capa do livro

Mobilização social na Amazônia

A luta por justiça e por educação

Paula Mendes Lacerda (org.)

De que Amazônia nos fala este livro? Considerando as relações que os seus autores mantem com ela e os efeitos políticos e de conhecimento a que estão ligados, há pelo menos três discursos divergentes sobre a Amazônia.

No século XIX, durante a formação da nação brasileira, a Amazônia foi muitas vezes pensada pelos intelectuais como um império da natureza e um deserto para a história e para a civilização. Neste conjunto, reaparecem velhos mitos imperiais, como a teoria jurídica portuguesa do “uti possidetis” ou a figura britânica da terra de ninguém “no one’s man land”, metáfora justificadora da invasão e do saque. Aí também o olhar dos viajantes nacionais, ao sentir-se confrontado com “as mais imensas solidões que vivenciou a alma humana”, preparou a estrada para a metáfora geopolítica do “vazio demográfico”. Em tudo isso os únicos direitos possíveis eram aqueles do colonizador.

Atualmente, tal discurso, ainda que modificado, se encontra em setores conservadores que, de maneira nostálgica, tentam recuperar a imagem de um passado supostamente dourado. Ali, à população nativa, subalternizada e logo empobrecida, não eram reconhecidos quaisquer direitos. Os nativos eram julgados como seres inteiramente fora da nação, cabendo-lhes apenas aceitar com passividade a dominação de estilo paternalista.

O segundo conjunto, localizado sobretudo no século XX, mostra que o universo precedente nada tinha de idílico. Vem assim a colocar sob seu foco de atenção os que sofriam os impactos de um desenvolvimento selvagem e predatório. Exemplifica tal percepção a célebre descrição de Euclides da Cunha sobre os seringais – trata-se de um regime de trabalho tão bárbaro e brutalizador, que ele o classifica como uma das piores formas de servidão encontradas ao longo da história do homem.

O papel histórico dos agentes externos, intelectuais, militares e administradores, passou a ser o de contribuir para a “nacionalização dos sertões”, favorecendo que os direitos humanos, afirmados nas leis promulgadas nas capitais, pudessem chegar até o “interior”. O discurso indigenista expressava com perfeição, nos textos de Darcy Ribeiro (seu mais conhecido divulgador), as polaridades que moviam este complexo ideológico, atribuindo ao poder federal e aos seus agentes e porta-vozes a missão e a capacidade de levar aos nativos oprimidos a existência de direitos e a possibilidade de uma proteção do Estado aos cidadãos.

A utopia reformista foi maniqueísta e apocalíptica – o “sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” – e cabia aos governos, bem como ao segmento progressista das elites, um papel fundamental nessa transformação. O contexto político maior de tudo isso é o nacionalismo populista e estatizante, que escolheu como seu inimigo o mandonismo local e as formas econômicas arcaicas, que insistiriam – pode-se hoje dizer quase que ingenuamente – em caminhar na contramão de uma nação moderna e democrática.

Desde as últimas décadas do século passado vemos surgir um terceiro regime de memória sobre a Amazônia, radicalmente novo e distinto. Aí as formas econômicas mais lucrativas e pujantes ao nível local não mais se contrapõem aos interesses centrais da economia, evidenciando ao contrário as articulações nacionais e internacionais que as comandam. O poder federal não se apresenta mais como econômica e socialmente neutro no plano local, as expectativas de que atue como uma vanguarda propulsora de direitos e cidadania revelam-se ingênuas e simplórias. O sertão e o mar são agora cenários diversos de uma rede de dominação que se estende globalmente.

Ao invés de estarem resolvidas pelo chamado “progresso”, as desigualdades se tornam ainda mais gritantes e as formas de opressão (inclusive as mais duras, como o trabalho escravo) persistem. É neste cenário que os conflitos cada vez mais se acirram, evidenciando um protagonismo totalmente distinto, assumido por agentes novos, com estratégias e bandeiras muito heterogêneas.

A pauta da terra, que está criando uma nova unidade entre as fragmentadas mobilizações e os heterogêneos movimentos da região, realimenta as lutas contemporâneas e concorre para uma nova imagem da Amazônia, baseada na valorização de conhecimentos locais, na gestão coletiva de territórios e conflitos, na formação de lideranças, associações e formas de organizações nativas, capazes de levar adiante projetos e utopias construídas de fato por esses agentes históricos.

João Pacheco de Oliveira

Professor Titular do Museu Nacional/UFRJ,

colaborador do PPGAS/Ufam e assessor do Proind/UEA.

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