anos de 1930 e 1945.
A pesquisa que
deu origem a este livro nasceu de uma indagação sobre o lugar
das Bachianas na vasta produção musical do compositor, orientada
para o projeto de juntar à tradição erudita da música
de Bach as tradições culturais brasileiras, com seus sons e ritmos
mestiços, amalgamados numa música que se pretendia universal.
Responder a essa questão levou o autor a percorrer uma longa trajetória,
desde o processo de construção da biografia por parte de Villa-Lobos,
até o ambiente musical do Rio de Janeiro nas primeiras décadas
do século XX, culminando na influência de Bach sobre as partituras
das Bachianas.
O Villa-Lobos
que emerge das páginas desse livro não desperta muita simpatia
no leitor: a ficção autobiográfica, meticulosamente orientada
para a afirmação de uma genialidade precoce, à moda de
um Mozart, por exemplo, ao lado das acusações de plágio
que o perseguiram ao longo da vida, revelam um homem que se via como um predestinado,
iluminado por uma visão grandiosa de seu papel na construção
de uma música nacional. Menos que a vaidade incomensurável de
um músico brilhante, tais estratégias ganham inteligibilidade
e sentido se confrontadas com o contexto histórico do modernismo, no
qual a intuição funcionava como meio de apreensão da alma
brasileira. O pequeno Villa-Lobos, embalado pela música de Bach, apaixonou-se
também pela música popular, fosse ela a música caipira
conhecida numa suposta viagem a Minas Gerais , fosse a música
dos chorões conhecida nas rodas boêmias freqüentadas
na juventude no Rio de Janeiro.
Como um antropófago
faminto, Villa-Lobos devorou com avidez o universo musical de sua época,
aberto a todas as formas de musicalidade que o cercavam, dos sons da natureza
aos grandes compositores eruditos, em busca de uma música que exprimisse
a nacionalidade brasileira. O estudo de Loque Arcanjo desvenda com maestria
a bizarra alquimia que permitia ao compositor misturar ritmos e tradições,
resultando num intenso processo de mestiçagem cultural, do qual as Bachianas
são, sem dúvida, a grande síntese. Perscrutando as partituras,
submetendo-as ao olhar arguto que a formação musical lhe emprestou,
ele se propõe a apontar as marcas de Bach, a influência da escrita
literária modernista, sobretudo a de Macunaíma, a retomada da
forma suíte, característica da música popular, o ponteio
dos violões da seresta, o lirismo das modinhas de salão. Talvez
o maior enigma que as Bachianas propõem ao pesquisador ligam-se às
formas de apropriação da música de Bach e as razões
que levaram Villa-Lobos a tomar de empréstimo as sonoridades do Kantor
de Leipzig. O próprio compositor sempre manteve silêncio sobre
o tema, limitando-se tão-somente a afirmar as inúmeras afinidades
entre a obra de Bach e com o ambiente harmônio-contrapontado da música
popular brasileira. Afinal, por que Bach ? E como identificar nas partituras
as filiações de sua música?
Não é
pois uma tarefa fácil para o estudioso da história cultural, mais
familiarizado com fontes documentais mais tradicionais, como o texto escrito.
O caso de Loque Arcanjo é bem diferente, porém. A sólida
formação na área musical enriqueceu-lhe o aparato metodológico,
ampliando os horizontes de análise e estilhaçando as limitações
características do ofício do historiador, fadado muitas vezes
a escrever sobre música sem o domínio necessário da escrita
musical, redundando numa história coxa. Escala descendente, intervalos
de terças, semicolcheias, nota pedal, notas em pizzicato são alguns
dos termos que povoam a acurada análise de Arcanjo, constituindo um olhar
microscópico da escrita musical das Bachianas. Aqui e ali é possível
identificar a influência da obra de Bach, exposta com um claridade irretocável,
que só um expert pode fazê-lo. E sem resvalar para um estudo estritamente
musical, aferrado às partituras, como se fossem elas o alfa e o ômega
da investigação. Ao contrário, o horizonte de interpretação
é mais amplo, de vez que problematiza o universo da cultura brasileira
da primeira metade do século XX, articulando-o ao mesmo tempo com o quadro
geral do modernismo europeu, perseguindo a música de Villa-Lobos nos
fios quase invisíveis que a ligavam ao seu tempo. É neste ir e
vir em direção às grandes questões e às minúcias
das partituras que o autor constrói a sua tese sobre o sentido mais profundo
das Bachianas.
O mérito
do livro não se esgota aí. Para grande parte dos estudiosos de
Villa-Lobos, o papel de maestro do Estado Novo, encarregado do programa de educação
musical, entre outras coisas, assinalaria uma ruptura com o compositor das Bachianas
Brasileiras. Nas composições voltadas para o ensino do Canto Orfeônico,
sob o apoio oficial, existiria mesmo uma contradição visceral
com o seu projeto estético. Para Arcanjo, não há por que
dissociar as Bachianas do projeto político educacional criado para o
Estado Novo: na raiz de ambos, está o apreço pela obra de Bach,
expresso na convicção de que ela se prestava bem à iniciação
musical dos povos incultos, desde que mesclada a formas musicais mais acessíveis.
O recurso à matriz de Bach, entendida como a música mais universal,
ensejava um projeto pedagógico e civilizador que acompanhou Villa-Lobos
por toda a vida, fosse na sua passagem pelo governo Vargas, fosse na composição
das Bachianas.
Outro lugar-comum
dos estudos sobre Villa-Lobos é a tese de que a produção
musical dos anos 20 coincidiria com seu período de maior criatividade
e ousadia, aberto a experimentalismos e pesquisa musical, enquanto que nos anos
seguintes, a partir de 1930, o brilho da fase anterior daria lugar a obras mais
convencionais, em que a busca da brasilidade teria sido eclipsada pelo peso
do caráter ideológico. De partitura em punho, Arcanjo refuta tal
cronologia, apontando a força da musicalidade popular, sobretudo o choro
e a seresta, típicos da cena popular urbana, na produção
posterior a 1930, particularmente nas Bachianas no 5 e no 6.
Talvez a principal contribuição do livro de Arcanjo resida na forma incisiva com que submete ao crivo das fontes e fonogramas uma certa imagem que floresceu ao redor de Villa-Lobos, impedindo uma aproximação mais objetiva e menos apaixonada de sua obra e também de seu papel histórico. Figura polêmica, o maestro soube, como poucos, amealhar desafetos e inimigos, atraindo para si a crítica implacável de contemporâneos do peso de Mário de Andrade. Também pesou contra ele a sua passagem pelo governo Vargas, considerada um retrocesso numa carreira brilhante, posto que, como artista, punha-se a serviço da ideologia Estadonovista, emprestando o talento para a divulgação de idéias das quais estaria longe de partilhar. O mito que emerge desta folhagem vasta e densa parece esvaziar o homem e compositor, empobrecendo-o à luz de análises muito cortantes, de um uma nitidez quase metálica. O estudo de Arcanjo ensina-nos a ver Villa-Lobos de uma perspectiva inovadora, captando-o nos delicados jogos de luz e sombra, nas passagens fluidas e esfumaçadas, nos movimentos sinuosos e quase imperceptíveis. Só assim é possível captar as cores e os sons das silenciosas e por vezes ruidosas mestiçagens que, como poucos, soube incorporar à música.
Adriana
Romeiro
Doutora em História, professora associada do Departamento
de História da UFMG