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Teatro do oprimido e negritude

A utilização do teatro-fórum na questão racial

Licko Turle

Os motivos que levaram à decisão de publicar um estudo sobre a montagem teatral de O pregador – espetáculo realizado em 1995, somente por negros universitários, utilizando as técnicas do teatro-fórum, do método do Teatro do Oprimido, criado e desenvolvido por Augusto Boal (à época, vereador do município do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores) – são muitos.

O primeiro foi apoiar a iniciativa da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) de criar, dentro das políticas públicas culturais do governo federal, o programa Arte Negra – cinco editais públicos para estimular a criação e a pesquisa de negras e negros brasileiros de forma a publicizar a prática da produção artística e da pesquisa intelectual que o mercado cultural insiste em deixar à margem, apesar de saber que a grande maioria dos seus consumidores são pretos ou pardos.

O segundo motivo foi perceber que, apesar da lei 11.645/2008 – que insere no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena –, a literatura de apoio pedagógico ao professor de arte ainda é escassa nessa área.

Este livro é a tentativa de sistematizar e disponibilizar a docentes e discentes de teatro os conhecimentos contidos na experiência do processo de montagem de O pregador, que tem como tema o racismo na sociedade brasileira, de maneira que possa servir de subsídio teórico para diretores, atores e alunos – negros ou não – dos diversos cursos de teatro, pois sabemos que tanto as práticas artísticas quanto os estudos das performances afro-brasileiras não encontram aceitação fácil dentro dos meios teatrais e acadêmicos ortodoxos. Daí, a intenção de contribuir concretamente para o desenvolvimento da pesquisa, da documentação, da divulgação e da valorização dessas performances artísticas em suas diversas formas.

Por último, por entender que este material pode ser explorado na educação básica, uma vez que trata de informações sobre manifestações artísticas e culturais que, por razões históricas, até recentemente haviam sido excluídas dos currículos escolares. A lei 11.645/2008, que insere no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade das culturas afro-brasileiras e indígenas, expõe, no 1º parágrafo do artigo 26-A, os aspectos essenciais da história e da cultura desses dois grupos étnicos que devem ser incluídos no conteúdo programático das escolas e ressalta a contribuição dos negros e dos povos indígenas na formação da sociedade brasileira.

Poderá, também, ser utilizado como material de apoio para aquele professor que queira trabalhar com seus alunos a questão racial pelo ensino do teatro, uma vez que está apresentado por meio de imagens e trechos do texto dramático comentados para a apreensão dessa cultura em seus sentidos ético e estético mais amplos, apesar de não ser um “livro paradidático” – aquele elaborado com o objetivo de ampliar e aprofundar um determinado tema ligado a uma disciplina do currículo, auxiliando no seu ensino e aprendizagem –, não seguindo, porém, uma progressão estritamente linear e didaticamente convencional, informando antes o leitor por meio da ficção e da linguagem poética do teatro do oprimido para abordar o tópico central, atravessando-o com outras informações pertinentes ao desenvolvimento de um pensamento reflexivo e crítico.

O diferencial deste livro é a demonstração do uso e da aplicação que se fez da técnica de construção de um “antimodelo” de teatro-fórum, proposto por Augusto Boal, e o enfoque que pretendemos dar à apresentação dessas informações, organizando-as não segundo critérios estéticos meramente descritivos, que frequentemente impregnam os materiais didáticos, mas, ao contrário, apresentando-as do ponto de vista do estudo das performances, ou seja, como um manancial lúdico-filosófico que se concretiza pela vivência das diversas modalidades artísticas descendentes de tradições ancoradas na autoestima e na identidade étnica dos integrantes do elenco do espetáculo.

O livro tem a intenção de auxiliar o preenchimento das lacunas históricas e teórico-conceituais ainda existentes sobre o ensino do teatro negro, voltando-se tanto para estudantes quanto para profissionais de teatro e arte-educadores que desejam atuar nesse campo em cursos e escolas de artes cênicas., Apesar dos esforços empreendidos pelo governo federal nos últimos dez anos, com a implementação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 e a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/1996 –, a temática da história e da cultura afro-brasileira – suas danças, teatralidade, musicalidade e mitologia das tradições escritas e orais – ainda não foi efetivamente valorizada no âmbito educacional, mesmo sendo incluída obrigatoriamente no currículo oficial da rede brasileira de ensino, enfrentando ainda o desafio de superar séculos de preconceitos históricos enraizados no imaginário de grande parcela do povo brasileiro sobre a suposta inferioridade das culturas africanas ante a hegemonia cultural europeia. Não obstante, até recentemente, as culturas africanas, afro-brasileiras e ameríndias apareciam nos livros didáticos sob formas muitas vezes preconceituosas e discriminatórias, não exigindo do professor um conhecimento mais profundo a respeito do negro e do indígena, salvo para afirmá-los como elementos étnicos formadores do povo brasileiro em sua miscigenação com o elemento português. Ficando mais a cargo da sensibilidade pessoal de educadores e gestores, as questões ligadas àquelas culturas amiúde se reduziam ao mero cumprimento formal de um conteúdo histórico, lembrado por meio de cartazes e de comemorações fugazes do dia do Índio (19 de abril) e do dia da Abolição da Escravatura (13 de maio). Desse modo, ainda que comprometidos eticamente com a valorização da propalada diversidade cultural, na prática cotidiana os professores tendiam a abordar as questões afro-ameríndias apenas em ocasiões fortuitas, fazendo-o mais apropriadamente apenas quando o tema em si era explicitamente incluído no projeto político pedagógico da escola, como atividade interdisciplinar. Mesmo assim, a falta de material didático específico para essa área e para esse nível de ensino dificultava a consecução de boas ideias, distanciando esse importante assunto da prática cotidiana levada a cabo nos estabelecimentos escolares.

