capa do livro

Estudos nos Gerais Mineiro

Interlocuções de pesquisas acadêmicas

Andréa Maria Narciso Rocha de Paula | Daniel Coelho de Oliveira | Rômulo Soares Barbosa (orgs.)

Estudos nos Gerais Mineiro
interlocuções de pesquisas acadêmicas

Andréa Maria Narciso Rocha de Paula
Daniel Coelho de Oliveira
Rômulo Soares Barbosa

Organizadores

Rio de Janeiro, 2022

© Andréa Maria Narciso Rocha de Paula, Daniel Coelho de Oliveira e Rômulo Soares Barbosa, 2022.

Todos os direitos reservados a Andréa Maria Narciso Rocha de Paula, Daniel Coelho de Oliveira e Rômulo Soares Barbosa. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores.

Impresso no Brasil.

ISBN 978-65-87065-53-3

Conselho Editorial

Carlos Rodrigues Brandão (Universidade de Campinas – UNICAMP)

Fausto Makishi (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG)

João Cleps Junior (Universidade Federal de Uberlândia – UFU)

Revisão

Larissa Marum

Foto de capa

Elisa Cotta

Diagramação

Michelly Batista

Disponível no site da Editora E-papers
http://www.e-papers.com.br
Avenida das Américas, 3.200 bloco 1 sala 138
Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – Brasil
CEP 22.640-102

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

E85

Estudos nos gerais mineiro : interlocuções de pesquisas acadêmicas / organização AndréaMaria Narciso Rocha de Paula , Daniel Coelho de Oliveira , Rômulo Soares Barbosa. - 1.

ed. - Rio de Janeiro : E-papers, 2022.

154 p. : il. ; 23 cm.

Inclui bibliografia

ISBN 978-65-87065-53-3

1. Planejamento urbano - Minas Gerais (MG). 2. Minas Gerais - Biodiversidade. I.

Paula, Andréa Maria Narciso Rocha de. II. Oliveira, Daniel Coelho de. III. Barbosa, Rômulo Soares.

22-81359 CDD: 307.3416098151

CDU: 316.334.56:711.4(815.1)

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643

Sumário

APRESENTAÇÃO 5

CAPÍTULO 1

O VIVIDO E A LUTA PELOS DIREITOS:
O RECONHECIMENTO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA 11

Ana Flávia Rocha de Araújo | Andréa Maria Narciso Rocha de Paula

CAPÍTULO 2

URBANIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO:
CONTRIBUIÇÕES DA AGRICULTURA URBANA 25

Cristh Ellen Ferreira Pinheiro| Hélder dos Anjos Augusto Cledinado Aparecido Dias | Giliarde Souza Brito

CAPÍTULO 3

HOMENS E DEUSES: COMIDAS E OFERENDAS PARA AS DIVINDADES 41

Fábio da Silva Gonçalves | Daniel Coelho de Oliveira

CAPÍTULO 4

JUVENTUDE RURAL DO ALTO RIO PARDO: REPRODUÇÃO SOCIAL CAMPONESA NO NORTE DE MINAS GERAIS 69

Erika Fernanda Pereira de Souza | José Paulo Pietrafesa

CAPÍTULO 5

DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO INTERIOR DE MINAS GERAIS; UM ESTUDO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA DE SELEÇÃO UNIFICADA (SISU) NA UNIMONTES 89

Mônica Maria Teixeira Amorim | Emília Murta Morais | Maria Jacy Maia Velloso

CAPÍTULO 6

VAZANTEIROS DE PAU DE LÉGUA: A ANCESTRALIDADE E A RESISTÊNCIA NA LUTA POR UM TERRITÓRIO LIVRE 107

Júlia Veloso dos Santos | Felisa Cançado Anaya

CAPÍTULO 7

GERAIZEIROS DO ALTO RIO PARDO-MG: LUTAS POR TERRITÓRIO E INVENTIVIDADE LOCAL 125

Aldinei S. Dias Leão | Rômulo Soares Barbosa

SOBRE OS AUTORES 149

APRESENTAÇÃO

Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes.”(ROSA, 2006, p. 542)1.

Essa coletânea, reúne textos de pesquisadoras e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, com um objeto de análise comum: pesquisas na região do norte de Minas Gerais.

O norte de Minas Gerais apresenta diversidade de ambientes naturais e de povos nativos que através da ocupação e manejo do território constituíram processos de saber -fazer que os distinguem através de diferentes modos de vida, culturas e identidades. Tais singularidades foram descritas na literatura de João Guimarães Rosa, que ao falar do sertão, apresentou um território com pluralidade de persona gentes carregadas de culturas, em um lugar definido como a região dos “gerais”, dos “campos gerais”, do “sertão”, dos “sertões”.

“Mas que na beira dele tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas há lá. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniões (...) O sertão está em toda a parte. (ROSA,1986, p.1)2.

Na obra Roseana, estão presentes percepções e sensações de territórios imensos, mas também de detalhes de cenários e de lugares geográficos que, entre suas muitas semelhanças e suas inúmeras diferenças refletem o sertão em toda a parte, entre o real e o simbólico que constroem uma geografia sertaneja com o sertão dentro da gente onde a profundidade dialética transforma o sertão do tamanho do mundo materializado no Norte de Minas Gerais. Uma região do semiárido, com vegetação de cerrado de veredas e buritis, com áreas de caatinga e mata seca, com grandes rios e corguinhos. Entre espaços amplos de monoculturas devastadoras e de pecuária extensiva , existem lugares de vilarejos, comunidades tradicionais, cidades, vivem povos e grupos etnicamente diferenciados na fronteira entre o rural e o urbano, entre crenças, ritos, divindades e racionalidades diversas.

O livro que apresentamos é composto de estudos que refletem essa polissemia de povos e lugares no sertão norte mineiro, frutos de pesquisas realizadas envolvendo os temas de investigações dos autores em programas de pós graduação de universidades publicas. Os temas abordados perpassam da Educação de jovens rurais, evasão escolar, comunidades e resistências de povos tradicionais, agricultura urbana e as oferendas as divindades. Organizado em sete capítulos, os autores apresentam a discussão teórica e metodológica de trabalhos que vem sendo realizados no campo acadêmico, desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social (PPGDS/UNIMONTES), no Programa de Pós-Graduação Associado UFMG/UNIMONTES em Sociedade, Ambiente e Território e no Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE/UFG).

No Capítulo 1, “O Vivido e a Luta pelos Direitos: o reconhecimento dos Povos e Comunidades Tradicionais e as estratégias de resistência” de autoria de Ana Flávia Rocha de Araújo e Andréa Maria Narciso Rocha de Paula, propõem uma reflexão sobre os povos e comunidades tradicionais frente aos processos de desenvolvimento e as consequentes estratégias acionadas por estes povos na luta por seus direitos. Amparados pelo Decreto 6040/07 que estabelece um marco legal na produção conceitual do significado de Povos e Comunidades Tradicionais, esses grupos vêm apresentando suas lutas por direitos territoriais. A opção conceitual pelo termo “comunidades” para além de abarcar as singularidades de cada povo, caracteriza um modo de vida aonde as interações cotidianas resultam num agir coletivamente. São povos que ocupam e reivindicam seus territórios tradicionais, e que lutam pelo direito de serem reconhecidos mediante a memória de seu processo de ocupação, de pertencimento a um lugar, da maneira de ver o mundo. O texto ainda enfatiza a importância dos sistemas de conhecimentos tradicionais na luta por seus direitos e como forma de vivenciar o mundo e a construção das possibilidades de resistências através de articulações entre e com os povos do lugar.

No Capítulo 2, “Urbanização e desenvolvimento: contribuições da agricultura urbana”, Cristh Ellen Ferreira Pinheiro, Hélder dos Anjos Augusto, Cledinado Aparecido Dias e Giliarde Souza Brito propõem discussões sobre urbanização e desenvolvimento. Os apontamentos do texto direcionam suas reflexões para políticas públicas que abarcam cidades sustentáveis numa lógica de integração econômica, ambiental e social. Nesse sentido, os autores buscam analisar a agricultura urbana (AU) como mecanismo de desenvolvimento urbano sustentável e suas consequentes melhorias na qualidade de vida dos citadinos. A pesquisa nos permite compreender que a urbanização, fundamentada na concepção econômica, especificamente a industrialização nos moldes capitalistas, cuja sociedade obsessiva direcionou em estabelecer padrões de qualidade de vida, associada ao consumo excessivo e à apropriação irracional dos recursos naturais, permitiu a imposição da indústria na lógica produtiva, contemplando os fatores de produção exigidos pela sinergia industrial de produtividade. O texto chama a atenção para as alternativas de desenvolvimento urbano, como a agricultura urbana, a qual tem um papel determinante na requalificação do ambiente da cidade, e para a importância do diálogo entre as diversas áreas de conhecimento, que podem proporcionar a interação social, a qualidade de vida dos citadinos e, acima de tudo, equipamentos que integram as áreas verdes, de produção e lazer.

No Capítulo 3, “Homens e Deuses: comidas e oferendas para as divindades”, os autores Fábio da Silva Gonçalves e Daniel Coelho de Oliveira buscam compreender a dinâmica das comidas/oferendas feitas às divindades, bem como as práticas alimentares dos médiuns, relacionadas aos fundamentos teológicos, doutrinários e ritualísticos provenientes das religiões Candomblé, Umbanda e Quimbanda, em Bocaiuva/MG. Os autores utilizam metodologicamente a pesquisa participante e as entrevistas estruturadas e semiestruturadas em terreiros com líderes religiosos e demais participantes dos cultos. De forma geral, o capítulo apresenta os processos que envolvem a comida ofertada às divindades em vários contextos ritualísticos e que dizem respeito à alimentação de adeptos das religiões em questão, tocando em pontos como predileções, quizilas, orientações espirituais e alimentação decorrente de rituais específicos.

Já no Capítulo 4, “Juventude rural do Alto Rio Pardo: reprodução social camponesa no Norte de Minas Gerais”, escrito por Erika Fernanda Pereira de Souza e José Paulo Pietrafesa, é analisada a atuação de jovens egressos da Escola Família Agrícola (EFA) Nova Esperança, no município de Taiobeiras, em Minas Gerais. A pesquisa foi realizada com egressos concluintes do Ensino Médio integrado ao Técnico Profissionalizante em Agropecuária da Escola Família Agrícola Nova Esperança. O capítulo apresenta as possibilidades de atuação dos jovens egressos da EFA e os desafios que eles enfrentam, de forma especial nos processos de reprodução social e de inserção produtiva, além de conflitos e tensões ligados à relação entre educação e trabalho.

No Capítulo 5, “Democratização do Ensino Superior no interior de Minas Gerais: um estudo sobre a implementação do Sistema de Seleção Unificada (SiSU) na UNIMONTES”, Mônica Maria Teixeira Amorim, Emília Murta Morais e Maria Jacy Maia Velloso analisam o processo de acesso ao ensino superior público e gratuito na Universidade Estadual de Montes Claros por meio da implantação do SiSU. O estudo do tipo descritivo com ênfase na abordagem qualitativa foi desenvolvido entre 2018 e 2020. Além da revisão da literatura temática, foram realizadas entrevistas com profissionais da universidade envolvidos na política de seleção, o levantamento de dados de matrícula e de evasão, além da aplicação direta de questionários para graduandos e estudantes evadidos.

Capítulo 6, “Vazanteiros de Pau de Légua: a ancestralidade e a resistência na luta por um território livre”, Júlia Veloso dos Santos e Felisa Cançado Anaya procuram compreender as distintas formas de apropriação territorial do espaço social onde foi criado o Parque Estadual da Mata Seca em sobreposição ao tradicional território da comunidade vazanteira de Pau de Légua, no município de Manga/MG. Os conflitos ambientais e territoriais são apresentados por diferentes atores cujas territorialidades se contrapõem. Além da revisão bibliográfica, as autoras realizaram análise documental e trabalho de campo. Foram utilizadas técnicas de observação participante, entrevistas de história oral, entrevistas semiestruturadas e aplicação de questionário para a caracterização quantitativa de dados socioeconômicos e culturais. Como resultado empírico, o capítulo apresenta as consequências diretas da implementação das políticas de modernização do campo, das políticas ambientais compensatórias, do não reconhecimento e da não regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas da comunidade vazanteira pelo Estado.

Por fim, no Capítulo 7, “Geraizeiros do Alto Rio Pardo/MG: lutas por território e inventividade local”, de Aldinei Sebastião Dias Leão e Rômulo Soares Barbosa, são analisados processos sociais de reafirmação identitária, de lutas territoriais e de autoafirmação de uma das categorias desses sujeitos coletivos de direito nas comunidades tradicionais geraizeiras do Alto Rio Pardo. Os autores realizam um debate sobre lutas, reivindicações e movimentações das comunidades Baixa Grande e Moreira, localizadas no município de Rio Pardo de Minas, nos processos de afirmação das suas identidades e de luta pelo reconhecimento formal e pela proteção dos seus territórios. O texto aborda importante investigação para esses sujeitos frente ao pensamento hegemônico, monocultor e globalizante que afeta a região.

Esperamos que o livro, instigue ao leitor/leitora as reflexões, debates e discussões a partir das pesquisas apresentadas e que estimule novos conhecimentos, investigações sobre as temáticas estudadas na região dos Gerais mineiro.

Fiquemos novamente com João Guimarães Rosa: “E o que era para ser. O que é pra ser – são as palavras! (ROSA, 1986, p. 37)3.

Boa Leitura!

Os organizadores.

Andrea M. Narciso Rocha de Paula, Daniel Coelho de Oliveira e
Rômulo Soares Barbosa4

CAPÍTULO 1

O VIVIDO E A LUTA PELOS DIREITOS:
O RECONHECIMENTO DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA

Ana Flávia Rocha de Araújo
Andréa Maria Narciso Rocha de Paula

Notas introdutórias

O conceito de Comunidade Tradicional tem se tornado cada vez mais recorrente nos debates e políticas públicas contemporâneas, onde os modos de vida, as formas de apropriação do espaço, os conflitos territoriais, a multiplicidade de identidades, tem traçado o olhar para esses grupos etnicamente diferenciados.

