capa do livro

Gente de fora

Vida e trabalho dos assalariados do café em uma região de Minas Gerais

Roberta Novaes

O livro de Roberta Novaes, resultado de sua dissertação de mestrado, é fruto de uma experiência de pesquisa em que a autora, ao se deslocar para o centro de uma das regiões que certamente podem ser consideradas emblemáticas do chamado "agronegócio" brasileiro, causa ali certo incômodo. O fato de ter vindo de fora, por si só, não chega a incomodar ninguém: no município pesquisado, transformado nas últimas décadas em centro de produção de commodities agrícolas (com destaque para o café) bem como de comércio e serviços relacionados a essa atividade, todos estão habituados à constante circulação de forasteiros ligados às mais diversas agências: empresas ligadas à agropecuária, universidades, órgãos do governo, representantes comerciais. O que parece ter, em várias circunstâncias, causado incômodo, é a insistência da pesquisadora em mostrar interesse justamente por aqueles trabalhadores que, no contexto desse município, são tidos sempre como "de fora", mesmo que ali residindo ou sempre por ali retornando. O mesmo não aconteceu com outros pesquisadores da equipe, que dirigiram sua investigação àqueles que, mesmo tendo já sido considerados "de fora", hoje ocupam uma posição bem ao centro da cena regional: os cafeicultores, muitos deles vindos para Minas Gerais a partir do Paraná ou de São Paulo. Nesse caso, o interesse por esses forasteiros hoje firmemente ali estabelecidos e reconhecidos foi visto sempre como natural, compreendido e incentivado por todos, especialmente quando se tratava de buscar aqueles mais firmemente estabelecidos dentre eles.

Em função do desenho geral do projeto de pesquisa coletivo do qual o presente trabalho faz parte, e que tinha na perspectiva dos trabalhadores envolvidos na produção de café um de seus focos de investigação, mas por causa igualmente de sua forte curiosidade e sensibilidade com relação à vida desses trabalhadores, Roberta Novaes investiu em buscar conhecê-los. Precisou de persistência e habilidade para driblar todas as recomendações que evitasse aqueles que justamente propunha ser o foco de seu estudo, bem como os locais onde eles poderiam ser encontrados (ou que deles se aproximasse com cautela extrema). Essas recomendações partiam dos mais variados agentes: funcionários da prefeitura, policiais, cafeicultores, dirigentes sindicais, professores e, mais surpreendentemente, também dos próprios trabalhadores. Era evidente o medo e a desconfiança que cerca essa "gente de fora" e os locais onde se concentram. Novaes conseguiu escapar dessa evitação naturalizada e estabelecer contatos firmes com trabalhadores tanto no bairro onde muitos moram, quanto no abrigo criado pelo sindicato dos trabalhadores rurais e hoje administrado pela prefeitura, em que alguns se alojam temporariamente enquanto buscam trabalho. Imersa desde o início da pesquisa em meio a essa trama de temores e distâncias, estranha entre os considerados permanentemente "gente de fora" tanto quanto entre os ali estabelecidos, circulando muitas vezes por espaços quase exclusivamente masculinos, a pesquisadora mesmo assim conseguiu conquistar confiança e apreço daqueles que buscava conhecer. Entre os trabalhadores do abrigo, sempre homens, isso se expressou pela vontade deles de, diante de seus questionamentos, desabafar, narrar e denunciar. No bairro, predominantemente entre mulheres, se exprimiu no cuidado e na atenção com que foi recebida e acompanhada.

