Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação
Um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas.
Por que razões
um povo de uma das regiões mais frias da Terra, situado junto ao Polo Ártico
dedicou e dedica atenção e recursos a financiar povos indígenas
e seus apoiadores em meio à floresta equatorial amazônica? Como isto
é feito? Quando começou? Que enraizamentos tais práticas
chamadas de ajuda ou cooperação internacional para o desenvolvimento
têm na história social desse povo? Como nos conectamos a eles? Afinal,
eles estão tentando nos invadir e manietar como
certa direita putrefata procura configurar toda presença na Amazônia
que seja internacional (a esta altura do século XXI era mister
perguntar: qual não é)? São meramente interesses econômicos
que motivam tais investimentos, como forma de encobrimento humanitário
de uma penetração insidiosa que se não quer dominar espaços
quer controlar fluxos econômico-financeiros, para isto manipulando
os indígenas?
Estas
não foram questões que conduziram a pesquisa de Maria Barroso Hoffmann
na Noruega que aqui surge sob a forma de livro. Todavia, elas não só
conduzem muitas opiniões do senso comum, mas também diversas pesquisas
acerca da chamada cooperação técnica internacional para o
desenvolvimento. O resultado de tais investigações, por mais cheios
de jargão da disciplina e invocações à nossa
tradição disciplinar em antropologia, às vezes limitam-se
a artigos ensaísticos ou, quando muito, dissertações e teses
no máximo suportadas por entrevistas que investigando o caráter
nacional desses modernos invasores, mesmo quando outro
tropo do momento na antropologia feita no Brasil por brasileiros a pesquisa
foi feita nos países de origem dos chamados doadores de recursos.
Poucos trabalhos foram além desses limites no desvendamento de um fenômeno
de alcance mundial e de imensa importância na contemporaneidade.
Esta
exemplar etnografia ultrapassa tais marcas em larga medida. Foi realizada por
um longo trabalho de campo na Noruega, mas precedida de uma experiência
de contato com a sociedade norueguesa que permitiu à autora ler, entender
e falar (nesta ordem de competência linguística) uma língua
pouco acessível entre nós. Se para toda pesquisa antropológica
o conhecimento de uma língua ou das peculiaridades do emprego do nosso
próprio idioma nos segmentos estudados é essencial, em coletividades
letradas, com extensa produção historiográfica e antropológica,
desconhecer tal literatura é contradizer mutatis mutandis os bons ensinamentos
de toda nossa disciplina quanto ao trabalho de campo. Afinal, Maria
Barroso Hoffmann não se treinou para ser uma escandinavista,
para ironizar os brasilianistas, americanistas e outros
istas de diferentes nacionalidades que em geral desconhecem a produção
dos intelectuais dos países e sociedades em que estudam.
No
entanto, a pesquisa que conduziu ao presente livro foi sugerida pela experiência
de trabalho num projeto de intervenção voltado para a educação
superior de indígenas desenvolvido no Brasil. Explica-se: os recursos noruegueses
foram essenciais nos anos 1980/1990 à ação de diversas organizações
não governamentais brasileiras entre os povos indígenas, tendo sido
essas ONGs responsáveis por elevar a princípios formuladores de
políticas governamentais muito do que foi a sua ação, em
geral (mas não só) restrita à região amazônica.
Hoje, os recursos noruegueses vêm financiando o ensino superior de indígenas
via o suporte a organizações indígenas como o Centro Indígena
de Estudos e Pesquisas (CINEP). Aqui está uma das chaves do que aprendemos
com este texto: dimensão da interdependência de redes sociais situadas
em múltiplas escalas no presente.
Maria
Barroso Hoffmann mergulha profundamente numa leitura antropológica da história
norueguesa para dela desentranhar as linhas de força que conduzem a importante
ação da Noruega no terreno da cooperação técnica
internacional pelo mundo afora. Se o investimento analítico do texto teve
como guia a ação junto aos povos indígenas é importante
registrar que a pesquisa não se restringiu a esta forma de cooperação,
percentualmente dos menores investimentos dos noruegueses em matéria de
ajuda externa. De seu esforço analítico, surgem missionários,
sindicalistas, partidos políticos, intelectuais diversos, num entramado
de enorme complexidade que exigiu grande sensibilidade e poder de síntese
para ser composto e transladado ao leitor brasileiro. Afinal, a cooperação
internacional é tão importante para os noruegueses que eles lhe
dedicaram celebrações, dentre estas sob a forma de seminários,
e volumes densos de análises críticas.