Desde meados do século XX, a temática dos povos tradicionais já se fazia presente nos mais intensos debates sobre as diferenças e singularidades dos modos de vida desses grupos. No entanto, no decorrer deste processo, inúmeras foram as tentativas de criar uma conceituação que abarcasse todas essas caracterizações dentro de um mesmo campo. Diversos pesquisadores, entre eles Almeida (2004), Barreto Filho (2006), Brandão (2012), já compreendiam a dificuldade de rotular esses grupos sociais dentro de um conceito fechado devido a presença de segmentos distintos e identitários que coexistem dentro de cada grupo.

A categoria de Comunidade Tradicional envolve o debate de elementos do campo dos direitos consuetudinários, ampliando a ideia de que a morada e/ou a presença em um determinado território por um espaço de tempo gera direitos aos sujeitos; que através do saber- fazer, das relações entre as gerações constituídas entre o homem e a natureza forjada na diferença, demarca a significação da terra enquanto pertencimento ao lugar para aqueles que a habitam.

A trajetória da luta pelo reconhecimento dos povos tradicionais e as estratégias de resistências desses grupos são objetivos da análise desse artigo, para a compreensão de que os avanços na luta pelos territórios tradicionalmente ocupados são possíveis através da leitura do vivido e para a visibilidade dos desafios e enfrentamentos do presente. Através de uma revisão bibliográfica e de análise de textos clássicos da Antropologia, foi possível aventar categorias como tradição e identidade como primordiais para o debate sobre povos tradicionais.

Povos, comunidades, terras tradiconalmente ocupadas

Até meados dos anos de 1980, pouco foram os projetos de intervenção que visibilizavam a preservação e apoio às populações que residiam em Áreas Protegidas (APs). Segundo Diegues (2004), o modelo brasileiro vigente de APs foi uma importação do modelo norte-americano, que ainda era baseado num sistema de natureza intocada e que considerava que as áreas naturais só estariam preservadas se estivessem longe das atividades e do contato humano, com uma rara exceção às atividades que estavam relacionadas ao turismo ecológico, medidas educativas e pesquisas científicas. Foi a partir deste contexto e de intensos debates, conflitos e resoluções, e de invisibilidade, que esses grupos passaram a ser reconhecidos “por seu valor conservacionista e estimadas como guardiãs da floresta” (CALEGARE, 2014, p 1).

No ano de 2004 5, foi criada a Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, vinculadas na época ao Ministério do Meio Ambiente em articulação com o Ministério da Cultura, o que pode ser considerado como marco oficial de políticas públicas. No entanto, se analisarmos o contexto geral dos Movimentos Sociais da América Latina, este é um debate antigo que vem se reconfigurando ao longo dos anos através de declarações de direitos humanos e linguísticos. São exemplos deste contexto, a declaração de direitos internacionais, a declaração dos direitos humanos, a declaração dos direitos linguísticos, a declaração da diversidade cultural6, declaração de Tlaxcala7 (1982), a Convenção da proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural8 e os dispositivos da OIT -Organização Internacional do Trabalho. (THUM: 2017, p.163).

A incorporação dos PCTs (Povos e Comunidades Tradicionais) no campo ambiental foi influenciado pela agenda ambientalista internacional, pela discussão das áreas de proteção permanente -APPs e pelas intensas mobilizações dos grupos nas diversas regiões do Brasil, sendo que comunidades indígenas da região Amazônica, comunidades quilombolas no semiárido nordestino e grupos extrativistas nas áreas de Cerrado, são exemplos de lugares onde houveram intensos movimentos de luta pelo reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais.

Para Almeida (2004), após a constituição de 1988, ganhou força o direito a diferença, no reconhecimento dos direitos étnicos, uma vez que o direito produzido pelo Estado não era o único. As Constituições estaduais, como a do Maranhão, em 1990, Bahia em 1989 e do Paraná em 1997 são exemplos de reconhecimentos dos direitos étnicos9.

Portanto, a categoria populações tradicionais, através das mobilizações dos povos pelos seus territórios, foram adquirindo maior reconhecimento como “agentes sociais, que assim se autodefinem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição”(ALMEIDA, 2004, p 12).

A autodefinição promoveu a possibilidade do reconhecimento do estar e pertencer a um território comum. A compreensão de terras tradicionalmente ocupadas perpassava o significado do tradicional no campo das lutas passadas e presentes para a manutenção dos territórios, bem como, a luta pela retomada dos territórios: “... do que se define como “terras tradicionalmente ocupadas, em que o tradicional não se reduz ao histórico e incorpora identidades redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada” (ALMEIDA, 2004, p 29).

O território é assimilado enquanto o lugar de morada, da construção da territorialidade, compreendida através das práticas de atuação junto a natureza que são repassadas de geração em geração, o modo de viver dos povos em terras de uso comum. Na concepção de Little (2002), a territorialidade se define como “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território” (LITTLE, 2002, p. 3). O contato com o ambiente, o cuidado com a terra, constituem o saber- fazer, e compõem uma distinção dos povos. O estar no lugar, o pertencer a terra, é uma característica para além da vivência, mas de sustentabilidade.

No ano de 2007, o Governo Brasileiro reconheceu legalmente através do Decreto nº 6040/07 a existência de diversos e distintos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) na sociedade brasileira. O decreto foi resultado de intensos debates e da participação efetiva do Comitê de Povos e Comunidades Tradicionais, que resultou no entendimento:

Povos e Comunidades Tradicionais – grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (Decreto 6040/200710).

O Decreto 6040/07 foi um grande avanço nos debates e para o reconhecimento dos povos, sobretudo, por abarcar questões antes não mencionadas nas primeiras tentativas de definição de um conceito, como por exemplo, a vertente ambiental, as questões culturais, a autodefinição identitária e o uso dos territórios. Adentram nesta discussão aspectos antropológicos, como: os saberes tradicionais perpassados pela oralidade através das gerações, os significados e formas de fazer com/e através da natureza, a valorização da terra como lugar de vida e trabalho, a utilização do uso comum da terra e, portanto, enquanto território tradicionalmente ocupado.

Territórios Tradicionais – os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato as Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações. (Decreto 6040/2007).

Nesse contexto, o território é percebido e constituído para além do espaço social de produção e reprodução, como um elo de continuidade e de identidade dos grupos etnicamente diferenciados. No entanto, este elo não deve ser compreendido como algo fixo que denota a interação com o espaço, pois o território, assim como a tradição é dinâmico, e sofre interação interna e externa a todo o momento. Para Almeida (2004), os processos de luta pela terra e suas formas diferenciadas de uso do território, provocaram o aumento das disputas e dos conflitos nos processos de territorializações. “Com o processo de territorialização tem-se a construção de uma nova “fisionomia étnica”, através da autodefinição do recenseado, e de um redesenho da sociedade civil, pelo advento de centenas de novos movimentos sociais, através da autodefinição coletiva” (ALMEIDA,2004, p.5)

A luta dos povos sempre esteve presente, seja revestida de uma autonomia identitária, seja por uma autonomia territorial. Esse entendimento deixa explícito a importância da memória do processo histórico vivenciado por esses povos, sobretudo, quando esta memória se torna uma consciência histórica e impulsiona os sujeitos em movimento de luta por seus direitos.

O pertencimento a um lugar, perpassa as gerações, e o território tradicional vai além de um espaço territorial físico habitado. O território, se faz na terra do sagrado, na terra de colheita, na terra dos mortos, nos ritos, no saber-fazer, nas festas dos santos, nas festas de plantio e colheitas, nos ritos indígenas, nas diversas e plurais formas de viver na terra e com a terra, água, fogo e ar. Assim a terra é território comum, isso a torna “propriedade comum” na medida em que se consolida um modo específico de reprodução da vida baseado nos ciclos da natureza.

Nesse contexto, os modos de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais perpassam uma reorganização do território por meio do seu uso e apropriação. A produção conceitual do significado de Povos e Comunidades Tradicionais apresenta um marco legal, que pode ser encontrado no Decreto 6040/07. Contudo, a sua validade e aplicabilidade vive em um campo de intensas disputas nas políticas públicas como aponta Almeida (2004),

O chamado “tradicional”, antes de aparecer como referência histórica do passado, aparece como reivindicação contemporânea em forma de auto definição coletiva. Antes de serem interpretadas como “povos ou comunidades tradicionais” aparecem hoje envolvidos num processo de construção do próprio “tradicional” a partir de mobilizações e conflitos. Deste ponto de vista, além de ser do tempo presente, o “tradicional” é, portanto, social e politicamente construído a partir de uma classificação empírica fruto da existência localizada desses novos movimentos sociais. (ALMEIDA, 2004, p. 07).

O tradicional é intensamente dinâmico; e por ser dinâmico é forjado nas lutas pelas reivindicações de direitos violados e no contexto social e político de enfrentamento pelo direito de “existir” na concepção de sujeito de direitos, possuidor de um modo de vida construído nos conhecimentos entre gerações e na perspectiva de vida em grupo. Perspectivas que são plurais, nos contextos de vida dos povos.

O conceito de Comunidades Tradicionais se tornou debate e reflexão entre os pesquisadores. Para Brandão (2010) as singularidades ressaltadas pelo autor para a Comunidade Tradicional invocam as pesquisas desenvolvidas no Norte de Minas Gerais, e ressalta trabalhos de pesquisas de etnografia no contexto de uma região, onde os povos tradicionais estavam e estão “encurralados”. O autor chama atenção que o grupo social que constitui a comunidade tradicional encontra-se no campo da disputa entre a ameaça aos direitos de estar no lugar de vida e a mobilização presente na memória, no saber e na experiência de vida com os outros e com a natureza.

Comunidade tradicional constitui-se como um grupo social local que desenvolve :a) dinâmicas temporais de vinculação a um espaço físico que se torna território coletivo pela transformação da natureza por meio do trabalho de seus fundadores que nele se instalaram; b)saber peculiar, resultante das múltiplas formas de relações integradas à natureza, constituído por conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição ou pela interface com as dinâmicas da sociedade envolvente; c) uma relativa autonomia para a reprodução de seus membros e da coletividade como uma totalidade social articulada com o “mundo de fora”, ainda que quase invisíveis; d) o reconhecimento de si como uma comunidade presente herdeira de nomes, tradições, lugares socializados, direitos de posse e proveito de um território ancestral; e) a atualização pela memória da historicidade de lutas e de resistências no passado e no presente para permanecerem no território ancestral; f) a experiência da vida em um território cercado e/ou ameaçado; g) estratégias atuais de acesso a direitos, a mercados de bens menos periféricos e à conservação ambiental. (BRANDÃO, 2010, P. 37)

A produção do conceito de Povos e Comunidades Tradicionais nos mostra que foram momentos de intensas disputas entre o Estado e a Sociedade Civil. Dessa forma, podemos apreender que a luta dos Povos e Comunidades Tradicionais continuam, sobretudo, em busca da visibilidade de suas identidades étnicas e coletivas nos processos de territorialização. As disputas acontecem no âmbito das visões de mundo que colocam de um lado, os recursos naturais enquanto mercadorias, almejada pelos grandes empresários, latifundiários, fazendeiros e dos megaempreendimentos minerários e do outro lado, os povos tradicionais que vivem a natureza enquanto parte do seu existir.

Na dualidade presente do contexto socioambiental, os grupos etnicamente diferenciados são cada vez mais vítimas de violações de direitos, de violências simbólicas e físicas, da expulsão dos seus territórios.

O entendimento da comunidade tradicional, necessita da compreensão das relações estabelecidas com e fora do grupo, bem como, das mobilizações constituídas no interior da luta pelo território que é presente na atualização da memória, nas cosmografias e territorialidades, costumes, crenças, imaginários reproduzidos nas práticas sociais cada vez mais visibilizadas nos processos de territorializações.

Resistindo: estratégias de visibilidade

A emergência de uma identidade coletiva é construída pela relação entre o “nós” e o “outro”, dada à diferença que exclui aqueles que não estão vinculados às semelhanças de determinado grupo social. Castells (1999), interpreta a identidade como um processo, fonte de significados, ressaltando as identidades plurais. As identidades ocorrem no contexto das relações de poder. Para Hall (2011) identidade e diferença são parte do processo de produção de classificações na sociedade. O sujeito se torna fragmentado, vivendo uma crise de identidade. Autores distintos que discutem a construção das identidades na modernidade.

A partir desse contexto, e da importância que a identidade representa para os Povos e Comunidade Tradicionais, podemos compreender a luta pelo reconhecimento dos territórios de terras tradicionalmente ocupadas, luta permanente dos grupos etnicamente diferenciados. As identidades enquanto um projeto coletivo na viabilização da luta pelos direitos. Para Almeida (2004), o reconhecimento jurídico-formal dos povos não é efetivado porque impelem as transformações na estrutura agrária brasileira, baseada nos megaempreendimentos minerários, na pecuária extensiva, e na concentração de terras, portanto a invisibilidade dos povos são parte da estratégia destes setores da sociedade.

Nesse sentido, alguns termos que tentam abarcar um contexto geral não dão conta de absorver todas as manifestações culturais, como por exemplo, o termo “agricultor familiar”, “pequeno produtor”. Trata-se de uma forma de homogeneizar toda a diversidade existente. De acordo com Touraine (1998).

Os movimentos societais [...] são igualmente defensores da diversidade social e cultural e, portanto, também de equidade, que supõe o pluralismo da diferença, ao passo que o apelo à igualdade alimenta frequentemente uma política de homogeneização e de recusa das diferenças em nome do caráter universal da lei. (p. 127)

Partindo da reflexão realizada por Touraine (1998), podemos entender que o Estado vem traçando um caminho bem semelhante, onde ao invés de adotar uma política de identidades que atenda a diversidade dos grupos, opta por adotar uma política de homogeneização, ignorando as especificidades dos grupos sociais e tentando enquadrá-los a partir de uma mesma perspectiva social. Nesse sentido, é possível compreender que os Povos e Comunidades Tradicionais são tornados invisíveis pelo Estado, encaixando-os em políticas assistencialistas tirando o foco dos direitos que reivindicam.

Para Almeida (2004, p. 56), “as lacunas censitárias evidenciam, cada uma a seu modo, o quanto a preocupação com estas chamadas ‘comunidades tradicionais’ ainda está ausente das formulações estratégicas governamentais”. O desinteresse do Estado tem sido evidente, sobretudo, pelas escolhas de políticas públicas destinadas às comunidades tradicionais, pois sem a identificação destas comunidades tradicionais por meio de um evento censitário, não há necessidade e nem parâmetros para a elaboração de políticas públicas específicas. Sendo assim, perante o Estado estes povos se encontram invisibilizados, não havendo espaço para que tenham seus direitos respeitados e reconhecidos.

