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Rota de colisão

A história, a crise e o fim da Varig

Sandra de Oliveira

Este livro de Sandra de Oliveira foi resultado de uma dissertação de mestrado defendida em julho de 2009, dada a lume na linha de pesquisa “Política e Cultura”, do Programa de Pós-graduação em História da Uerj, a que tive a honrosa oportunidade de orientar. Raramente as dissertações chegam a se tornar livros, mas aquela excedeu em muito o que usualmente se espera de uma dissertação – e mesmo de uma tese de doutoramento –, como bem reconheceu a banca que a examinou. E se, agora, chega ao leitor por meio desta edição, não é apenas pelo indiscutível mérito acadêmico original, pois se tornou uma fonte indispensável para compreender como se alienou uma estratégica empresa nacional, em favor, principalmente, dos interesses estrangeiros.

O Brasil acompanhou em respeitoso silêncio o desaparecimento da Varig, a admirada, e mesmo amada, companhia aérea nacional, torcendo para que, na última hora, o governo Lula interviesse em favor daquela até então considerada um patrimônio nacional. Mas o socorro não veio e, se tivesse vindo, poderia ter sido muitíssimo menos oneroso para o tesouro público do que foi o “saneamento” do sistema bancário durante os governos da Nova República, mormente durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso.

O sentimento daquela perda foi o de que se ia com a Varig muito mais que uma empresa que não foi competente para enfrentar as concorrentes no jogo “natural” das forças do mercado. O fim da Varig foi e ainda continua sendo sentido pelos seus antigos usuá­rios e admiradores como o encerramento de uma época, quando as viagens aéreas não eram tão frequentes como hoje em dia, mas os serviços de bordo eram impecáveis e generosos. Os serviços da Varig nas viagens internacionais consideravam-se então incomparáveis, prestados por tripulações que se excediam em cordialidade, e eram muito bem treinadas. Os passageiros sentiam-se seguros por saberem da boa manutenção das aeronaves e dos equipamentos em geral. A decoração dos aviões, os bem desenhados uniformes do pessoal, a sensação de limpeza e o cuidado nos mínimos detalhes também ajudavam a fazer da companhia um espelho do que de melhor o Brasil poderia apresentar no estrangeiro. Naquela época, os jingles de sua publicidade na televisão eram apreciados e cantarolados, e em certas ocasiões, como no Natal, eram mesmo esperados, pois expressavam valores tidos por verdadeiros, ainda que fossem peças de propaganda. Em suma, tinha-se desmedido orgulho da Varig, como se cada brasileiro partilhasse de seu patrimônio.

Fundada como empresa regional em 1927, num tempo ainda dominado pelo pioneirismo, e pelos raides aéreos sobre o Atlântico, a Varig cresceu vertiginosamente nos anos seguintes, tendo colhido os bons frutos do clima nacionalista e desenvolvimentista surgido com a Revolução de 1930. Pode-se dizer que foi ali que adquiriu o espírito de empresa pública, que norteou a companhia até os seus últimos dias, embora não tenha sido jamais estatizada.

O quadro internacional dos anos 1940 favoreceu a aviação brasileira. Nessa ocasião, em face da guerra mundial em curso, os Estados Unidos vieram auxiliar o governo Vargas na substituição e absorção das companhias italiana e alemã que exploravam a aviação brasileira, a Lati e o Sindicato Condor. Com equipamentos norte-americanos e com recursos postos à disposição do Brasil, fortaleceu-se a Panair e consolidaram-se as companhias domésticas, inclusive a Varig. A Panair tornou-se a empresa de “bandeira” da aviação internacional brasileira depois da Segunda Guerra Mundial, mantendo esta posição até a metade da década de 1960. Aos poucos, a Varig conquistou suas linhas internacionais, que passou a operar com eficácia. O Estado, legitimamente ou não, passou a “descarregar” na Varig os problemas de outras concessionárias de transporte aéreo, confiante de que a função socioeconômica das empresas em dificuldades pudesse ser bem cumprida pela Varig.

