capa do livro

Poética da música underground

Vestígios do Heavy Metal em Salvador

Jorge Cardoso Filho

Foi-se o tempo em que as apresentações sobre os livros de música popular massiva, lançados no Brasil, debruçavam-se sobre a escassez e o pouco espaço acadêmico destinado a essa importante expressão da cultura contemporânea. Apesar da disparidade entre o consumo de música em nosso cotidiano e sua abordagem nas escolas de comunicação, hoje encontramos várias teses e dissertações que procuram diminuir esse fosso. Passado o período em que só o fato de se produzir “material pensante” sobre música nas escolas de comunicação já era digno de elogios, chegamos ao período em que começamos a filtrar esses trabalhos, separando o joio do trigo, ou como faz qualquer dedicado fã de música, emitir juízos de valor, classificando (e desclassificando) a boa música da música ruim, posicionando-se de acordo com nossos gostos e preferências, não só musicais, bem como acadêmicas. Assim, caro leitor, aviso que você está diante de um trabalho que pretende julgar, e tomar partido, caracterizando o que distingue uma boa canção heavy metal; ou seja, o peso, a distorção, a disposição composicional em seus aspectos midiáticos; daquelas canções que simplesmente repetem de maneira exaustiva as fórmulas de um gênero musical tão codificado.

Jorge Cardoso Filho não se furta ao desafio de propor uma abordagem ampla o suficiente, que permita pensar de modo genérico a música popular massiva e ao mesmo tempo focada no modo como uma parcela significativa dos jovens soteropolitanos vive sonhos e identidades a partir do consumo de um gênero musical pra lá de paroquial. A leitura deste livro permite vislumbrar as contradições que marcam boa parte do consumo cultural dos produtos midiáticos atuais. É paradoxal perceber que os discursos musicais vinculados aos lançamentos do pequeno selo musical Maniac apontam para as possibilidades de produção fora das amarras das estratégias da grande indústria fonográfica ao mesmo tempo em que se apropriam de uma parcela considerável destas mesmas estratégias. Durante a leitura dos originais, fiquei mais uma vez a me perguntar: que ingenuidade fascinante é essa que permite aos fãs de heavy metal afirmarem os aspectos independentes de suas produções ao mesmo tempo em que se prendem a um gênero musical pra lá de canônico e chauvinista?

As análises dos discos baianos efetuadas por Cardoso Filho nos fazem perceber que vivemos em uma época realmente contraditória. Em alguns momentos, as bandas parecem provincianas, limitadas a suas 500 cópias por lançamento, presas à pequena cena local, em outros momentos, essas mesmas bandas parecem navegar nos oceanos abertos pela globalização: jovens baianos que cantam em inglês sobre os aspectos sombrios e violentos da vida contemporânea, posicionando-se nos antípodas da colorida música axé. Grupos musicais quase desconhecidos em Salvador, mas conhecidos no circuito cultural heavy metal espalhado pelo mundo afora. Somando-se a isso, é possível perceber uma estranha mistura que, ora faz apelo a cultura letrada, reivindicando seu espaço no panteão artístico da atualidade, posicionando-se de maneira ácida e crítica contra as frivolidades do mundo pop, ora posiciona-se como uma cultura de nicho, transitando pelas particularidades dos relativismos culturais da pós-modernidade.

Como não poderia deixar de ser, os traços dessa contradição também aparecem nas pistas abertas pelo próprio fazer textual de Cardoso Filho. Se é possível reconhecer as boas propriedades de um trabalho acadêmico, como uma boa tessitura conceitual, a apresentação objetiva do método analítico e a discussão com autores que já trataram do mesmo assunto, por outro lado, não deixa de ser prazeroso ao leitor, e benéfico ao texto do trabalho, perceber os momentos da escrita em que afloram as paixões e os conhecimentos de um fã de heavy metal. Longe de ser um problema, esse dilaceramento mostra a postura séria e apaixonada de alguém que conseguiu, como poucos felizardos, aglutinar a paixão pelos produtos midiáticos contemporâneos e o distanciamento que permite não só reconhecer os limites dessas paixões bem como perceber que esses afetos poderão ser melhor compreendidos quando se percebe que uma compreensão midiática da música heavy metal não está só atrelada às pressões mercadológicas da indústria da música bem como às poéticas e lógicas criativas possíveis neste mercado. Afinal, assim fez-se o rock!!!!

Jeder Janotti Júnior
Pesquisador do CNPq, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas onde coordena o Grupo de Pesquisa Mídia e Música Popular Massiva.
Consumidor voraz de música e fã de heavy metal.

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