Os Povos e Comunidades Tradicionais precisam articular e criar mecanismos que potencializem a busca por seus direitos, a superação das relações de opressão e a elaboração de ações libertadoras. Neste caso específico dos Povos e Comunidades Tradicionais, “entre as estratégias de visibilidade visando à superação do silenciamento, temos os protocolos Comunitários, as auto declarações e a Nova Cartografia Social” bem como, os simpósios, congressos, colóquios e reuniões de Comissão estadual e nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. (THUM, 2017, 166).

Uma forma de estratégia de atuação e visibilidade tem sido os coletivos de povos tradicionais, que através da constituição de associações, articulações regionais, têm promovido o acompanhamento dos processos de territorialização junto aos órgãos de Estado competentes, bem como, na publicização das lutas junto a sociedade civil e aos movimentos sociais. “... os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana”. (ALMEIDA, 2004. p.22)

No Norte de Minas Gerais, os processos de ocupação da terra incidiram sobre a territorialização dos povos do lugar, contribuindo para a expropriação territorial e causando os conflitos ambientais, sociais, jurídicos junto aos povos que sempre viveram nos gerais (lembrando João Guimaraes Rosa (2005) - que reforça a importância dos povos do lugar para a compreensão dos Gerais mineiro). As políticas públicas propostas pelo Estado brasileiro baseadas no crescimento econômico de grupos privilegiados através de grandes empreendimentos de agroindústrias, pecuária, reflorestamento e irrigação sempre foram atrativos nas regiões como o Norte de Minas, consideradas como “vazios demográficos e econômicos”.

Na busca governamental do desenvolvimento do “sul maravilha”, no Norte de Minas Gerais aconteceu principalmente nas décadas de 60 e 70 do século XX, a saída de milhares de trabalhadores para a urbanização e industrialização de outras regiões do país para as áreas consideradas prioritárias; enquanto na região, os povos do lugar, os de dentro eram encurralados, e expropriados de suas casas, roças, plantações, terras e muitos foram expulsos para as periferias das grandes cidades.

O proclamado “desenvolvimento” foi acompanhado de ameaças, riscos, expulsões aos grupos etnicamente diferenciados, aos seus territórios e aos seus modos de vida. A categoria encurralado (trabalhada por Felisa Anaya (2012)) na perceptiva de Joao Pacheco de Oliveira na dimensão dos processos de territorialização (1998) denuncia processos de restrição territorial, expropriação dos territórios por grandes fazendeiros, por empresas rurais, por megaempreendimentos de reflorestamento, mineração, grandes projetos de irrigação (como o caso do Projeto Jaíba, no município de Jaíba, norte de MG, o maior da América Latina). E tendo o Estado como seu apoiador.

A constituição de articulações de povos tradicionais foi uma importante iniciativa para o enfrentamento das expulsões, disputas, violências sofridas pelos grupos, por líderes comunitários, pelas famílias nativas e por comunidades tradicionais na região. Citamos algumas articulações importantes na luta por direitos na região do Norte de Minas Gerais.

A articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais, formada em 2010, (nome do líder do povo indígena Xacriabá, morto por grileiro de terra em 1985), envolve sete povos tradicionais da região do Norte de Minas e Alto Vale do Jequitinhonha na luta por território e regularização fundiária. Participam desta articulação os indígenas Xakriabá e Tuxás, comunidades Quilombolas, Geraizeiras, Vazanteiras, Veredeiras, Catingueiras e Apanhadores de Flores.11

A Articulação dos Vazanteiros em Movimento, mobilização social de comunidades vazanteiras, quilombolas e ribeirinhas objetivadas nos “Vazanteiros em Movimento”, que trata da articulação política entre esses grupos sociais frente à perda de domínio territorial resultante do avanço do agronegócio e da expansão de Unidades de Conservação sobre os territórios tradicionais, na região do médio São Francisco mineiro12.

A Articulação do Movimento Geraizeiro, composta no início por 26 comunidades de vários municípios do Alto Rio Pardo de Minas atingidas pela monocultura do eucalipto. A Articulação do Movimento Geraizeiro intensificou as ações nos últimos anos com o avanço também da questão mineraria na região. Um novo ciclo de lutas está em curso. A luta contra a destruição dos gerais pelas grandes empresas mineradoras de ferro e ouro. O Norte de Minas tem sido anunciado como a nova fronteira mineral do estado. Fronteira da destruição mineral, contra a qual luta o movimento geraizeiro através das Conferências Geraizeiras, que se tornaram um lócus de reflexão e fortalecimento da ação política.13

A Associação Quilombola do Gorutuba, foi constituída em 2002 como instrumento estratégico de: esclarecimento e conscientização sobre o reconhecimento da identidade quilombola e direitos associados, acesso a políticas públicas e superação da vulnerabilidade socioambiental e promoção da soberania e segurança alimentar. Atualmente a Associação é composta por 33 comunidades, cujo território está inserido nos municípios de Pai Pedro,

Porteirinha, Jaíba, Janaúba, Monte Azul, Gameleiras e Catuti, localizadas no Norte de Minas Gerais.14

As articulações dos povos no Norte de Minas demonstram a luta sempre presente dos grupos nativos pelo território. Grupos que constituem um saber nativo, com experiências concretas de viver em grupo, em coletividade que se manifestam no manejo do ambiente, na afirmação identitária, na dinamicidade da luta pelo território. Os povos e suas articulações demonstram outras formas de existir, outras possibilidades de significação e significados para os lugares, para os encantados, para com as águas, as terras, o barro, arte, a natureza e o pertencimento ao lugar de vida.

A visibilidade através das articulações, são estratégias que tem sido reforçadas pelos grupos, através da afirmação que a luta pelas terras tradicionalmente ocupadas são cada vez mais violentas e mais organizadas entre os latifundiários e grandes empreendimentos e muitas vezes com o apoio do Estado. As articulações dos povos promovem a defesa do lugar, a defesa dos direitos e a visibilidade de formas de viver.

Considerações finais

As políticas públicas e os avanços sociais de uma maneira geral sempre foram fruto de intensas mobilizações dos movimentos sociais, organizações de terceiro setor e sociedade civil no Brasil, sobretudo, porque partem de uma relação de dentro para fora sem levar em consideração as especificidades para cada política pública, na maioria dos casos. O Decreto 6040/07 foi um ganho e marco legal na manutenção e acessibilidade aos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais. A história, têm oportunizado inúmeras possibilidades para novas articulações no enfrentamento da violação dos direitos de existir desses povos.

A organização dos Povos e Comunidades Tradicionais por meio das Comissões e Articulações tencionam as relações com o Estado e abrem caminho para a construção de instrumentos e de participação na criação das políticas públicas direcionadas as suas gentes.

Sabe-se que a invisibilidade social no Brasil faz parte do processo de formação e vigora até os dias atuais; o governo cria mecanismos homogeneizadores para toda e qualquer diversidade existente, contribuindo para o processo de invisibilidade e mesmo de genocídio dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Dessa forma, os instrumentos de visibilidade, contribuem para o fortalecimento dos modos de vida, das dinâmicas territoriais, dos saberes tradicionais, do saber fazer naquele espaço, possibilitando a busca pelo direito, da afirmação identitárias, e de se re-existir em tempos de tanto enfrentamentos, dilemas e violências. A luta nunca foi apenas um capítulo da história da sociedade brasileira, mas mecanismos de transformação e de humanização.

Referências

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CAPÍTULO 2

URBANIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO: CONTRIBUIÇÕES DA AGRICULTURA URBANA

Cristh Ellen Ferreira Pinheiro
Hélder dos Anjos Augusto
Cledinado Aparecido Dias
Giliarde Souza Brito

Introdução

O estudo do espaço urbano é dotado de importância não apenas no cenário acadêmico, mas de pleito geral, como no contexto político-administrativo, por exemplo. Pensar o espaço urbano e as múltiplas faces que o tem em escopo implica na possibilidade de estabelecer equacionamentos para as diversas problemáticas que o tangencia.

Seguindo a lógica acima refletida, as questões e alternativas atinentes ao desenvolvimento urbano se endossam e assumem um contexto, nem sempre uníssono, que explicitam a complexidade da temática, contemplando as desigualdades econômicas e sociais observadas no âmbito urbano.

Nos enquadramentos da globalização a cidade é palco das rugosidades estabelecidas pela dinâmica do aumento acelerado dos fluxos globais de capital, mercadorias, serviços, pessoas e informações. Igualmente, recebe, produz e reproduz as desigualdades socioeconômicas instauradas pelo centrismo universal da epopeia do capital, por assim dizer.

Não obstante, a agricultura urbana (AU) se desponta como forma de repensar o modo de produção das cidades e da apropriação do solo urbano, não apenas na lógica/ilógica da acumulação do capital, mas como espaço coletivamente produzido e alternativamente à centralidade do modo burguês que, infelizmente, ainda se reverbera, nas cidades brasileiras.

A agricultura urbana traz em si a relevância de romper com a rígida dicotomia campo-cidade e instaura a possibilidade de elevar os estudos urbanos a um nível de abstração que se sobrepuja a alienação da produção capitalista.

Sob tais perspectivas, este capítulo objetivou analisar a agricultura urbana como uma ferramenta de desenvolvimento. Não se escusou o escopo da agricultura urbana dentro da sociabilidade do planejamento e da gestão do espaço geográfico urbano. Para alcance do objetivo proposto adotou-se como procedimento metodológico a revisão bibliográfica.

Portanto, diante da abordagem contemplada na discussão teórica realizada neste, acredita-se que este texto, que se assenta numa perspectiva interdisciplinar, seja importante por alcançar uma gama diversificada de sujeitos interessados no estudo do espaço urbano e, mais especificamente, da agricultura urbana.

Urbanização e desenvolvimento

As sociedades vêm passando por um conjunto de mudanças econômicas, culturais e ambientais que, de certa forma, estimula a fazer releitura dos conceitos e novos paradigmas, no caso específico da urbanização. Estas transformações, fecundadas a partir da revolução industrial, trouxeram na relação simbiótica entro urbano e oural. Novas formas comportamentais nas dimensões culturais, ambientais, sociais e demográficas. É neste contexto que as territorialidades urbanas se entrelaçam progressivamente com o mundo rural.

A priori, faz-se necessário esclarecer que Lefebvre (1999) parte da hipótese da urbanização da sociedade para explicar a transição da mesma. Para o autor, a sociedade urbana resulta do que ele chama de urbanização completa. A discussão da Revolução Urbana explicitada por Lefebvre (1999) conclui que a urbanização consiste em um conjunto de transformações que ocorrem na sociedade, por meio do processo de industrialização, no qual a cidade passa a ter a função de suprir a demanda de força de trabalho da indústria. Já o seu discípulo Castells (2009), aponta que urbanização corresponde a um processo típico de ocupação do espaço por uma determinada população, a partir de uma concentração intensa e, por conseguinte uma alta densidade populacional.

Na outra visão sobre a urbanização, Benko (1999), aponta que o processo em si está calcado em duas perspectivas que se complementam, a saber: a transnacionalização dos espaços econômicos e a regionalização dos espaços sociais. A primeira é influenciada por agentes externos e a segunda corresponde a uma força interna que reage no sentido contrário.

Em um eixo temporal, Lefebvre (1999) explica a formação das cidades a partir do ponto zero (Aldeias), passando pela cidade política, pela cidade mercantil, pela cidade industrial, até o ponto 100 que o autor considera como a zona crítica (100% do estado de urbanização). Para Castriota (2016) zona crítica, exposta pelo autor como 100% de urbanização numa visão virtual, consiste em uma realidade atual planetária.

As afirmações expostas por Castriota (2016) são contempladas a partir das teorizações clássicas do urbano e da urbanização extensiva, contemplando os estudos de Lefebvre e Monte- Mór. Nesse sentido, o autor reafirma sobre os fenômenos de implosão-explosão, bem como da participação arbitrária do capitalismo nestes processos.

Assim, para Monte-Mór (2006), a cidade passou por um processo duplo de implosão- explosão, onde sua centralidade implodiu sobre si e a periferia explodiu sobre o entorno. A explosão sobre o entorno exposta por Monte-Mór (2006), e também por Lefebvre (1999), incide na formação dos tecidos urbanos, os quais são compostos pelas manifestações de predomínio da cidade no campo.

Sobre a explosão, Catriota (2017) a relaciona com a extensão do tecido urbano e modernização estrutural, mas o autor completa (re) leitura do fenômeno apresentando a ele também o significado de cidadania extensiva.

A partir disso, Monte-Mór (2006) afirma que:

[...] a cidade significou condição fundamental para o desenvolvimento da indústria, concentrando a população consumidora, os trabalhadores e as condições gerais de produção para instalação das empresas fabris presentes (ou criadas) apenas em algumas cidades, como até recentemente no Brasil (MONTE-MÓR, 2006, p. 5).

Segundo o autor supracitado, já se pode falar em uma sociedade virtualmente urbana no Brasil, a qual é marcada pela transformação da economia agroexportadora voltada para substituição de importações para o mercado interno, redefinindo a cidade industrial. Essa transformação, contou com um papel importante do Estado na regulação das relações entre capital e trabalho, na garantia dos meios de produção para a indústria, ou seja, na perspectiva de contribuição para a sinergia capitalista em prol da acumulação de riqueza.

Na perspectiva de Monte-Mór (2006) e Lefebvre (1999) dos autores, a cidade pode revelar a referida sinergia de dominação a partir da estruturação dos processos produtivos, ou seja, as forças de atração implicam diretamente nas altas taxas de crescimento geométricas da população e por consequência o aumento na relação população sobre o espaço.

Monte-Mór (2006) ainda discute sobre as “novas fronteiras urbanas” no Brasil e aponta para uma urbanização extensiva em quase todo território brasileiro, além disso, critica a condição de imposição da lógica urbano-industrial imposta ao urbano social contemporâneo, integrando espaços rurais com a lógica de produção capitalista pautada pelo consumo. Desta maneira, a discussão de Lefebvre (1999) e de Monte-Mór (2006) enfatiza o domínio do capitalismo sobre sociedade e, sobretudo, na formação da sociedade urbana.

A propósito, para Furtado (1978) a formação das sociedades capitalistas tem como fase decisiva a Revolução Burguesa, a qual levaria a um “[...] conjunto de transformações sociais - condizentes à autêntica mutação que produziu a sociedade industrial capitalista” (FURTADO, 1978, p.39).

