Práticas Discursivas ao Olhar
Notas sobre a vidência e a cegueira na formação do pedagogo
A oportunidade dessa obra paradidática, de apoio a componente curricular
para os cursos de Pedagogia de Angra dos Reis e de Niterói, da Universidade
Federal Fluminense, encontra-se em seus objetivos de divulgar e de discutir
a produção acadêmica que gradativamente constitui o campo
da Imagética. Enquanto material de ensino, a obra foi aprovada junto
ao Departamento de Fundamentos Pedagógicos (SFP) e Pró-Reitoria
de Assuntos Acadêmicos (Proac) e tem como leitor preferencial os graduandos
dos cursos de Pedagogia entre o primeiro e o sexto períodos, discentes
das disciplinas de Pedagogia da Imagem, Fotografia Brincante
para a Educação Inclusiva em DV, O Homem para Além
do Trabalho e Trabalho, Cultura, Escola. Esse horizonte não
impede que um público mais amplo possa encontrar subsídios para
melhor enfrentar o desafio que se impõe em nossa humanização:
compreender a discursividade que a sociedade humana produz na materialidade
de imagens em diferentes suportes.
Nossa expectativa ao oferecermos essa obra introdutória foi a de divulgarmos
conhecimentos produzidos no domínio das Ciências Humanas para,
no limite, atuarmos em um presente saturado de imagens, construindo um olhar
sobre as práticas educativas escolares e não escolares a partir
da definição dos paradigmas que permitam a construção
de objetos de pesquisa, de ensino, de extensão. Os textos são
escritos como notas de trabalho uma vez que não pretendemos
esgotar nenhum dos temas abordados. Ao contrário, a intenção
é introduzir questões, encaminhando possibilidades de tratamento
a partir da posição teórica assumida no âmbito da
Análise de Discursos (AD) demarcada por Eni Orlandi.
Enfatizar ao longo de toda uma obra as relações entre imagem e
olhar pode parecer para muitos uma temeridade e excesso. Isto porque, ainda
hoje, um número expressivo de homens permanece à margem da escrita
e das condições básicas para apropriação
do patrimônio humano que a cultura do livro media. Talvez, por força
dessa urgência, a escola moderna tenha dado pouca atenção
a formas confluentes de comunicação como, por exemplo, o das imagens.
Nosso esforço dirige-se à ocupar essa lacuna, defendendo que na
formação dos profissionais de educação a linguagem
verbal partilhe espaços com diferentes códigos de significação,
explorando as formas de comunicação em todas as suas confluências
verbo-visuais.
A obra é produto de um trabalho em desenvolvimento à dez anos,
envolvendo pesquisas sobre História da Educação e, nela,
diferentes deslocamentos enfocando a formação do pedagogo, a educação
inclusiva, para DV, a formação do professor indígena guarani
mby'á. Expressa também a preocupação em tornar didática
a reflexão acumulada desde que iniciamos, em 1988, um percurso de pesquisas
sistematizadas no campo ora em construção. Nesse sentido, a obra
indicia nossa singular trajetória, em sua riqueza e suas limitações,
refletindo sobre o processo fotográfico no campo historiográfico
e em seu esgarçamento para o fenômeno educativo. Acreditamos que
os textos reunidos favoreçam àqueles que, imersos nas práticas
educativas, identifiquem no conjunto de textos uma contribuição
teórica e metodológica, viabilizando a abordagem da imagética
como sociabilização, subjetivação, cognição
aos videntes ou não.
A superação da neutralidade no tratamento da imagem e do olhar
implica considerá-los como produzidos socialmente, demandando
o concurso de domínios científicos numa necessária interdisciplinaridade.
Esse procedimento torna-se indispensável para melhor compreendermos as
mediações que, numa longa duração, endossam imposições
ou re-elaboram o como ver, o porque ver, o o que
ver, servindo como campo para pensarmos as práticas do olhar como
totalidade, síntese de múltiplas determinações.