Assim, coube à Varig absorver grandes e tradicionais companhias, como a Real Aerovias, a Panair e a Cruzeiro do Sul, que operavam voos para o estrangeiro, o que levou a empresa nascida no Rio Grande do Sul a passar à posição de companhia “bandeira” do Brasil. Estas fusões, às vezes onerosas e difíceis de administrar, ajudaram a criar uma dívida “de fundo”, a que se acrescentaram os débitos futuros, formando uma massa devedora que, por fim, tornou-se impagável. Como as incorporações daquelas companhias foram pouco dadas ao conhecimento público, com processamento e motivações políticas nebulosos, também trouxeram um contencioso nada favorável à imagem da Varig, especialmente o do caso da Panair, ocorrido logo depois do advento do regime militar. Neste caso, pesou a suspeição de que a Varig e seus dirigentes tivessem sido beneficiados por razões políticas e ideológicas, o que pode ter sido um fator desfavorável na ocasião em que suas dificuldades afloraram, na Nova República. Seja como for, como bem diz a autora deste livro, a corresponsabilidade do Estado na formação e no crescimento da Varig, desde o governo Vargas, é indiscutível.

Entretanto o crescimento obtido pela Varig à sombra do Estado acabou produzindo uma inconveniente marca, a de uma empresa privada, uma concessionária de serviços públicos de capital aberto, mas com perfil indelevelmente estatal. Foi por isso que acabou por desenvolver uma cultura interna com a qual atribuiu a si própria, e voluntariamente, o papel de empresa de utilidade pública, o que lhe pesou excessivamente nos custos operacionais, sobretudo quando do advento de uma cruel competição entre as companhias de transporte aéreo internacional, dos anos 90 em diante. Se a proximidade com o Estado foi benéfica na maior parte do tempo, veio o momento em que se transformou em pesada desvantagem. E isso ocorreu precisamente quando, encerrado o regime militar, avultou-se uma forte rejeição às empresas estatais, tidas por inoperantes, corporativas e administradas de maneira incompetente. Como a Varig cometeu erros e más escolhas tão assemelhados aos que se cometiam nas estatais, foi inevitável a conotação, a tal ponto que um empresário paulista chegou, de maneira irônica, a exigir a “privatização” daquela companhia aérea, na ocasião em que muitas estatais desapareciam.

O pior desastre administrativo cometido pela Varig foi a aposta na priorização das operações e dos investimentos no aeroporto internacional do Rio de Janeiro, que os altos dirigentes entendiam de ser aquele que o governo preferiria como hub brasileiro da aviação internacional. Mas a Nova República decidiu-se por privilegiar o de São Paulo, deixando o Galeão operar em capacidade ociosa. E foi nessa ocasião que a Varig montou a excelente mas dispendiosa instalação de serviços de bordo e de solo, para si e para as demais companhias a que estava acostumada a servir. Também a compra e o aluguel de aeronaves nem sempre foi lá muito prudente, nem tampouco o escalamento de dívidas novas.

Mas a empresa continuava a ter um imenso patrimônio e a prestar um variado, estratégico e amplo serviço a outras companhias, brasileiras e estrangeiras. Além do mais, havia ganho na justiça, como outra companhia aérea, uma vultosa indenização pelos prejuízos provocados pela manipulação dos preços das tarifas pelo governo federal, entre os anos de 1985 e 1992, quantia que jamais foi paga. O Conselho de Curadores, incapaz de resolver os graves problemas, envolveu-se em disputas contornáveis e desgastantes, sendo que Rubel Thomas, um diretor-presidente, foi afastado do cargo em 1995, o que teria sido inconcebível no tempo de Ruben Berta, que administrou a Varig como um verdadeiro patriarca.