O debate que cerceia o tema versa a difusão da civilização industrial, a qual segundo Furtado (1978), tende a tecer laços de interdependência, verificados nos critérios de racionalidade instrumental, que produziriam na Europa um estilo de civilização marcada pela industrialização (tecnicismo de todas as atividades produtivas), a urbanização (estruturação espacial da população para satisfazer as exigências do mercado de trabalho) e a secularização (prevalência da razão na legitimação dos sistemas de poder). Vê-se, desta forma, a íntima relação entre urbanização, industrialização e secularização acima mencionadas.

A difusão desse modelo de civilização leva às estruturas sociais a ideia de canalização do processo de acumulação e das “[...] formas de comportamento que tendem a acentuar as desigualdades de níveis de patrimônio e de renda, com reflexos na estrutura de dominação social” (FURTADO, 1978, p. 51). Nesse sentido, Furtado (1978) reverbera a fragilidade da perspectiva de que todo e qualquer crescimento econômico conduziria ao desenvolvimento, sendo afirmação do autor que o processo de evolução da Civilização Industrial (economicista), como no caso europeu, não pode ser confundido com desenvolvimento.

Para Furtado (1978), a ideia de desenvolvimento comporta ambiguidades e essas são ainda maiores quando consideradas no quadro da difusão da civilização industrial. Ao tema desenvolvimento, Furtado (1992) alterca sobre o subdesenvolvimento e tangencia a relação entre a modernização e o desenvolvimento, bem como as implicações destes na economia e na sociedade o progresso técnico (desenvolvimento econômico), o qual está diretamente ligado à produtividade (redução dos custos de produção) que, em seu curso histórico, desencadeou a desigualdade social (distribuição de renda desigual/redução dos salários reais/baixo poder de compra) e as pressões inflacionárias como forma de controle da participação dos salários no produto social.

Nesse sentido, Furtado (1992) aponta a modernização como a desarticulação entre a produtividade setorial e o consumo específico, tendo como consequência o subdesenvolvimento. Contudo, conforme expõe o autor, o crescimento da produtividade não está diretamente ligado ao “verdadeiro” desenvolvimento. Ademais, o autor esclarece que a homogeneização social é uma condição necessária, mas não o suficiente, para a superação do subdesenvolvimento e, assim, o alcance do desenvolvimento.

Insta salientar, conforme Santos e Silveira (2002) que a metrópole constitui-se o lugar em que o moderno adapta-se sem atentar para o preexistente. Afirmam que o custo do alheamento na implantação da modernidade significa peso sobre outros aspectos da vida local, haja vista custos públicos, privados, federais, estaduais e municipais. Para tais autores, embora apenas subáreas privilegiadas gozem dos benefícios advindos da modernização, toda a cidade sofre com as consequências da lógica díspar da modernidade, posto que o espaço citadino é um organismo.

Em se tratando de subdesenvolvimento, Sposito (1997) assevera que há relação entre o crescimento das cidades dos países subdesenvolvidos com a industrialização, embora não haja correspondência em seus ritmos, e que o crescimento das cidades não decorra exclusivamente da industrialização. Neste contexto, assinala que

de fato, os países ditos subdesenvolvidos passam, ainda que em níveis diferentes, por processos de industrialização, que dão sustentação ao próprio desenvolvimento do capitalismo monopolista. O que não se pode afirmar é que esta industrialização responda pelos ritmos acentuados de urbanização nos países “subdesenvolvidos”, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. A nossa urbanização resulta das formas tomadas pelo desenvolvimento do capitalismo, que se traduz na articulação das relações econômicas, sociais e políticas existentes entre os países “desenvolvidos” e os “subdesenvolvidos”. Poderíamos dizer, em outras palavras, que a nossa urbanização resulta do processo de transnacionalização da indústria ocidental (a do “centro”), abarcando os espaços periféricos e desorganizando e/ou apropriando das formas de produção tradicionais destes países (SPOSITO, 1997, p. 10).

Assim, como expõe Harvey (2005), as revoluções em tecnologia, relações espaciais, relações sociais, hábitos de consumo, entre outras características capitalistas, apesar de sua omissão, podem ser compreendidas por meios de estudos dos processos urbanos. Contudo, o autor considera importante a investigação do papel que o processo urbano desempenha na distribuição geográfica da atividade humana e na dinâmica político-econômica do desenvolvimento geográfico desigual recente.

Ao discutir o tema desenvolvimento, Brandão (2008) defende a importância de compreender a lógica capitalista, a qual o autor coloca como um processo padronizado pautado na expansão de base material. Na mesma linha, Ortega (2008) critica a visão positivista da relação de progresso com desenvolvimento imposta nessa lógica.

Assim, o conceito de desenvolvimento exposto por Brandão (2008) relaciona-se com o envolvimento de ações que rompem a ideia ultrapassada (desenvolvimento padronizado e por etapas) e exige ênfase em seus processos e interações entre as decisões nas várias camadas sociais, onde o processo ocorra simultaneamente nas escalas espaciais. Nesse sentido, para o autor, não é possível generalizar o processo de desenvolvimento, como defende as vertentes capitalistas.

Em relação ao tema, Furtado (1978) trata a fragilidade da ideia de que todo e qualquer crescimento econômico conduz ao desenvolvimento, visto que o processo de evolução da Civilização Industrial (economicista) não pode ser confundido com desenvolvimento. Para o autor, a ideia de desenvolvimento comporta ambiguidades e essas são ainda maiores quando consideradas no quadro da difusão da civilização industrial.

O crescimento econômico, como aborda Alves et al. (2011), consiste no aumento contínuo do Produto Interno Bruto (PIB) global e per capita e, diante dessa interpretação, os autores ainda asseguram a ideia de que o crescimento econômico não beneficia toda a população e, por esse motivo, nem sempre tem o efeito de desenvolvimento.

Contudo, ao relacionar os estudos acerca da relação do processo de urbanização com as críticas ao modelo convencional de desenvolvimento e, sobretudo, correlacioná-los com as abordagens atuais acerca das políticas públicas e os modelos gerenciais utilizados pelo poder público, pode-se perceber que não há uma visão holística necessária da realidade da sociedade e suas nítidas multifaces. Para tanto, é necessária uma abordagem completa das especificidades locais, territoriais e regionais para os estudos e propostas em prol de um desenvolvimento real.

Urbano, rural e cidade

A temática urbano-rural tem sido analisada por muitos e destacados geógrafos, sociólogos, economistas e outros estudiosos, sobretudo no que diz respeito ao Brasil, onde se destacam: Ricardo Abramovay, Georges Bertrand, Mauro Eduardo Del Grossi, José Graziano da Silva, José Eli da Veiga, José de Souza Martins, Sergio Schneider e Roni Blume, – cujos trabalhos, tem sido referências para diversas pesquisas na área. Não se trata de resgate as discussões empreendidas pelos autores, mas sim contextualizar alguns elementos julgados como pertinentes para o avanço da abordagem sobre a agricultura urbana.

As relações urbano – rural, durante um longo período, eram julgadas por uma natureza funcional, onde o rural era vista como espaço de produção meramente agrícola e fornecedora de alimentos e matéria prima para as cidades. Já as cidades, consideradas como lócus do poder e espaços privilegiados de mercado, onde aconteciam as trocas de produtos da agricultura e onde produtos eram processados/manufaturados e comercializados. No estudo de Lefebvre (2006), “O Direito à Cidade”, ressalta a separação entre o campo e a cidade. Para o autor, esta separação se dava a partir das primeiras divisões de trabalho, onde na cidade se processavam as funções de organização política, militar e do conhecimento e no campo apenas as atividades agrícolas, ou seja, as atividades campesinas,

As abordagens Monte-Mór (2006) e Lefebvre (1999) entre outros autores citados na discussão anterior contemplam o estudo sobre a urbanização, considerando o seu processo e fenômenos. A relação deste processo com a imposição do capitalismo sobre a sociedade foi apreciado no tópico anterior, compreendendo a relação (ou não) entre a urbanização e o desenvolvimento. No entanto, verificou-se a necessidade de abordar, para além da urbanização, o que é discutido sobre o urbano, o rural, a cidade e a relação e interposição entre estes.

Ao contemplar a relação crítica aos conceitos de urbano e cidade, Castriota (2016) objurga a falta de critério empírico dos estudos acerca das taxas de urbanização da população, ou seja, o autor chama atenção para a necessidade de considerar as especificidades de cada “espaço urbano”, sobretudo, afirma que o urbano e a urbanização são um processo e não uma forma ou tipo de assentamento ou unidade delimitada.

De forma díspar ao urbano, a cidade compreende um espaço delimitado, por meio de legislação municipal e, a partir desta delimitação, as pesquisas oficiais acerca das taxas de urbanização criticadas por Castriota (2016) são realizadas. Assim, a compreensão que se tem do autor é de que o urbano se dá além do espaço delimitado como cidade, onde se apresenta como a imposição capitalista e não o espaço em si.

Considerando a imposição capitalista expressa nas afirmações dos autores supracitados, percebe-se a existência daquilo que Rua (2006) chama de “novo rural”. Segundo o autor houve um processo de recriação do rural, onde se observa novas territorialidades que é resultado das interações urbano-rural (tecnologia em áreas rurais, por exemplo). As novas formas de produção, numa lógica capitalista, conforme exposto pelo autor também são características do novo rural.

Nesse sentido, o autor afirma que há uma semelhança entre “urbanidades no rural” e as “novas ruralidades”. A ideia de “urbanidades no rural” proposta pelo autor consiste em compreender que as especificidades do rural devem ser preservadas e esta pode ajudar na análise de múltiplas territorialidades criadas pelo caráter híbrido que o espaço adquire. O caráter híbrido, segundo do autor, compreende a capacidade de modificar sem extinguir, sendo esta habilidade a maior característica do rural.

Ponderando as especificidades do urbano e do rural e suas interrelações, Castriota (2016) chama a atenção para o citadismo metodológico, ou seja, os estudos urbanos realizados no campo da padronização do rural e do urbano, sem considerar as especificidades. No entanto, sabe-se que programas e políticas públicas são elaborados com base em estatísticas oficiais, a partir de pesquisas nessa perspectiva criticada por Castriota (2016). Não obstante, é necessário abordar aqui os critérios de classificação acerca do urbano e do rural contemplados pelos órgãos públicos nas estatísticas oficiais.

A pesquisa referente à urbanização realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017) considera a situação de domicílio da população, sendo considerada a residência do pesquisado, se localiza em área urbana ou rural, conforme divisão administrativa.

O Quadro 1 mostra as definições utilizadas pelo IBGE nas pesquisas oficiais atuais.

Quadro 1 - Classificação de áreas utilizadas em estatísticas oficiais

Classificação da área

Conceito

Área Urbana

Área interna ao perímetro urbano de uma cidade ou vila, definida por lei municipal.

Área Rural

Área de um município externa ao perímetro urbano.

Área Urbana Isolada

Área definida per lei municipal e separada da sede municipal ou distrital por área rural ou por um outro limite legal.

Áreas urbanizadas de cidade ou vila

Áreas legalmente definidas como urbanas e caracterizadas por construções, arruamentos e intensa ocupação humana; áreas afetadas por transformações decorrentes do desenvolvimento urbano e aquelas reservadas à expansão urbana.

Áreas não-urbanizadas de cidade ou vila

Áreas legalmente definidas como urbanas, mas caracterizadas por

ocupação predominantemente de caráter rural.

Áreas urbanas isolada

Áreas definidas por lei municipal e separadas da sede municipal ou distrital por área rural ou por outro limite legal.

Fonte: IBGE, 2017.

Considerando os conceitos abordados no Quadro 1 percebe-se que as estatísticas oficiais acerca da urbanização são elaboradas a partir de delimitações expressas em legislação, considerando uma divisão administrativa e excluindo os aspectos culturais e sociais.

No entanto, em 2009, foi elaborado um projeto de lei (PLS 316/09), que inclui critérios de classificação para os municípios e sugere uma revisão dos critérios utilizados pelas estatísticas oficiais acerca dos territórios e da população:

§ ?° Os municípios serão classificados de acordo com sua população, densidade demográfica e composição do produto interno bruto municipal em: I – município rural se tiver população inferior a cinquenta mil habitantes, valor adicionado da agropecuária superior a uma terça parte do produto interno bruto municipal e densidade demográfica inferior a oitenta habitantes por quilômetro quadrado; II – município relativamente rural se tiver população inferior a cinquenta mil habitantes, valor adicionado da agropecuária entre uma terça parte e quinze centésimos do produto interno bruto municipal e densidade demográfica inferior a oitenta habitantes por quilômetro quadrado (...) (BRASIL, 2009)15.

O projeto de lei supracitado propõe alteração dos critérios considerados pelas estatísticas oficiais revisando questões ligadas à densidade demográfica, principal setor produtivo do município e tamanho da população.

Assim, diante das afirmações, entende-se como urbano o modo de vida submisso ao capitalismo; a cidade como um perímetro delimitado em lei especifica, o qual acredita-se que passa por subjulgamentos de caráter tendencioso para benefícios próprios do poder público; e o rural transcende os demais diante de sua culturalidade, especificidade e potencial híbrido, como exposto por Rua (2006).

Em suma, as relações urbano-rural têm apresentado evolução de configurações determinadas por novos elementos (como: estruturas sociais, meio ambiente e instituições públicas e privadas) e diversificados ao longo do tempo. Esta evolução está atrelada às transformações sociais e econômicas das comunidades rurais e dos núcleos urbanos, conforme aponta Favareto (2006). Sugere-se com isso, que a expansão e aprimoramento do urbano influencia, em grande medida, no rural contemporâneo, principalmente na economia e na sua organização espacial.

Contudo, diante da discussão contemplada neste tópico, o tema proposto neste capítulo expõe a interrelação no sentido contrário, mas que não o invalida, do abordado por Rua (2006), pois a Agricultura Urbana pode ser entendida como uma “ruralidade no urbano”, no entanto, é importante ressaltar que, apesar de ser uma prática que ficou evidenciada na contemporaneidade, não é novidade nos espaços delimitados da cidade.