Não abordamos a imagem bidimensional, especialmente a fotográfica,
centrados na História da Arte, apesar da rica possibilidade de enfatizarmos
o patrimônio pictórico humano, especialmente ocidental. Ainda assim,
em uma perspectiva de longa duração, fundada em Braudel,
consideramos indispensável a contextualização da fotografia
no âmbito das teorias de Da Vinci, Alberti e Brunechelli, responsáveis
pela elaboração de um discurso fundador, matemático, ao
olhar moderno. Essa associação, presente na obra, apenas introduz
uma discussão voltada à gnose do homem ocidental na era moderna,
especialmente no campo do olhar burguês, fundado na perspectiva renascentista,
na espacialização e na hegemonia da racionalidade, homogeneidade
e finitude, considerando o horizonte da realização do capital.
Não abordamos a fotografia na perspectiva centrada na história
do suporte. Interessa-nos seu contexto gnoseológico, sua esfera epistêmica,
seus impactos na dimensão cognitiva, dadas as rupturas que impõe
na percepção moderna de espaço (a foto fala
de um aqui registrado em um lugar outro...) e de tempo (a foto carrega
para o presente um tempo cindido, uma fatia do agora
que, no olhar do presente, já era...e ainda assim, está aí...).
Não estamos desatentos à uma mestiçagem das imagens,
tal como aponta Phillipe Dubois tornando a imagem fotográfica
imersa no vídeo, o vídeo na infografia... e à dimensão
de inflexão que a fotografia encerra, nas palavras de Etienne Samain,
potencializando a construção de um novo observador.
Discutimos a imagem técnica e seus suportes sob o eixo do olhar, do espectador
enquanto sujeito e objeto. A nossa preocupação fundamental é
com o homem na multidão o homem de Baudelaire, recuperado por
Walter Benjamin , em suas ações cotidianas, balizadas por
uma percepção sensorial de espaço e de tempo, tensionado
pelas novas esferas das relações sociais, marcadas pelas práticas
da cidade, pela reprodutibilidade e pela mercadoria, aspectos que tendem a cindí-lo
e aliená-lo.
A partir dessa rede, propomos uma mudança de eixo na discussão
quanto à inserção de meios visuais nas práticas
de ensino. Entendemos que a escola deve ser crítica da imagem naturalizada,
em um esforço de reflexão que subjetive a objetividade presente
nas mídias. Defendemos, assim, a imagem como linguagem, estruturada e
estruturante do pensamento. Acreditamos que a educação escolar
pode e deve utilizar-se dos recursos verbo visuais como instrumentos de produção
de memórias, de elaboração de narrativas, de recuperação
dos indivíduos como narradores.
Apesar de sermos potencialmente sujeitos do olhar e objetos
da imagem, modernamente surge uma fratura nessa dupla natureza em razão
da lógica do capital. No mundo da mercadoria, tendemos a nos tornar objetos
da imagem, alienando-nos de nossa condição de sujeitos
do olhar. O olhar que pode subjetivar a imagem é cada vez mais
subssumido pela objetividade da figuração, da composição,
do suporte enquanto espetáculo que nos hipnotiza e consome. Somos, cada
vez menos, sujeitos do olhar, fragilizando nossa condição de co-autores
de narrativas imagéticas.
Ao final do percurso na verdade, ainda, um simples ponto de partida,
apenas mais qualificado , lembramo-nos do eterno João Cabral de
Melo Neto, em suas verdades poéticas sobre a tessitura da Vida e
porque não? do conhecimento, sempre em rede, em nós entrelaçado,
sempre partilhado e compartilhado como meu, como seu, como nosso:
Um galo sozinho não tece uma manhã.
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe seu grito
E o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo.
Para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
Armando Martins de Barros
Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro,
Morro do Vintém, Engenho Novo,
Cidade de Paraty, Paratymirin,
Aldeia de Itatin e Base Ecológica, setembro de 2003.