A
autora nos demonstra como leituras generalizantes do fenômeno da cooperação
sejam aquelas da área das Relações Internacionais,
atendendo a perspectivas governamentais, sejam as de um circuito de pesquisadores
supostamente ativistas (no sentido norte-americano do termo), pretensos
críticos do neocolonialismo deixam escapar a enorme
variedade de situações históricas concretas. A fusão
de horizontes muito distintos num só conceito de baixo grau de abstração
obscurece as singularidades de cada processo de formação de Estado
e de construção da nação que orientam as linhas gerais
desse fenômeno em casos históricos distintos. O resultado sempre
pode ser a panacéia de dizê-los parte da era da globalização
e colonialismo.
Em
seu esforço crítico e de reposicionamento analítico, Maria
Barroso Hoffmann demonstra como afirmações superficiais e apressadas
não levam em conta as múltiplas escalas e atores que se entretecem
nessas práticas. Tais leituras tampouco consideram a interconexão
de mundos sociais, povos e suas histórias. Ensina-nos, assim, como uma
população branca, os Sami (Lapões) conquistaram a designação
de povo indígena. De quebra dá-nos uma lição sobre
a história dessa categoria enquanto parte do sistema de instituições
multilaterais e enquanto sujeitos de direitos no plano internacional. Lança
luzes sobre o modo como os indígenas das Américas foram e são
vistos no cenário internacional, e como construíram um espaço
próprio no mundo globalizado por meio de um circuito de alianças
em que povos de distintos continentes se articularam e vêm elaborando subsídios
legais diferencialmente apropriados em cada contexto nacional. Os Sami como um
dos condutores na atualidade da cooperação norueguesa junto aos
povos indígenas têm tido nisto papel destacado, mesmo que no contexto
norueguês eles o denunciem como um papel menor diante do vulto dos recursos
e do poder de outros setores do Estado na Noruega.
O
livro mostra, ainda, que em inúmeros movimentos ao longo do século
XX a antropologia e os antropólogos foram e são um saber e redes
de atores essenciais na conformação do espaço da cooperação
no caso norueguês e no cenário de instituições multilaterais,
e que estamos todos (também aqui no Brasil) inevitavelmente envolvidos
e entretecidos em tramas sociais mais ou menos perceptíveis. Se tudo isso
assoma de fontes inúmeras, este movimento analítico só foi
possível pela participação da pesquisadora na vida de um
circuito específico de agentes sociais na Noruega, por sua participação
ativa e respeitosa num centro de estudos dos Sami para os povos indígenas,
por considerar a todos com que se encontrou não enquanto nativos
essa palavra de que a vulgata do fazer antropológico abusa até
não mais poder , mas respeitosamente enquanto interlocutores num
processo dialógico, produtores intelectuais e atores políticos que
são.
Com
isso, as versões de nossas ONGs acerca de suas articulações
com seus apoiadores, por vezes tão ciosamente guardadas como
segredos de polichinelo, e reduzidas a narrativas das ações (não
menos importantes e nem tampouco inexistentes) de redes de relações
pessoais muito restritas, perdem a importância e a eficácia excludente
de que se imantam. O texto cumpre, portanto, plenamente sua função
de ir e vir entre mundos, países, povos..., explicando, traduzindo e transladando-os
uns aos outros.
Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas é, apesar de resultante de uma tese de doutorado (hoje tão aligeiradas), um trabalho fruto da maturidade, de uma pesquisadora dotada de raro brilhantismo que, combinado com a modéstia, se apresenta sob a forma de uma extraordinária capacidade de trabalho e de um poder de síntese (sem concessões à superficialidade) igualmente raros. Trata-se de uma obra-prima, nos múltiplos sentidos do termo.
Antonio
Carlos de Souza Lima
Laced/Museu Nacional-UFRJ