Gestão e planejamento urbano

Conforme exposto ao final do item anterior, a gestão e o planejamento urbano constituem elementos basilares na discussão sobre desenvolvimento. Igualmente, ao tratar o planejamento urbano, Maricato (2000) aborda o contexto histórico urbano no Brasil e observa o surgimento dos planos diretores, em meados de 1900, por meio das propostas de embelezamento e melhoramento das cidades. Além disso, analisa o desenvolvimento citadino ao longo do tempo e os “planos-discursos” marcados pelas direções tomadas pelas obras e pelos investimentos favorecendo a elite brasileira e, a partir de 1988, com a Constituição Brasileira, a contribuição com a obrigatoriedade da execução dos Planos Diretores. Os estudos da autora também identificam os problemas que a sociedade brasileira enfrenta em relação à infraestrutura urbana e destaca proposições para o equacionamento dos problemas por ela enfrentado.

Para Maricato (2000), ao se comparar os problemas dos planos diretores antigos com os da atualidade, percebe-se que o planejamento urbano é relevante no que tange ao combate às desigualdades, no entanto, é imprescindível se pensar no “como fazer”. Logo, Maricato (2000) propõe a utilização do planejamento com o objetivo de diminuir a desigualdade e ampliar a cidadania, sendo este pautado na participação dos excluídos e o reconhecimento dos conflitos da sociedade. Propõe também a criação de um Plano de Ação e do Orçamento Participativo, ferramentas que podem contribuir para uma reversão no modo que as cidades são geridas no Brasil.

Em acepção análoga, o planejamento urbano proposto por Duarte (2007) o considera um processo com resultados parciais, que ele denomina de planos e, sendo assim, os planos contemplam as partes e o planejamento as etapas, como sumariza o Quadro 2.

Quadro 2 - Etapas do Planejamento Urbano

Etapas

Considerações do autor

Diagnóstico

Análise da realidade existente. Compreende também o inventário, o qual consiste na coleta e organização de dados sobre a realidade pesquisada, no caso do planejamento urbano, a cidade.

Prognóstico

Estudo realizado a partir dos dados do diagnóstico com o objetivo de inferir sobre a realidade futura, ou seja, prever com qual realidade irá trabalhar.

Propostas

As propostas são o resultado do planejamento, tendo os vetores previsíveis (resultado do prognóstico) e os vetores possíveis e/ou desejáveis (perspectivas e visões).

Gestão Urbana

Conjunto de instrumentos, atividades, tarefas e funções que visam assegurar o bom funcionamento de uma cidade.

Fonte: Adaptado de Duarte (2007).

Em face disso, o planejamento urbano é um campo amplo que, de acordo com Duarte (2007), abrange aspectos da Sociologia, da Economia, da Geografia, da Engenharia, do Direito e da Administração, onde a última é muito valorizada por contemplar instrumentos novos para a gestão das cidades. Destarte, é abordada por Duarte (2007) a importância da gestão para o planejamento urbano com suas contribuições provenientes da administração contemplando aspectos da “boa governança” e da criação de uma administração pública mais focada na melhoria de qualidade de vida das pessoas.

Contudo, ao se tratar de melhoria da qualidade de vida nas cidades, há de se destacar as experiências de alternativas de desenvolvimento como vetores importantes para suprir gargalos da sociedade, os quais Duarte (2007) aponta como dimensões a serem tratadas no planejamento urbano, a exemplo da econômica, ambiental, infraestrutural, gerencial e territorial, cada um com aspectos internos inerentes.

Em sentido complementar concorda-se aqui com Carlos (2008) quando assevera que a cidade é uma construção humana, produto social, consubstanciação do trabalho e da materialidade das ocupações. Para ela, o “O modo de ocupação de determinado lugar da cidade se dá a partir da necessidade de realização de determinada ação, seja de produzir, consumir, habitar ou viver.” (CARLOS, 2008, p. 45). Sendo assim, a gestão e o planejamento urbano devem assegurar as diferentes formas de uso e ocupação do solo, a dimensão espacial imerso no cotidiano dos citadinos, a produção do lugar destes e as particularidades implícitas e explícitas na constituição do modo de vida da cidade. (CARLOS, 2008).

Todavia, conforme Sposito (1997), o poder público, muitas das vezes, escolhe para realizar os investimentos urbanos, como bens e serviços coletivos, justamente os lugares mais abastados e com população detentora de maior poder aquisitivo ou que ainda poderão ser vendidos e ocupados por essa população futuramente. A esse respeito a autora supracitada afirma que os lugares mais afastados, sobretudo os mais densamente povoados, acabam no ostracismo e abandono. Por isso, questiona: “Será que a cidade cresce desordenadamente, porque ela não está sob planejamento? Será que o Estado (subjugado pelas classes dominantes) é neutro ao planejar seus investimentos?”. (SPOSITO, 1997, p. 75). Entretanto, Sposito (1997) ratifica que o Estado manifesta-se tendencioso na escolha dos lugares para investimentos e posiciona-se em favor das contradições sociais impostas pelo desenvolvimento capitalista, que estão materializadas na estrutura e paisagem urbana.

Igual modo, Santos (2008) esclarece que o Estado expressa os ditames das classes dominantes, ávidas por espaços particulares para reprodução social e crentes da inviabilidade de um planejamento igualitário e participativo. Neste contexto, as leis de zoneamento, por exemplo, evidenciam as habitações dotadas de segregação e representantes de uma dinâmica urbana profundamente marcada pela disparidade socioeconômica.

Tecidas essas breves considerações sobre a gestão e planejamento urbano, segue item a respeito da agricultura urbana enquanto alternativa de desenvolvimento.

Agricultura urbana

No que tange ao conceito de Agricultura urbana (AU), observa-se uma diversidade de definições, mais especificamente voltadas para o tempo de dedicação à produção, às especificidades da produção e ao tamanho e local do espaço utilizado. Conforme aponta Boukharaeva et al. (2005), o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) assinala que a produção familiar em tempo parcial corresponde à definição da AU que ocorre no Brasil. Desta maneira, “É uma microagricultura intensiva, cujos produtos são destinados à demanda local, na qual predominam os ciclos curtos e os pequenos circuitos de produção (BOUKHARAEVA et al., 2005, p.416-417)”.

De acordo com a Lei 15.973 de 12/01/2006, que dispõe sobre a política estadual de apoio à AU em Minas Gerais, entende-se como AU “o conjunto de atividades de cultivo de hortaliças, plantas medicinais, espécies frutíferas e flores, bem como a criação de animais de pequeno porte, piscicultura e a produção artesanal de alimentos e bebidas para o consumo humano”.

Assinale-se que as definições mais utilizadas da AU, para Mougeout (2005), se baseiam em determinantes como: a) as atividades econômicas, considerando as fases produtivas (produção, processamento e comercialização) e a inter-relação destas no tempo; b) a localização, sendo o elemento mais considerado nas definições, observadas a agricultura urbana e a periurbana; c) os tipos de áreas, que considera a propriedade, o desenvolvimento da área (construída ou baldia), a modalidade do uso ou da posse e relaciona também a categoria oficial do uso do solo; d) o sistema e a escala de produção, que para o autor todos os sistemas são aceitos; e) os tipos de produtos, com ênfase na produção de alimentos e; f) a destinação dos produtos, em que o autor observa o fato de produção proveniente da AU se destinar tanto para o consumo quanto para a comercialização.

Mougeout (2005) ainda salienta a necessidade de se considerar a interação da AU com o ecossistema urbano. Neste contexto, considera que a definição de agricultura urbana não está ligada apenas à localização e sim à conexão com o organismo urbano. Assim, assegura que “A agricultura urbana interage com diversas facetas do desenvolvimento urbano, também é fato que ela pode nos ajudar a diversificar e fortalecer nossas estratégias de gerenciamento urbano” (MOUGEOUT, 2005, p. 7).

Por sua vez, Aquino e Assis (2007) apud Brito (2011) consideram a AU uma estratégia frente aos gargalos enfrentados nas áreas urbanas (produção de lixo, inchaço populacional e inexistência de condições econômicas das populações pobres para a compra de alimentos). Isto porque “Na prática, a agricultura urbana está desenvolvendo sua capacidade para ajudar a resolver ou enfrentar diversos desafios do desenvolvimento” (MOUGEOUT, 2005, p. 2).

Boukharaeva et al. (2005) e Brito (2011) asseveram a migração rural-urbano como um dos motivos do desenvolvimento de práticas de agricultura urbana e elencam as principais funções da AU, ponderando as funções alimentares, voltadas para segurança alimentar; as funções de bem-estar, por contemplar o contato com a natureza e, consequentemente, traz benefícios para a saúde física e mental que, conforme os autores, relaciona-se com a construção de identidade; e a função educadora e cultural, por potencializar a transmissão dos saberes e valores culturais. Para Brito (2011), a função cultural consiste na reprodução das práticas advindas do campo desenvolvidas na cidade.

Assim, é notado que as dimensões do conceito de desenvolvimento propostas por Leff (2009) relacionam-se diretamente com as funções observadas a respeito da AU, sendo a econômica, a otimização dos processos produtivos; a social, como a qualidade de vida; a ambiental, considerando principalmente aspectos de conservação e produção consciente; a institucional com a maior participação popular nas decisões; e a cultural com a valorização dos costumes populares e a promoção da cooperação. Nesse sentido, salienta-se a visão da AU como uma alternativa de desenvolvimento.

Conclusão

Ponderadas as discussões apresentadas, é possível concluir que a Agricultura Urbana consiste em uma ferramenta de desenvolvimento, por ser capaz de contribui para o fortalecimento da sociedade frente ao processo de acumulação capitalista, onde sua vertente produtiva relaciona-se diretamente com o papel do desenvolvimento proposto pelos autores estudados.

A função da AU como alternativa de desenvolvimento consiste no fato de que a mesma apresenta a competência desenvolvimentista sem, na maioria das vezes, utilizar-se dos aspectos voltados para a exploração capitalista, porém está inserida no mercado.

Esta função desenvolvimentista é explicada pela capacidade da AU de gerar emprego e renda na cidade (função econômica); permitir maior permeabilidade do solo (função ambiental); proporcionar o bem-estar à população seja para o agricultor urbano seja para o consumidor devido à sua vertente agroecológica (função de saúde e bem-estar); permitir a valorização do agricultor e proporcionar a reprodução de um modo de vida originariamente rural na cidade (função cultural); levar até as pessoas a educação ambiental (função educacional); e comportar modelos organizacionais, em sua maioria, voltados para a vertente cooperativista, com um caráter enveredado para a produção coletiva e uma inserção consciente no mercado (função empreendedora).

Além da relação direta com o desenvolvimento e, não menos importante, o estudo permitiu inferir também que a AU permeia as extensões tratadas no planejamento e na gestão urbana, como nas vertentes econômica, ambiental, infra-estrutural, gerencial e territorial.

Assim, ressalta-se a importância da inserção da AU na “agenda” da administração pública, pois consiste em um modo de produção eficiente para o desenvolvimento local e regional e que carece de atenção em políticas públicas da maioria das cidades brasileiras.

Nesse sentido, este tema consiste em uma discussão relevante no que tange a proposições no âmbito da gestão pública, por desta forma abranger uma maior parcela da sociedade; e também no âmbito da gestão privada, por dispor de um negócio rentável devido suas especificidades produtivas.

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CAPÍTULO 3

HOMENS E DEUSES: COMIDAS E OFERENDAS PARA AS DIVINDADES

Fábio da Silva Gonçalves
Daniel Coelho de Oliveira

Introdução

As religiões se relacionam intimamente com a alimentação, já que esta desempenha importante papel no dia a dia dos adeptos, como, por exemplo, delimitando atos regulatórios, permissões, restrições ou jejuns. Logo, é possível suscitar reflexões a respeito da religião enquanto categoria de estudo, a relação desta com comidas, bem como analisar os processos religiosos que envolvem comida nas religiões afro-ameríndio-euro-brasileiras16 e as influências desses processos nos conjuntos teológicos, doutrinários e ritualísticos precípuos das religiões Candomblé, Umbanda e Quimbanda em Bocaiuva, município localizado no Norte de Minas Gerais.

Nas religiões supracitadas são oferecidas comidas às divindades que compõem o panteão instituidor delas. A comida entregue aos seres espirituais, em alguns casos, utiliza receitas e manejos não convencionais. O frango, alimento rotineiro em muitas cozinhas, pode ser utilizado nas oferendas cozido/frito, mas pode ser ofertado apenas sacrificado/sacralizado e arriado (entregue) contendo vísceras e penas, ou ainda acrescido de ervas e materiais decorativos/magísticos em ambos os casos.

Além do caso das afro-ameríndio-euro-brasileiras, outras religiões também singularizam a comida no contexto teológico-doutrinário-ritualístico que as particularizam. A comida contribui para a formação de muitas identidades religiosas, sendo estas adjacentes ao sentido hierofânico-alimentar consubstanciado por elas e transubstanciadas em práxis alimentares específicas.

Ademais, deve-se salientar que este capítulo está estruturado, além desta Introdução e das Considerações Finais, em quatro partes: no primeiro momento apresenta-se os “materiais e métodos” utilizados na pesquisa. Na segunda parte aponta-se as generalidades sobre a comida dos homens e dos espíritos no contexto do Candomblé, da Umbanda e da Quimbanda. Já na terceira, analisa-se as comidas de Orixás no Ilê “Caboclo Pena Branca e Ogum Rompe Mato” e no Terreiro de Umbanda Zambi-Iris; a comida de direita e esquerda17 neste terreiro; a comida e os vários fins: amar, adoçar, curar, proteger, agradar e prosperar. Por último, o cardápio que “pode versus o que não pode”, ou seja, a perspectiva das quizilas e preceitos no que tange à alimentação dos médiuns partícipes dos terreiros aqui em voga.

Materiais e métodos

Em Bocaiuva, existem quatro terreiros que realizam o culto afro-ameríndio-euro- brasileiro rotineiramente, abrindo espaço para algumas atividades públicas. São eles: Tenda de Umbanda Pai Jacó (Umbanda e Quimbanda), localizado no Bairro Bonfim; Tenda de Umbanda Estrela Ascendente (Umbanda e Quimbanda) localizado no Centro; Terreiro de Umbanda Zambi-Iris (Umbanda e Quimbanda), no Centro e Ilê Caboclo Pena Branca e Ogum Rompe Mato (Candomblé, Umbanda e Quimbanda), também situado no Centro de Bocaiuva. Além destes terreiros, por meio de pesquisa de campo, foram localizadas mais 14 casas que funcionam como locais de atendimento clientelístico.