Ao começar os anos 90 era patente que a Varig precisava de ajuda do governo federal, como uma concessionária de serviço público. Entretanto, os recursos eram parcos, depois da “década perdida” dos anos 80, dominada pela hiperinflação e a dívida externa. Não era esse, no entanto, o maior dos problemas. Dois deles surgiam como portentosos bólidos em rota de colisão com a Varig. O primeiro deles foi a adoção pelo governo Collor de Mello da política de privatização de empresas estatais, para obter o desejado “estado mínimo” preconizado pelo liberalismo exacerbado que se seguiu à crise e desaparição da União Soviética. Diante das privatizações e das operações para reduzir as despesas públicas, a Varig perdeu a oportunidade de ser socorrida. E assim prosseguiu nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, quando a crise estava ainda mais aguda, nessa altura de conhecimento geral, pois a mídia tratava dela frequentemente. Nessa ocasião, a empresa já era tratada como “estatal”, “tradicional”, “pesada” e assim por diante.

Do segundo obstáculo com o qual a Varig estava prestes a colidir era ainda mais difícil se desviar, fosse por qualquer providência que se pudesse tomar. O neoliberalismo e a globalização triunfantes introduziam seus preceitos ultraliberais, no plano internacional, exigindo a desregulamentação e a remoção das barreiras ao comércio e aos serviços. No plano do transporte aéreo, a pressão foi enorme para abolir a proteção às empresas de bandeira, forçando a desnacionalização. O princípio da reciprocidade, há tanto tempo observado na aviação internacional, foi aos poucos sendo menos considerado. De outro modo, medidas extremas para cortar os custos das operações faziam baixar as tarifas, provocando uma concorrência prejudicial a empresas com o porte da Varig. Fusões e extinções de empresas e prestadoras de serviços desnortearam ainda mais as companhias aéreas em dificuldades. Ainda assim, havia uma forte corrente de opinião que considerava a Varig estratégica e indispensável ao país, pois não seria seguro nem desejável perder a posição alcançada por ela, num país com tantos planos de emergir no panorama mundial.

A Varig chegou aos anos 90 convalescente de muitas crises, os choques do petróleo dos anos 70, a Guerra do Golfo, em 1990, a crise dos mercados asiáticos, em 1997. Nos dias de sua agonia final, sofreu também as consequências do ataque terrorista nos Estados Unidos, em 2001, e as da Guerra do Iraque, em 2003. Já superara grandes problemas, por causa das tarifas controladas, na ocasião da hiperinflação, assim como com o dólar na crise da dívida externa no fim dos anos 80 e começo dos 90. Mas foi muito mais letal a desregulamentação do setor aéreo internacional pelos sucessivos governos brasileiros desde Collor, desintegrando-se a participação brasileira na aviação internacional. O que ocorreu então foi a desnacionalização quase completa deste setor da economia, a começar pelas empresas de serviços que pertenciam à Varig. Assim, a indústria de alimentos de bordo, o serviço de terra (o apoio às operações aeroportuárias, a limpeza de aviões, e a manipulação de cargas e bagagens), e a manutenção de aeronaves e motores foram todos transferidos a empresas estrangeiras.

Se as autoridades brasileiras, que já haviam deixado que se deteriorassem as ferrovias e rodovias, nada fizeram para impedir que se desnacionalizassem o transporte marítimo e o aeronáutico, pode-se dizer também que nunca neste país os governos foram tão “entreguistas” como naquela hora, para usar um conceito em voga durante o nacional-desenvolvimentismo, condenando o Brasil a uma dependência perigosa. Foi extremamente penoso assistir a Casa Civil do governo Lula intervir seguidamente em favor de uma empresa estrangeira de reputação duvidosa, no processo de alienação da companhia de transporte de cargas da Varig. Ainda que a imprensa noticiasse amplamente a respeito, aquele governo, cujo partido se diz “dos trabalhadores”, não hesitou em permitir que milhares de vagas de trabalho se extinguissem. E não levou em conta os milhares de prejudicados pelo fundo de pensão da Varig, que contribuíram por longos anos de suas vidas para a formação do pecúlio com que contavam na velhice. Vale lembrar que, nesse sentido, o juiz norte-americano Robert Drain, da Corte de Falências de Nova York, ao analisar o pedido de devolução, por falta de pagamento, dos aviões aos proprietários que os haviam arrendado à Varig decidiu-se por não arrestá-los para evitar o desastre econômico e social que a falência da Varig fatalmente acarretaria no Brasil.

