capa do livro

Cidadãos e selvagens

Antropologia e administração indígena nos Estados Unidos, 1870-1890

Thaddeus Gregory Blanchette

Antropologia, Administração, “Clássicos” e Índios

Em Cidadãos & Selvagens, Thaddeus Blanchette retoma um tema muito mencionado nos estudos sobre história da antropologia, ainda que pouquíssimo tratado em pesquisas efetivamente densas à luz de material histórico significativo, como ele o faz. Trata-se da relação entre antropologia e administração governamental, por vezes restrita às denúncias acerca do colonialismo, e quase nunca tematizada nos estudos de povos indígenas em meio à formação de Estados nacionais, parte do que poderíamos chamar (como já se fez em outros tempos) “história do pensamento antropológico”. No presente livro, antropologia, administração e índios surgem como resultante de uma pesquisa empírica muito mais abrangente, que abarca até os anos 1940.

Aqui vemos como a administração governamental de índios nos Estados Unidos da América no século XIX, contando já dentre seus quadros com estudiosos da disciplina antropológica em seu nascimento, utilizou modelos de leitura da realidade indígena elaborados a partir da obra de Lewis Henry Morgan, um dos autores referenciais canônicos da Antropologia em geral (um “clássico”), e da “tradição” nacional estadunidense em especial. O trabalho mais amplo de Banchette nos mostra não apenas como esse movimento foi parte constitutiva e intrínseca desse momento inicial, mas também permaneceu ao longo do tempo, as interpretações apoiadas na Antropologia sustentando inúmeras decisões de governo no tocante aos povos indígenas em território estadunidense. Ou seja, naquela “tradição” que veio a se afigurar como separando tão estritamente o “pensamento antropológico” dito “aplicado” daquele supostamente “puro”, nada era assim tão cindido até meados do século XX, e definitivamente no seu nascedouro as preocupações eram outras.

Mas talvez tão importante quanto constatar a mútua alimentação entre práticas de governo e saberes antropológicos, é perceber como as práticas de governo procuraram levar aos povos indígenas concepções alienígenas sobre os mesmos que, todavia figurariam em diversos registros como a verdade sobre eles. E nisso estavam numa perspectiva à frente de tantos outros, pela institucionalização dos saberes antropológicos, no entendimento época, num Bureau of American Ethnology (BAE). Trata-se de cenário muito anterior àqueles que vêm sendo estudados, em especial a partir dos anos 1920, pelos historiadores da disciplina antropológica. Em Cidadãos & Selvagens temos não apenas uma leitura de idéias, mas também das relações sociais em que estas emergiram e que fomentaram.

Sabemos pouco ou quase nada das relações entre o indigenismo brasileiro e as políticas governamentais estadunidenses para os indígenas. Em sua pesquisa, Blanchette localizou que em 1910 o grupo fundador do nosso Serviço de Proteção aos Índios (SPI) solicitou, via a pasta das Relações Exteriores do Brasil em contato com o Departamento de Estado dos Estados Unidos que o Office of Indian Affairs (OIA) enviasse ao Brasil todos os documentos que pudesse para informar sobre seu funcionamento. Não se tratou de um contato extemporâneo. Uma consulta aos estudos que estavam sendo feitos nos anos 1930 pelo SPI, acerca dos meios de regulamentar a definição de terras indígenas no Brasil, nos mostra que publicações do Office of Indian Affairs (OIA), eram das fontes mais lidas pelos atores do SPI, e a legislação daquele país no mesmo período das mais consultadas.

Há ainda muito a se pesquisar nessa seara, e o trabalho de Blanchette apenas nos aguça os sentidos. Não se trata de imaginar uma importação mecânica de modelos, mas isto sim de se pensar nos diálogos variados, nas redes que se estabeleciam, nas fontes para a imaginação social, que de certo modo retornariam depois, entretecendo-se em antropologias, indigenismos e políticas indígenas.

Creio, porém, que uma das grandes virtudes latentes do trabalho de Thaddeus Blanchette está num sinal nele lançado e que poderíamos muito bem procurar seguir: a da necessidade de constituirmos um campo que poderíamos chamar de “estudos norte-americanos” (ou “estadunidense”). Conhecemos pouco, ou quase nada, da história interna dos Estados Unidos da América (que ilumina muito da sua ação externa), aquele que foi o centro do poder capitalista hegemônico por toda a segunda metade do século XX, e ainda hoje sedia instituições fundamentais para a produção de saberes e exercícios de poderes no cenário global, já antes nos inícios do XX era um exportador de modelos de ação e pensamento para o Brasil, notadamente em antropologia e indigenismo – nesse segundo caso passando muitas vezes pela mediação do México.

É fundamental que invistamos em conhecer a história interna norte-americana – para além dos ralos conhecimentos sobre “independência” e “Guerra Civil” nos Estados Unidos, como veiculados em cursos de história –, bem como conhecer as múltiplas correntes culturais entretecidas na rica e complexa história cultural estadunidense contemporânea. Quiçá, tais movimentos intelectuais podem nos ajudar a desconstruir em minúcias as mágicas hegemônicas que nos fazem criticar e aderir – ou aderir simplesmente, sem sequer criticar – aos valores por elas veiculados, exportados de muitas maneiras e formas, em produtos e suas embalagens, e que conosco coabitam fantasmaticamente, tão naturalizadas que estão, inclusive no campo dos saberes antropológicos.

Que em breve outros esforços de estudo dos centros de poder no cenário global proliferem, e que possamos parar de nos servir a nós mesmos como pratos à reflexão acadêmica estrangeira, ou meramente reproduzir (como muitas vezes temos feito, quando os brasileiros fazem pesquisa no exterior) as linhas de força que estruturaram as antropologias nos séculos XIX e XX. É nessa direção que Thaddeus Blanchette nos guia e que, seguindo-o, podemos melhor repensar o que ensinamos e o que fazemos em antropologia e junto aos povos indígenas.

Antonio Carlos de Souza Lima

LACED/Museu Nacional

UFRJ

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