O acesso aos terreiros a partir do mês de Dezembro de 2015, veio acompanhado de um olhar de desconfiança, de medo e, às vezes, mudança de assunto por parte dos responsáveis, o que se compreende, já que são pessoas as quais sofrem muita intolerância religiosa. A pesquisa foi realizada em dois terreiros com dinâmica cultual mais rotineira, já que se propuseram participar da pesquisa e se encaixavam na proposta18 que era estudar ao menos um terreiro de Candomblé, Umbanda e Quimbanda. O “Terreiro de Umbanda Zambi-Iris”, doravante Zambi- Iris, optou por participar da pesquisa, pois seus membros têm vontade de enfrentar o preconceito sofrido e por terem conhecimento do quão importante é o estudo sobre os terreiros para que isso ocorra. O Zambi-Iris pratica a Umbanda e dentro dos rituais umbandistas, são inseridos cultos quimbandeiros (culto a Exus e Pomba-Giras).

O “Ilê Caboclo Pena Branca e Ogum Rompe Mato”, doravante Ilê, também se predispôs a participar da pesquisa pelos mesmos motivos do Zambi-Iris. Pratica o tríplice culto: Candomblé (nação19 Keto e Angola), Umbanda e Quimbanda, pois de acordo com a crença vigente neste terreiro, quem possui a “feitura do Santo”20 no Candomblé e decorrido 11 anos após uma série de rituais e “obrigações” tem a permissão de praticar os rituais candomblecistas, umbandistas e quimbandeiros.

A observação participante nos terreiros começou no final de 2015 e durou até meados de Junho de 2017. Isto porque as religiões afro-ameríndio-euro-brasileiras são extremamente complexas, apresentam dinâmica própria, a exemplo da presença de dialetos específicos, rituais realizados exclusivamente em decorrência da época do ano, entre outros fatores. Neste ínterim, foi possível aproximar melhor dos adeptos, colher informações, aplicar roteiros de entrevistas, descobrir histórias, fazer registros fotográficos, gravações e acompanhar rituais fora dos terreiros.

Outro aspecto metodológico pelo qual se pautou a pesquisa foi a realização de entrevistas semiestruturadas. O roteiro de entrevista foi aplicado aos líderes dos terreiros. No Ilê, e de forma popularizada, são comumente reconhecidos por “pais” e “mães-de-Santo”. Já no Zambi-Iris são denominados de “pais” e “mães-de-orixá21”. Além dos líderes, o roteiro foi aplicado aos demais adeptos (“filhos-de-santo”), ou “filhos-de-orixás, conforme preferem ser chamados no Zambi-Iris. O roteiro continha perguntas relativas às informações básicas sobre os terreiros, às comidas das divindades (qual tipo de comida, significado da comida, onde é servida, etc.); e relativa à comida dos médiuns (proibições, motivos, relação comidas versus rituais, etc.)

Didaticamente, o objeto de estudo pode ser subdivido em dois enfoques básicos: 1) as comidas ofertadas para as divindades cultuadas por esses terreiros, incluindo-se as imanências dessas comidas, tais como seu sentido hierofânico, objetivos ao prepará-las, complementos ritualísticos (orações, consagrações, etc.) e complementos materiais que as personalizam/compõem (velas, fitas, ervas, flores, etc.); 2) a prática alimentar22 dos candomblecistas, umbandistas e quimbandeiros decorrentes dos pressupostos alimentares ditados/advindos pelas religiões as quais praticam (tabus, interditos, induções/motivações, etc.) e da influência do ambiente religioso onde convivem.

Comida dos homens e dos espíritos nos Candomblés, nas Umbandas e nas Quimbandas: da “dádiva” ao “fato social total”

Não é dispendioso afirmar que um dos elementos balizadores do Candomblé é a comida, conforme sustentam Nadalini (2009), Aguiar (2012) e Rabelo (2013). A comida, nos terreiros de Candomblé também é conhecida como “oferendas”, “obrigações” e nem sempre se dá apenas pelo sacrifício animal23. As oferendas representam o ato de ligação homem-divino e, por meio disso, a presença conspícua da comida no terreiro aponta para a centralidade da transformação ético-moral do adepto no processo de evolução espiritual, assim como a busca de energia, força, vitalidade para se vencer as demandas do dia a dia. (RABELO, 2013). Em ênfase, Nadalini (2009) revela que a alimentação, as oferendas e os tabus são basilares para o Candomblé e que a cozinha do terreiro constitui um dos lugares de maior importância, demonstrado pela dedicação e conhecimento das cozinheiras, as Iabassês, sobre o que oferecer aos Orixás e toda a história desse conhecimento por parte dela e pelos antepassados.

Nesse sentido, vale destacar que as comidas dos Orixás, no Candomblé, consoante a Aguiar (2012), são determinadas de acordo com a solicitação dos mesmos por meio da incorporação, dos jogos dos búzios ou conforme o mito que rege a história de cada um deles. O cardápio, normalmente seguido de critérios organizacionais, preces, banhos, preceitos encontram no ato mitológico a sedimentação “do comer”, não apenas no que tange ao Orixá, mas também aos filhos deste. Por isso, é relevante atentar-se ao fato de que o mito é uma das variáveis direcionadoras do ato de oferendar aos Orixás e, às vezes, dos hábitos alimentares dos candomblecistas.

Sob este prisma e sendo a alimentação uma das bases teológicas do Candomblé, isso acaba por influenciar as práticas alimentares dos candomblecistas. Nadalini (2009) afirma que o povo de santo possui uma identidade alimentar formada pela própria memória gustativa. Certifica que desde na alimentação são denominados de reconhecidos de quizila, ou seja, a relação de aversão de um alimento por parte de um Orixá, normalmente relacionado ao mito que circunda essa divindade; alimentos que podem gerar transtornos à saúde (o que pode ser um aviso do Orixá quanto à maleficência de tal alimento), até a capacidade inversa no qual um alimento pode colaborar para a retomada do equilíbrio e promoção do avanço ético do adepto. Assim, por exemplo, filhos de Oxóssi devem evitar o mel, os de Iemanjá sardinha e os filhos de Ogum o camarão. Filhos de Xangô, quando passaram pelo processo de iniciação, devem comer quiabo, porque este Orixá representa a vida e como gosta de quiabo, comer quiabo é adquirir longa vida, mas quiabo sem sal, porque sal é quizila de Oxalá, o maior dos Orixás. Além dos Orixás, Ribeiro (2009) lembra que em um terreiro tudo é alimentado, pois tudo carece de energia e força (o axé), que por sua vez se mediatiza pela comida. A comida na perspectiva candomblecista pode ligar o imaterial ao Orixá.

Conforme Ribeiro (2009) a Umbanda faz uso significativo de frutas nas oferendas, tanto em variedade, quanto em quantidade, não sendo regra o sacrifício animal. Esclarece também que nos centros umbandistas os Santos/Orixás não ocupam a centralidade nas práticas rituais, como o é no Candomblé, sendo vista com menor frequência a prática de oferendar a estas entidades, o que não ocorre, por exemplo, no Zambi-Iris, já que aos Orixás constantemente se fazem oferendas. Na Umbanda, além dos Orixás são ofertadas comidas a uma série de entidades de direita e esquerda.

O que se oferece às entidades da Umbanda muito se relaciona com a representatividade da divindade cultuada, ou seja, ao tipo de espírito e às particularidades arquetípicas dela. Por exemplo, aos Erês (espíritos no arquétipo crianças) se oferece doces, refrigerantes; aos Pretos- Velhos pipoca, bolo de fubá e café; às Pomba-Giras champanhe e frutas vermelhas; aos Exus a farofa de dendê apimentada; aos Caboclos frutas. A comida personifica e ilustra a figura da entidade cultuada no contexto da Umbanda, isto é, a comida oferecida é uma referência da própria entidade, sendo os ingredientes uma simbologia ou característica da entidade que serve também para singularizar a própria entidade e, assim, reforçar o alcance do objetivo da oferenda:

As entidades são como nós, elas têm personalidade própria para se vestir, comer e dançar. Tem coisas que a gente não come e tem outras que é nosso prato favorito. Da mesma forma são as entidades, cada uma sabe manipular determinados elementos ao nosso favor, são especialistas nisso. Então, pare e pense, Exu é mestre em manipular padê, Erê é craque nos doces e Zé Pelintra é o rei da cachaça. (Pai-de-Santo, Zambi- Iris, Outubro de 2016).

Cada elemento da oferenda traz em si, o que aqui se pode denominar de “ressignificação ontológica do alimento”, quer seja, um novo sentido ao alimento, ou aquele cuja hierofania se manifesta nele ao ser oferecido à entidade e, assim, transforma-se em comida.

Já a alimentação do médium umbandista se pauta pela aquisição preparatória em dias de trabalho ou de situações específicas inerentes a cada terreiro. Por sua vez, a comensalidade em dias de festa é regada pela diversidade e pela fartura. No Zambi-Iris, os médiuns que decidem aderir à religião de Umbanda são ensinados desde o início do desenvolvimento mediúnico a observarem o que comem, pois tanto pode fazer mal e atrapalhar a ida do médium ao terreiro, sendo a ausência nos trabalhos uma influência de espíritos zombeteiros, quanto pode atrapalhar na hora de girar (no desenvolvimento mediúnico os médiuns iniciantes são rodados para facilitar o transe).

Em face de todo o exposto, compreende-se que as práticas de oferendar constituem um sistema de trocas entre homens e deuses, no Candomblé, Umbanda e na Quimbanda. Ao olhar para estas religiões percebe-se a presença do sentimento de “dádiva”: do homem por estar agradando, principalmente com comida aos deuses, e os deuses por agradarem aos homens com atendimento de pedidos, proteção, superação e aprendizagem. Como já observava Mauss (1988): a noção de “dádiva” não se circunscreve apenas à materialidade, bens e riquezas, incorre também em banquetes, crianças, danças, feiras, mulheres, serviços militares, visitas, festas, comunhões, esmolas, herança, ritos e religião.

A perspectiva simbólica da dádiva está imbuída da premissa de que honra e o prestígio são posições mediadas por relações conjuntas entre dar, receber e retribuir, o que nas religiões afro-ameríndio-euro-brasileiras se dão pela dádiva em dar comida (oferenda), receber comida (re)produtora de axé, milagres, alcançar objetivos e, até mesmo, comida, enquanto prosperidade enviada pelos Orixás e outras divindades. Nessas religiões a dádiva é estruturalmente oferenda/comida e axé enquanto “presentes simbólicos” dados, recebidos e retribuídos em todos os aspectos, como se pode perceber na “metáfora da semente” presente na fala a seguir:

A comida do Orixá é como uma sementinha plantada: tem que cultivar, preparar a terra, enfrentar o sol queimando a pele, molhar todo dia. Depois de todo o trabalho feito a recompensa vem, porque devagarzinho a semente brota, cresce e dá frutos gostosos, sombra e enfeita o quintal da gente. Depois a gente tira a semente e começa tudo de novo. (Pai-de-Orixá, Zambi-Iris, , Abril de 2017)

Analogamente, em Mauss (1988) é assim que se manifesta a tríade da “teoria da reciprocidade”: dar, receber e retribuir, haja vista que o contrato e a troca são, enfaticamente, relações profundas e interconexas entre almas, coisas e vidas, ou poderia dizer, entre fiel, comida e entidade. Logo, ressalta o mana, palavra que identifica como a “espiritualidade”, força, atribuição simbólica contida em uma ação ou transação – o sentido dado ou criado pelo homem. Deste jeito, a obrigação de direito associa-se não apenas às coisas, mas aos seres, tanto espirituais quanto humanos, o que é uma realidade no Candomblé, na Umbanda e na Quimbanda. “Nos agentes sociais concretos, no interior de suas culturas; [...] o fato social total opera no âmbito relacional, compõe-se da relação entre indivíduos e sociedade, somente nesse sentido pode-se enxergar as relações entre o sujeito e seu grupo”. (TRIGUEIRO, 2003 p. 14)

O fato social total se situa como realidade materializada nos diversos setores da sociedade promovidos pela interação e inter-relações mantidas entre sujeitos tidos também enquanto “totais”, posto que são eles que expressam e produzem os valores, os sentimentos/subjetividade, a racionalidade, as ações simbólicas, sendo todas as suas ações pertencentes a um conjunto complexo e interligado. Portanto, é possível inferir que total, seja adjetivando o sujeito ou os fatos sociais por ele engendrados, é uma lógica de abrangência a todos os aspectos imanentes aos construtos sociais: jurídicos, políticos, econômicos, culturais, religiosos e, assim, por abrangência, alimentares.

Na cozinha e da cozinha do Ilê

A cozinha do Ilê é um espaço de interatividade entre os membros dele, visitantes e as divindades, numa relação dotada de sociabilidade e trocas. Notadamente, essa cozinha é um espaço-território religioso que permite a troca simbólica entre seres espirituais e seres humanos, sendo nela realizadas a maior parte das oferendas/comidas. Por conseguinte, trata-se não apenas de uma estrutura física qualquer, mas de um lugar onde ingredientes culinários e não culinários, os mais diversos, adquirem caráter de hierofania e se materializam num produto final que pode ser chamado genericamente de oferenda, ebó ou leigamente de “macumba”, e/ou em subprodutos como a expectativa de atendimento de diversos pedidos de quem oferta. Sob esta lógica, as cozinhas dos terreiros são “fixos” (possuem estrutura básica, típica de cozinhas seculares), e “móveis”, pois originam sub/produtos que irrompem as fronteiras de seu espaço fixo (transterritórios24, oferendas, atendimento às demandas dos adeptos e clientes do terreiro). Pode-se dizer, que a cozinha do Ilê é o motor do Candomblé e as comidas dos Santos o combustível. É dela que parte o axé que dinamizará todos os setores do Ilê, sendo, desta maneira, o “axé que produz/reproduz o axé” no contexto candomblecista em questão. A partir de uma atividade humana, que é cozinhar, os Orixás, entidades de direita e esquerda, são cultuados. Segundo Wirzba (2014) o ato de oferendar, principalmente, o sacrifical, representa um dos mecanismos mais antigos e culturalmente adotados pela humanidade para interagir com os deuses. Todas as religiões, direta ou indiretamente, realizam oferendas, ainda que seja a “auto-oferenda”.