Agora, quando a Varig já não é mais que uma questão de história e memória, tendo sido absorvida e liquidada pelas empresas sucessoras – sendo que uma delas é detentora da prestigiosa marca comercial surgida em 1927 –, cumpre indagar porque se deu tal escandaloso desaparecimento e que linhas de força, em pensamento e ação, contribuíram para tanto. A mídia já esquece rapidamente aqueles eventos que noticiou abundantemente. O precioso acervo abrigado na biblioteca da Varig, que ficou à disposição dos pesquisadores por décadas, tem sido sonegado ao público desde 2008. Assim, o livro de Sandra de Oliveira surge em boa hora, para dar conhecimento sistemático e bem articulado dos eventos e motivos do fim da Varig.

Este livro, tão diligentemente preparado, inaugura, penso eu, um rol de pesquisas que será continuado, por certo, por muitas outras investigações e obras, estimulando outros pesquisadores a continuar a obra de Sandra de Oliveira. Não foi nada fácil a tarefa da autora conduzir sua pesquisa. O tema tinha todas as propriedades da “história do presente”, com suas sabidas dificuldades de distanciamento do historiador, que é, no caso, um investigador participante. De outro modo, muitos eventos importantes ainda não podem ser desvelados pois que nem se concluíram, e ainda visitam as barras dos tribunais. A propósito, no curso de pós-graduação realizado por Sandra de Oliveira houve certa oposição ao tema, pelas razões dadas, e também devido às dúvidas quanto à linha de pesquisa em causa, na qual a investigação da pós-graduanda poderia se acomodar. Na verdade, como orientador, fui praticamente a única pessoa a apoiá-la integralmente, sendo obrigado, em certo momento, a transferi-la da linha de pesquisa em relações internacionais para a de política e cultura. E a decisão foi boa, pois a produção deste livro bem atesta que estava certo.

Não me parecia, como ainda hoje não me parece, que a linha de pesquisa de relações internacionais fosse contrariada pelo projeto de Sandra de Oliveira, posto que a aviação internacional foi até muito recentemente uma das atividades econômicas mais codificadas e sujeitas a acordos e negociações entre governos, não fosse também pela existência de uma vasta coleção de convenções internacionais versando a respeito. Além do mais, o caso da Varig expressa claramente uma situação clássica de interação entre o nacional e o internacional, há muito prevista por Duroselle, um teórico conhecido. Aqui também na dissertação e na pesquisa que antecederam este livro de Sandra de Oliveira, a Varig foi alcançada pelas dificuldades. Penso até que a resistência acadêmica a que aludimos resultou de um sutil e inconsciente reflexo de um substrato conservador que ocorre em todos os meios, e nem menos no acadêmico.

Sandra de Oliveira enfrentou as dificuldades imensas da pesquisa com competência e galhardia. Aqui está o bom produto de sua aplicação, a bem servir ao público e ao contribuinte que, afinal de contas, proveram os recursos para que a autora realizasse com louvor seu curso acadêmico, numa reputada universidade pública. De fato, uma das preocupações que nortearam a autora foi trazer informações, subsídios e conclusões para mostrar como se tratam as questões de interesse público neste país, por meio do exemplar caso da desaparição da Varig. Deve-se dizer também que o livro foi escrito com exemplar energia e com redação cuidada, sendo convincente em seus propósitos, ao mesmo tempo que apresenta com equilíbrio as muitas virtudes sempre esperadas da produção acadêmica. Desejo, pois, que o leitor acolha com entusiasmo e carinho esta obra de Sandra Regina de Oliveira, inaugurando desde logo uma bela fortuna crítica que há de vir.

Orlando de Barros
Rio de Janeiro, Uerj, agosto de 2011.

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