Em uma das cenas de O pregador, é apresentada a natureza dos conteúdos abordados nos livros didáticos com disseminação “oficializada” de preceitos errôneos, negativos ou preconceituosos no ambiente escolar, problema que toca, particularmente, a questão da diversidade cultural.

O livro procura demonstrar como as técnicas do teatro do oprimido podem ser utilizadas para o desenvolvimento de práticas artísticas marcadamente coletivas, carregadas de matrizes culturais que se caracterizam pela natureza comunitária de seus processos de aprendizagem, criação, produção e realização de suas formas estéticas e do compartilhamento de experiências e saberes que possibilitam a abordagem das questões da afro-brasilidade, além da descoberta, investigação e adoção de novos processos criativos e de treinamentos não-ortodoxos, baseados em inúmeras práticas corporais e improvisacionais que os estudos da performance engendram nas artes cênicas contemporâneas.

Em O pregador, buscou-se realizar uma análise sistemática das diversas formas de opressão utilizadas pela cultura racista por meio de depoimentos dos atores, que forneceram materiais relevantes para a escritura do texto, um conjunto de cenas que colocam informações e conhecimentos fundamentais para se identificar um ato de preconceito racial e as suas dissimulações e tem a intenção de divulgar um saber de grande importância para o resgate da autoestima, a criação de ferramentas de defesa e a valorização das raízes culturais afro-brasileiras.

O livro tenta interpretar procedimentos artísticos e metodológicos desenvolvidos pelo Coletivo Estadual de Negros Universitários (Cenun) e estuda os seus processos cênicos, sobretudo no que diz respeito aos modos expressivos, dramatúrgicos e operacionais que esse “outro teatro” pode agenciar por meio de seus procedimentos criativos próprios e do tipo de transmissão de seus saberes.

Esperamos que esta publicação estimule outros pesquisadores das artes cênicas a dedicarem futuras investigações artístico-pedagógicas no campo das performances afro-brasileiras, contribuindo para a formação de recursos humanos para o ensino, a pesquisa e a inovação nessa área.

Acreditamos que a observação, o registro audiovisual, a organização e a publicidade de experiências e projetos artísticos de performances afro-brasileiras exitosos venham a auxiliar a criação de parâmetros que extrapolem as categorias convencionais da análise teatral, usualmente voltadas para o espetáculo de palco, da cena à italiana, de caráter nitidamente eurocêntrico, como o nome diz.

Por fim, o livro analisa as fotos, os registros audiovisuais dos debates, as reuniões, os ensaios, as apresentações e avaliações com depoimentos dos artistas e reportagens que auxiliaram na tarefa de elaborar um panorama que permitisse articular as questões teórico-conceituais do teatro do oprimido com a construção de cenas dramáticas sobre a realidade cotidiana onde tais manifestações ocorreram e forneceram subsídios para a abordagem de modo transversal dos seguintes temas e conceitos fundamentais: estética, espaço cênico, relação ator-espectador, carnavalização, musicalidade, ritual, pedagogias teatrais, cultura popular, arte pública, identidade cultural, dentre outros.

Este trabalho visa auxiliar aqueles que venham a utilizar o método do teatro do oprimido, criando novas possibilidades estéticas de diálogos sociais e contribuindo ética e politicamente com a população afro-brasileira, de forma que ela deixe de ser espectadora do seu presente e passe a ser a protagonista do seu futuro, servindo, ainda, como reflexão sobre uma produção dramatúrgica que permita ao negro falar de seus conflitos na cena teatral brasileira.

O pregador narra a história de Clara, mulher negra, heroína trágica que tenta fugir ao seu destino (destino social imposto aos negros brasileiros) e realizar seu desejo, sua vontade, enfrentando todos os tipos de discriminação, inclusive no seio de sua própria família e de seus pares sociais. Após muitas desventuras, forma-se em direito, mas não consegue atuar no ramo por ser negra e acaba aceitando trabalhar como auxiliar do departamento de advocacia da Padrão Global S. A. devido à forte pressão da sociedade.

A dramaturgia tenta demonstrar que o negro realmente interessa ao autor, ao ator e à plateia como uma personagem cheia de possibilidades dramáticas, na medida em que a dramatização de sua vida lhe proporciona um meio de expressar ideias de fundo sociopolítico ou moral a respeito da realidade do negro no Brasil. É sobre a pessoa humana do negro, com sua carga natural de conflitos e problemas também existenciais, que esse projeto pretende falar. Falar de si, da sua relação familiar, de suas crenças, de seus desejos e vontades, do país, do mundo, da problemática do negro hodierno, fonte de conflitos e perturbações. O teatro brasileiro pouco tem se preocupado com o negro, entendido como um ser humano envolvido nos mesmos problemas que afligem o homem branco comum. O pregador mostra a situação do negro brasileiro dentro de uma sociedade que o liberou, mas que manteve contra ele os mesmos preconceitos.

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