A cozinha do Ilê pode ser entendida como um “fóssil”, pois representa a reterritorialização da África por meio da comida do Orixá e mantém registrada a história do continente como “ingrediente” na composição do Candomblé e o hibridismo cultural ocorrido em solo brasileiro; conserva ainda a prática antiga (oferendar e sacrificar materialmente), executa práticas alimentares-culturais residuais repassadas de gerações. Desta forma, a cozinha do Ilê exprime um sentimento de solidariedade não só para com o Orixá, mas também para com o antepassado e a “família de Santo” com a qual se aprendeu a cozinhar para as divindades e todas as demais doutrinas/teologias da religião, o que inclui o mito que rege cada Orixá e, logo, o que oferecer ou não à entidade. Então, a análise dos produtos/subprodutos engendrados na cozinha do Ilê permite entender também o contexto de vida dos que oferendam.

Outro aspecto relevante é a inserção nas comidas dos Orixás de ingredientes que não se reportam exclusivamente à origem africana. É importante frisar o hibridismo alimentar na cozinha do Ilê, uma vez que o Candomblé ainda representa uma prática residual da memória africana no Brasil. Mesmo havendo sincretismos, o Candomblé ainda possui muitos elementos residuais, como dialetos, modo de preparo das comidas, danças e mitos. Logo, o milho, de origem ameríndia, é inserido na cozinha dos Candomblés consideravelmente por meio da pipoca e das canjicas. A mandioca, alimento bastante utilizado na cozinha dos terreiros, pura ou em derivados, embora tenha referência africana, era muito apreciada pelos indígenas brasileiros. Por sua vez, consoante a Cascudo (2004), os doces mais incrementados remontam à prática culinária portuguesa e vêm nas oferendas votivas orixareanas para amansar, agradecer, fazer apaixonar, entre outros objetivos. Desta maneira, a formação da(s) cozinha(s) brasileiras deixa-se transparecer na estruturação da cozinha do Ilê, agregou novas hierofanias à matriz culinária-africana e reconstruiu cardápios dos Orixás no Brasil.

Os principais Orixás cultuados no Ilê, as comidas mais importantes servidas a eles, estão sintetizados no Quadro 1. Mametto, mãe-de-santo do Ilê, afirma cultuar outros Orixás, mas que os listados a seguir são os principais. Segundo ela, existem as comidas secas (não envolvem sacrifícios animais) e as “comidas de matança”, classificação muito próxima à apontada por Rabelo (2013).

Quadro 1: Relação entre principais Orixás, comidas e objetivos do Ilê.

Orixá

Comida

Objetivo

Oxalá

Canjica e Mel; Acaçá.

Trazer paz, cura, proteção.

Ogum

Feijoada, inhame, mel.

Vencer demandas, proteção em viagens, superar inimigos.

Oxóssi

Milho de galinha, frutas e verduras.

Prosperar, adquirir conhecimento, atingir alvos difíceis.

Tempo

Pipoca de milho torrado, rapadura.

Vencer as dificuldades da vida, superação de preguiça, preparar bom futuro, proteção contra males espirituais herdados do passado.

Xangô

Quiabos em cruz lavrados e quiabos inteiros

Vencer causas na justiça, superar injustiças.

Iemanjá

Canjica branca, peixes de água doce, arroz cozido, manjar branco, ovos.

Proteger a família, conquistar amores, limpar espiritualmente.

Oxum

Feijão fradinho, ovos cozidos, quindim.

Promover fertilidade, angariar um amor, atrair prosperidade e beleza.

Iansã

Acarajé, caruru, vatapá, frutas em tons alaranjados.

Adquirir força, limpar espiritualmente, aquecer situações (romances, emprego, prosperidade).

Exu

Farofa de dendê apimentada, bife acebolado.

Abrir caminhos, proteger contra demandas e mandingas; adquirir vitalidade.

Obaluaiê

Pipoca de milho estourada no azeite de dendê e areia enfeitada com coco; inhame barbado.

Curar, proteger contra espíritos recém- desencarnados.

Oxumaré

Batata doce, canjica branca.

Livrar-se de traições, atacar inimigos; ser próspero.

Erês

Salada de frutas, caruru, doces, xinxim de galinha.

Adoçar, trazer pureza, vencer demandas.

Fonte: Caderno de Fundamentos de Mametto.
Organização: Os Autores, 2017.

A análise do Quadro 1 permite entender que há uma associação entre a característica da comida e o seu sentido hierofânico, suas características, tais como sabor, cor e cheiro. Os doces e o mel, por exemplo, servem para “adoçar uma pessoa”. A pimenta serve para “vitalizar”, aquecer ou mesmo causar brigas. O amargo serve para “azedar inimigo”. O ovo se coaduna à fertilidade. Peixe/água associa-se à noção de limpeza/purificação. “A comida do Santo tem que ter tudo do bom e do melhor. Se você quiser trazer alguém tem que por muito mel, pra ela ficar doce pra você. Só toma cuidado porque mel é quizila de Oxóssi, se a pessoa for de Oxóssi você pode fazer muito mal a ela”. (MAMETTO, Dezembro de 2016).

Quando Mametto se refere à quizila de Oxóssi ela destaca o mito segundo o qual Oxóssi foi caçar com Oxum, sua esposa, e o filho Logum-Edé, quando atirou com sua flecha e acertou contra abelhas, as quais atacaram gravemente seu filho. Deste dia, prometeu nunca mais comer mel. A partir dessa versão dada à história da quizila de Oxóssi, o mel passa a ter duplo sentido: por um lado é usado para adoçar, mas se a pessoa for filho/a de Oxóssi o mel é capaz de trazer sérios danos à pessoa, tanto no sentido espiritual quanto na questão de saúde física. Portanto, além do significado relativo às propriedades físicas/químicas da comida, o sentido hierofânico também está vinculado aos mitos dos Orixás.

Outro aspecto passível de compreensão a partir da análise do Quadro 1 é que a comida no Ilê não possui apenas a finalidade em agradar aos Orixás ou fazer-lhe pedidos. Ela serve, conforme a crença, para limpar as impregnações e sujeiras espirituais dos adeptos e clientes. Trata-se dos ebós. Os ebós, segundo Mametto, podem ser divididos em dois segmentos: os destinados à limpeza (sacudimento) e aqueles em forma de oferenda depositados em encruzilhadas ou nos assentamentos. Os ebós têm como ingredientes alimentos, os quais objetivam retirar energias consideradas negativas, de espíritos zombeteiros, (quiumbas ou eguns), os quais são entendidos enquanto causadores de depressão, vontade de suicídio, atraso em todos os aspectos da vida do cliente/adeptos. Comumente usa-se ovo, canjica, pipoca, frutas, mel e em casos mais extremos sangue animal, a depender do Orixá que fará a limpeza, este determinado pelo jogo de búzios ou por uma entidade incorporada.

A comida que compõe o ebó é sempre lavada com amassi ou aguardente, os quais segundo a crença são purificadores energéticos. As cantigas são sempre companhia da comida, não só nas limpezas, mas em todos os rituais do Candomblé. Segundo Mametto, os pontos cantados também são axé, eles são uma forma de distribuir energia e chamar a entidade. Onde houver comida no terreiro, haverá um ponto cantado, uma letra alusiva às entidades que “comerão”, sendo uma das formas de chamá-las, como o é o estalar de dedos, o bater-cabeça, levantar as mãos ou fazer a saudação típica de cada uma: Odoyá (Iemanjá); Okê arô (Oxóssi); Atotô (Obaluaiê), etc., ou simplesmente Saravá (Salve). Igualmente, as rezas, as preces ou os orikis (louvações) são entoados na oferta da comida.

Já o bori liga o homem ao Orixá, bem como o ebó de limpeza, agrega outro sentido à trajetória da comida no Ilê: não se dá de comer apenas aos Orixás, mas também ao próprio filho-de-santo, isto é, dá-se de comer ao corpo do médium, seja ingerindo, limpando-o ou “servindo-lhe” a comida na própria cabeça amarrando-se um lenço branco para cobrir o “borizamento”. O bori é considerado um Orixá também. Mas é um Orixá como extensão do próprio médium, assim como o Intoto representa um Orixá parte do chão, afirma Mametto, mas que não incorpora. O Orixá liga o homem a Olurum e o bori liga o homem ao Orixá. Completando, o homem religa-se à divindade e a si mesmo.

O bori pode ser feito em diversas situações, tais como no processo de feitura, em momentos de aflição do médium, no enfrentamento de adversidades e/ou busca de objetivos, sendo sempre determinado fidedignamente pelo jogo de búzios, o que inclui a própria duração do borizamento. Aliás, os búzios constituem um divisor de águas no Ilê, pois são eles que conduzem o que, onde e quando dar e comer, o que não se diferencia em se tratando do bori. O bori no Ilê é feito sob três procedimentos: colocando a comida diretamente na cabeça do médium; sobre uma bacia (ibá ori) e/ou ingerindo, principalmente noz de cola, também conhecida por obi. O bori segurado pelo médium na ibá ori é uma simbologia que evoca a responsabilidade do médium, isto é, segurar o seu equilíbrio com as próprias mãos. Noutra perspectiva, o segurar a ibá ori significa a socialização do bori para com outros membros do Ilê, logo, ter às mãos para oferecer.

Outra questão que ainda tangencia a comida no Ilê é que “Os guias falam com a gente quando eles aceitaram ou não a comida. Eles também falam se tá bom ou ruim, se é para colocar algo mais ou pra retirar. Éh, Santo num é brincadeira não.” (MAMETTO, Maio de 2017). Durante a preparação das comidas, tudo se sacraliza, seja por meio das rezas, cânticos entoados, saudações, preceitos requeridos para preparação (não ter relação sexual, não beber, não brigar, firmar o pensamento) e pela interferência das entidades, as quais emitem sinais por meio dos utensílios da cozinha ou às proximidades: se a panela virar, o Orixá solicita outra comida; se a colher cair: acrescentar mais ingredientes ou trocar de cozinheira (no caso a Iabassê pela mãe- de-santo ou vice-versa); se algum ingrediente cair é porque o Orixá não queria esse ingrediente na comida. Enfim, atos rotineiros numa cozinha secular assumem nova dimensão espiritualizada, ressignificam-se em influência da atuação do Orixá e da lógica religiosa reestruturante.

A cozinha do Ilê ainda apresenta outra prática envolvendo a comida: o ajeum. Um ajeum presenciado foi a “Feijoada de Ogum”. Neste dia tudo precisa estar limpo, organizado e bem feito, pois o Ogum desceria em Terra. Com antecedência as tarefas foram distribuídas (limpeza do terreiro, divisão dos valores para custear o evento, a Iabassê responsável por preparar a feijoada, os cambones são responsáveis pela lenha utilizada no fogão; limpeza espiritual da casa, entre outras). Aberta a gira, depois dos procedimentos ritualísticos básicos (orações, defumação, cânticos) aconteceu a “descida do Ogum”, que com axó e ilequê, roupa de Orixá e colar de fios, respectivamente, abraçou e procedeu a bênção a todos os presentes, ao saudá-lo com sete palmas e com o “bate-cabeça” (curvar-se diante da entidade colocando a cabeça no chão). Ao ingerir a feijoada, os adeptos acreditavam na ingestão das energias ativadoras da capacidade em atingir o alcance daquilo que foi pedido. Assim, quem pediu “o mau”, estaria ingerindo “o próprio mau”.

Neste sentido, é possível afirmar que as comidas no Ilê são comidas históricas e rememorativas, porque sempre trazem reflexos da própria história da formação da cozinha e dos Candomblés no Brasil, mesmo que, às vezes, esta historicidade e a rememoração passem inconsciente e desapercebidamente pelos próprios candomblecistas do referido terreiro, mas que independentemente disso, possuem a fé enquanto mecanismo de apreensão e concepção das comidas. São comidas que ao serem arriadas expressam desejos, histórias, aprendizagens, proibições, mazelas, dissidências, encontros e desencontros, isto é, refletem a perspectiva e a vida dos filhos-de-santo e de Mametto.

Comida de Orixás, direita e esquerda no Zambi-Iris: comida para amar, adoçar, curar, proteger, agradar e prosperar

As oferendas no terreiro Zambi-Iris sempre contêm comidas, comumente agregadas de laços, fitas de cetim, flores e bebidas. O tipo de comida ofertada varia de acordo com o tipo de entidade cultuada. Assim, a título didático serão analisadas as comidas dos Orixás, das entidades de direita e de esquerda. Segue análise da comida dos Orixás.

Os Orixás na Umbanda e mesmo no Candomblé, a exemplo do Ilê, costumam apresentar roupagem mais sincrética com os santos católicos. Contudo, devido à ideologia presente no Zambi-Iris de dessincretização, nos cultos e rituais os elementos católicos não aparecem associados aos nomes dos Orixás. Assim, por exemplo, Iansã não é chamada de Santa Bárbara e vice-versa. A palavra “Santo”, como designação aos Orixás, quase não é usada no terreiro, sendo aqueles mais acostumados a usá-la ou por distração corrigidos imediatamente.

A comida dos Orixás no Zambi-Iris é utilizada para os seguintes objetivos: apaziguar conflitos emocionais e familiares, trazer prosperidade, curar,quebrar demandas, trazer proteção contra diversos males físicos e espirituais; agradecer por graças alcançadas, abrir caminhos, fazer limpezas ou simplesmente pelo gosto em oferendar: “Às vezes eu dou uma oferenda só por prazer, fazer a comida para minha mãe Oxum é muito prazeroso. A gente tem que dar a comida sem segundas intenções, entidade não é escravo nem gênio da lâmpada não.” (Filha-de-Santo, Zambi-Iris, Maio de 2017). O prazer em dar a oferenda, em preparar a comida no Zambi-Iris chama a atenção. Há sempre expressão de sorriso e de satisfação que desenham o rosto dos médiuns na hora de preparar e arriar a comida. Oferecer a comida para os Orixás e para as outras entidades cultuadas gera um vínculo entre o médium e a entidade, vínculo reforçado e reavivado pela oferenda.

Mas associado ao gosto, ou ao vício em oferendar no dizer da filha-de-santo supramencionada, está a necessidade do auxílio espiritual dos Orixás, aos quais não devem ser direcionados pedidos que indiquem maldade ou “passar a rasteira”25 em alguém. O Orixá está simbolicamente relacionado à “promoção do bem”, pois são enxergados enquanto seres evoluídos, uma herança do Zambi-Iris herdada da base espírita dos seus fundadores. Assim, esta perspectiva do que são os Orixás se deixa transparecer nas comidas arriadas para eles. Desta forma, a comida servida a Oxalá é acompanhada de olhares de ternura, compaixão, humildade e tranquilidade. A canjica branca, pré-cozida, regada com mel, colocada em tigela/louça branca e enfeitada com flores também brancas são utilizadas para harmonizar, curar, iluminar e outros possíveis sinônimos para esses verbos.