Em um texto claro e sucinto, a autora vai aos poucos im­pregnando os leitores com as narrativas e observações recolhidas junto aos homens e mulheres que trabalham ou trabalharam nas colheitas do café dessa região hoje pujante, oferecendo uma noção do cotidiano, das perspectivas e do passado dessas pessoas, bem como das relações em que se inserem. Traz-nos narrativas de vidas variadas, quase todas começando "na roça" - nessa mesma região ou, muitas vezes, no norte de Minas e em diferentes lugares da Bahia ou de outros estados do Nordeste - e, invariavelmente, passando por muitos lugares, na roça ou na cidade, e muitos serviços, quase sempre aqueles tidos como próprios dos que têm mãos grossas, repetidamente mostradas à pesquisadora. Em alguns casos, levando a uma relativa permanência em um lugar, à construção de uma casa, ao estudo dos filhos, à tentativa de trazer parentes, quem sabe a um negócio próprio; em outros, ao deslocamento permanente, ao distanciamento da família, a uma vida "no trecho". Traz-nos também uma ideia do cotidiano no bairro que concentra os trabalhadores do café, as casas construídas com muito custo, as relações entre vizinhos, a importância dos "irmãos de fé", as divisões internas do bairro, a vigilância e a desconfiança dos próprios moradores uns em relação aos outros, assumindo internamente a estigmatização a que são sujeitos. Leva-nos ainda a conhecer o dia a dia da área compreendida entre a rodoviária e o abrigo, espaço de circulação e espera dos trabalhadores vindos dos mais variados lugares em busca de trabalho nos cafezais. Encontra ali dois irmãos, ambos funcionários da prefeitura, que trabalham mediando a permanência ou a saída desses trabalhadores na cidade. Um deles gerencia o abrigo temporário. Gentil a seu modo garante, por um curto tempo, teto e sopa para os trabalhadores. O outro é responsável pelo centro de triagem existente na rodoviária, e acompanha atentamente as movimentações e atitudes dos que por ali chegam, fotografa-os, e os aborda, por vezes com grande brutalidade. Quase uma alegoria: caridade e brutalidade são aspectos "irmãos" na maneira ambígua pela qual a cidade recebe e expele, temerosa e desconfiada, esses trabalhadores, igualmente temerosos e desconfiados. Os trabalhadores de fora, que se destacam seja por seu sotaque, cor da pele, jeito e vestimentas, andam em grupo pelas ruas, porque temem andar sozinhos; os do lugar os temem porque andam em grupos.

Além desses espaços, Novaes dirigiu sua pesquisa também para aqueles que "mexem com turma", os "gatos" e "gatas", responsáveis pela contratação e transporte dos trabalhadores, e em várias circunstâncias pela direção do cotidiano do trabalho na lavoura. Dá ao leitor uma ideia da complexidade dessa mediação. Entre as intrincadas exigências dos patrões e das empresas, as expectativas dos trabalhadores, e a concorrência de outros "gatos", muitos apenas passam por essa atividade e nela não conseguem se estabelecer, às vezes voltando à atividade pela qual invariavelmente todos eles já passaram: o trabalho na lavoura. O texto de Novaes mostra como, dependentes em larga medida de sua reputação, tanto entre os trabalhadores quanto entre os fazendeiros, os "gatos", para serem reconhecidos como bons e se manterem em sua atividade, precisam dominar a arte de "mexer com gente" em um cotidiano atravessado por tensões e desconfianças.

Todo esse universo de pessoas e mediações em torno do trabalho nas imensas lavouras de café da região, porém, vai se redefinindo na medida em que se generaliza o uso das máquinas e insumos químicos que progressivamente substituem a atividade dos trabalhadores. Para todos aqueles trabalhadores que, baseados em experiências próprias ou de outros, veem na continuidade do trabalho no café, sobretudo na colheita, uma oportunidade de sobrevivência e mesmo de um ganho adicional, as máquinas representam a ameaça da frustração dessa expectativa. Os cafeicultores, por sua vez, geralmente saúdam a inevitabilidade da progressiva redução do trabalho manual, em parte pressionados pela necessidade de redução de custos em mercados cada vez mais competitivos, em parte alegando a dificuldade de lidar com as exigências da legislação trabalhista, mas invariavelmente lembrando também que a mecanização e a quimificação permitirão enfim se livrar da "dor de cabeça", do incômodo, do temor e mesmo da repulsa que costuma perpassar o contato com essa "gente de fora".

O texto de Novaes consegue, com felicidade, aproximar os leitores dos horizontes daqueles que não podem senão fazer dessa atribuição de exterioridade um pressuposto de sua maneira de viver, construindo no "fora" o seu lugar permanente, estando onde estiverem a cada momento. Ao mesmo tempo em que atuam no cerne das operações que tornam viável o mundo que se configura na região pesquisada, a sua simples presença termina como que por circunscrever em negativo o que tal mundo tem a pretensão de evidenciar. Diante da incessante valorização moral de tudo o que é tido como progresso, a limpeza, a técnica, a ciência, o trabalho e a produção disciplinados e regulares, a família, a ordem e a organização, os "de fora", seja quando estão ali de passagem, seja quando ali se estabelecem, são a cada instante lembrados (inclusive por si mesmos) que encarnam a princípio o oposto disso tudo. O livro de Roberta Novaes nos dá uma ideia de como essa "gente de fora" faz para viver com esse desencontro por dentro.

John Comerford

Veja também

capa do livro

Agroindústria e Citricultura no Brasil

Diferenças e dominâncias

Luiz Fernando Paulillo (org.)

capa do livro

O lugar do progresso

Família, trabalho e sociabilidade em uma comunidade de produtores de café do cerrado mineiro

Hailton Pinheiro de Souza Jr.