Desta feita, tomando como exemplo, a comida de Oxalá, é possível afirmar a existência do que se poderia chamar “ciclo de transposições” entre a comida, Orixás e umbandistas. Resumidamente, as características do Orixá e todo o seu arquétipo existencial se transpõem para a comida oferecida a ele, já que a comida se hierofaniza em acordo com os “poderes”, simbologias, mitos e imanências da divindade. Por sua vez, a comida hierofanizada pelas características do Orixá se transpõe para a realidade de quem a oferece para alcançar os objetivos propostos por ele. O umbandista, movido pela resposta do Orixá transpõe sua fé por meio da comida votiva ao Orixá. Portanto, a comida do Orixá tem a função precípua de pontificar o homem ao objetivo delineado por ele ao oferendar, criando um ciclo, no qual a comida do Orixá se torna um elo divindade-homem.

A propósito, uma das motivações em oferecer comida aos Orixás é a crença de que isto traz resultados, criando um fluxo de oferendas motivadas, entre outros fatores, pelo alcance do que se espera. Assim, é preciso considerar que: “Aquilo que a gente dá com bom coração para nossos guias, volta tudo pra gente em forma de axé; ajuda a gente a cada dia a focar nas nossas metas, eu acredito assim”. (Filho-de-Santo, Zambi-Iris, Fevereiro de 2017).

O Quadro 2 apresenta os principais Orixás cultuados no Zambi-Iris, as comidas/bebidas oferecidas, o sentido tipológico-simbológico desses Orixás e a atribuição dos elementos da natureza a eles.

Quadro 2: Relação entre principais Orixás, associação à natureza, comidas e simbologias no Zambi-Iris.

Orixá

Natureza/Elemento

Simbologia

Comida/Bebida

Oxalá

Céu, Ar

Criação; Humanidade

Canjica, Acaçá, Mungunzá/Água Mineral, Vinhos doces.

Exu

Terra

Comunicação; Comércio; Proteção; Reprodução.

Farofa de dendê, acaçás vermelhos, bifes/bebidas alcoólicas.

Ogum

Minério de Ferro, Fogo

Tecnologia; Guerra

Cará, feijão mulatinho com camarão e dendê, manga espada/Cerveja branca.

Oxóssi

Matas

Caça; Fartura

Axoxô (milho com fatias de coco), frutas, carne de caça, taioba/Vinho tinto, água de coco, caldo de cana e aluá.

Xangô

Trovão, Fogo

Justiça

Agebô, amalá/cerveja preta

Obá

Rio

Trabalho doméstico

Abará, acarajé, quiabo picado/Champanhe.

Iansã

Fogo, Tempestade

Cuidados com mortos

Acarajé (ipetê, bobó de inhame)/Champanhe

Oxum

Águas doces, Cachoeiras, Rios

Amor, Vaidade; Riqueza; Fertilidade

Omolocum, ipeté, quindim, banana frita, pirão de cabeça de peixe e moqueca./Champanhe

Iemanjá

Mar/Água Salgada

Maternidade; Equilíbrio emocional

Peixe, camarão, canjica, arroz, manjar e mamão/Água Mineral ou Champanhe

Organização: Os Autores, 2017

Note-se que na Umbanda praticada no Zambi-Iris os Orixás estão vinculados intrinsicamente à natureza, constituem concomitantemente uma representação da natureza sendo parte integrante dela. Todavia, também trazem uma representação no sentido de liderança, sendo, por exemplo, Oxóssi um guia protetor e líder das matas, florestas e espaços verdes. Sendo assim, considerando o ciclo de transposições a comida dos Orixás também faz outro percurso/transposição: ela se coaduna à natureza, pois se o Orixá é da natureza, a comida dele não deixa de assim o ser. Não despropositadamente, as comidas dos Orixás apresentam sempre adornos/ingredientes com algum enviesamento que se reporta à natureza: flores, folhas, pedras, água da chuva, do rio, frutas, ervas, etc., trazendo uma lógica de sincronia e culto à natureza, ou pelo menos de alguns de seus elementos espelhados nos Orixás cultuados.

Comida e o Culto às Entidades de Direita e Esquerda no Zambi-Iris

Além dos Orixás, os umbandistas do Zambi-Iris ainda realizam o culto às entidades de direita e de esquerda. A direita no Zambi-Iris representa uma linha de espíritos evoluídos, mas não tanto quanto os Orixás, e que por isso trabalham segundo o comando de algum Orixá. Estes espíritos, constituem uma representação de arquétipos do Brasil, por assim dizer. Por exemplo, o Baiano representa o nordestino, principalmente do Sertão, marcado pelo sotaque arrastado e prosa saudosista da Bahia, pois representa o brasileiro que realizou muitas transumâncias e que pelas dificuldades encontradas na metrópole vem à gira de Umbanda para contar suas histórias, aconselhar, se divertir e divertir o consulente, além de falar o que não e o que fazer na “cidade”. O Boiadeiro representa o “caboclo”, responsável pelo cuidado com o boi em regiões interiores do Brasil, personificado no homem de fala firme, resistente, mas ao mesmo tempo mansa, que usa chapéu de couro e de palha, toca berrante, usa chicote e laça o boi e os feitiços lançados contra os médiuns. É a configuração de um ethos sertanejo dentro do terreiro. Os Pretos-Velhos simbolizam o escravo, subalterno, resignado, humilde, de boa fé e o conhecimento sobre ervas, curas e feitiços/contrafeitiços, sentado em um toquinho, que gosta de café, e broa de milho. Os Caboclos, espíritos de indígenas/descendentes indígenas, ora mais aculturados ora menos, mas sempre com um perfil vinculado a um “individuum indígena”. Os Malandros, no caso Zé Pelintra e Maria Navalha, representam a “boemia”, o gosto pelo boteco, o samba, pela diversão e irreverência do “morro” carioca.

Nesta lógica, a Umbanda compõem/comporta símbolos e panteões que refletem a própria brasilidade do país, uma reunião de identidades regionais, ou como afirmam Brumana e Martinez (1991, p 257) “[...] as entidades umbandistas não são criações ‘ex nihilo’ do culto e sim a absorção de significantes preexistentes em diversos registros culturais”. Este esteio regional de formação das entidades de direita na Umbanda se reflete diretamente na comida destas entidades no Zambi-Iris. As entidades representam uma simbologia de algumas regiões do Brasil e dentro delas “os pratos típicos”: o Baiano, o Nordeste e coco, o tempero apimentado; o Caboclo, o Norte, as drogas do sertão; o Boiadeiro os “Sertões”, o modo “caipira” de comer; os Malandros, o Sudeste, as comidas de “tira-gosto”; os Marinheiros, as regiões litorâneas, os peixes, crustáceos.

A comida dos Baianos surge como uma “cozinha baiana” e do Nordeste em si nos trabalhos ritualísticos, onde o coco, por exemplo, é referência. Por outro lado, a comida dos Boiadeiros rememoram o trato para como o boi e ato de comer derivados de bovinos (leite, queijo, carne), bem como um modelo de alimentação com características do espaço rural, como a rapadura, a farofa, a galinha caipira, o fruto do mato. A bebida é o marafo (cachaça) ou o sangue de boi (vinho), o café forte sem açúcar.

A comida dos Pretos-Velhos não se excetua a um dos paradigmas da comida da Umbanda e do Candomblé: a capacidade rememorativa que ela tem. Neste sentido, a comida do escravo negro no Brasil é uma tentativa de retomada da comida oferecida na senzala, mesmo ela tendo sido diferenciada para cada tipo de trabalho executado pelo escravo. Contudo, no terreiro Zambi-Iris não há esta separação: derivados do milho, café e leite são elementos fortes na construção identitária alimentar dos Pretos-Velhos, os quais, pelo ideal de humildade que representam não costumam fazer muitas exigências, além do banquinho de madeira para se assentarem e de uma resistência ao açúcar, conforme se percebe na fala do Preto-Velho “Vô Chico de Aruanda” na Festa dos Pretos Velhos ocorrida no Zambi-Iris em 13 de Maio de 2017.

Pretinho [café] sem açúcar zin filho. Açúcar me traz lembrança ruim lá do engenho e da chibata. Esse negócio ai é doce, mas já foi amargo pra esse seu vô velho aqui. Mas na broazinha meu zin filho tem problema não, porque ela me faz lembrar a broa que minha Pretinha fazia pro patrão e guardava escondido pra mim por de noite.

A Festa dos Pretos Velhos, realizada para se comemorar a abolição da escravidão, traz para o terreiro a figura do Preto-Velho e de uma comida “senzala-sertaneja” para os umbandistas e para as entidades (farofas, milho/leite e derivados, café) inseridas na decoração do terreiro com palhas, pilão, bules, pratos e esmaltados, chapéus de palha e uma mesa contendo as comidas servidas aos Pretos-Velhos e também aos demais participantes da festa.

Ainda agrega à comida de direita no Zambi-Iris, as contidas nas oferendas e giras de Erês. Os Erês são servidos com “guloseimas”. É a versão da comida fast-fodeana no terreiro, pois comem doces industrializados, balas, pizzas, salgadinhos, bolos de aniversário, tomam refrigerante, principalmente de Guaraná.

A deliciosa comida dos nossos Erezinhos (risos) é fenomenal! Às vezes fico impressionada, sabe, como pode, algo tão simples assim, fazer tanto milagre. Esses doces aí adoçam mesmo, traz pureza, paz, cura. A energia deles é tão boa que desfaz qualquer trabalho feito pra gente. Outro dia, eu tava com muitos problemas lá em casa, muita briga, desentendimento. Eu fiz um caruru pra Crispim e pus um guaraná. Poucos dias depois tava tudo resolvido lá. (Filha-de-Santo, Zambi-Iris, , Setembro de 2016).

A comida dos Erês no Zambi-Iris está relacionada à “pureza”, pureza no sentido de não ter “más intenções”, estar despido de sentimentos com sinais de perversidade. É uma condição ainda do binômio bem versus mal, onde o Erê é o bem, que se opõem ao mal, este que não deve ser praticado, ou se praticado deve ser contrabalanceado com o bem. Neste sentido, a pureza, além da ausência/anulação/contrabalanceio do mal, vincula-se à noção de “infância”. O Erê é a possibilidade do médium “voltar a ser criança”, tornar-se puro, um estado humano “in natura” e que tem a capacidade de ser educado, reelaborado. O doce é para adoçar, trazer a alegria, celebrar como se celebra em uma festa de aniversário, um novo nascimento a cada oferenda ou a cada incorporação do Erê. Acredita-se que a comida dos Erês pode desfazer qualquer maldade encetada.

Comidas de Esquerda no Zambi-Iris

Igualmente à comida dos Orixás, a comida dos elementos de direita no Zambi-Iris tem o objetivo de trazer o equilíbrio energético-espiritual, auxiliar em questões de prosperidade/emprego, casos amorosos (excetuando-se separação de casais), quebra de demandas e também o prazer/gosto por oferendar. Durante as giras, as entidades de direita sempre bebem, comem junto aos médiuns e se dedicam a dar conselhos, fazer correções, indicar rotinas para o terreiro, contar histórias, auxiliar na cura e fazer limpezas espirituais.

A responsabilidade do Zambi-Iris ainda aumenta, porque também é preciso zelar pela esquerda, quando se pratica o culto quimbandeiro. Os Exus e as Pomba-Giras, são espíritos ligados à liberdade, autonomia, capacidade de mudança, transgressão de ordens preestabelecidas no universo social e espiritual; constituem a força vital da sexualidade e das emoções e paixões humanas. Não obstante, essas entidades têm uma personificação menos “demonizada” dentro do terreiro, se comparada com a visão do Ilê, por exemplo, o qual as entidades de esquerda são tidas como mais “diabólicas”, pelo menos em atitudes delas. De acordo com os líderes do Zambi-Iris, as comidas de Exu e Pomba-Gira são as que mais têm “saída”, isto é, são feitas, já que pelo sentido brincalhão, pela capacidade e resposta rápida nas demandas eles são os mais procurados.

Os principais Exus cultuados no Zambi-Iris são: Tranca-Rua das Almas, Sete Encruzilhadas, João Caveira, Marabô, Gato Preto e Arranca-Toco. A crença é que estes Exus são solicitados para “tarefas mais pesadas”, já que possuem a capacidade de adentrarem em zonas energéticas espirituais mais densas, podendo percorrer e quebrar energias relacionadas ao magnetismo de todos os elementos básicos da natureza. Entre estas tarefas podem constar: vencer inimigo, auto-superação, desfazer feitiços de alta periculosidade, prosperidade, abrir caminhos, curar.

Como as demais comidas das entidades, as dos Exus são feitas a partir de ingredientes simbólicos. Prates (2009) aponta que os principais elementos da natureza representados em trabalhos com Exus são o fogo, a terra, água e o ar. Basicamente, os principais elementos ritualísticos utilizados nas oferendas para Exu no Zambi-Iris são a farinha de mandioca, a cebola, o azeite de dendê, a carne (ave, suína e bovina), pimenta, fitas pretas e vermelhas, velas nestas cores, o alguidar, cigarros/charutos, tecidos, facas, chaves e bebidas alcoólicas.

O Exu na Quimbanda e na Umbanda traz o significado nítido de decisão, isto é, qual caminho a seguir e a ser trilhado pela humanidade, as atitudes irrompidas em variadas escalas temporais e espaciais. A encruzilhada e o caminho são representações de Exu. Assim, ao estar defronte a uma encruzilhada, o homem tem que decidir se vai ou fica, para qual lado se manifesta. Há aí toda uma cosmovisão humana impregnada na figura da entidade de Exu, o dono dos caminhos sem o qual não se faz nada. A comida arriada na encruzilhada é um mecanismo motivador para a “tomada de decisão” conforme o objetivo a que se propõe.

Na lógica teológica do Zambi-Iris se o homem escolhe o bem/bom, colherá o bem/bom, ao contrário, se colhe o mau/mal estes ele terá. Mas no Zambi-Iris o Exu não é a personificação da maldade, ele é caminho a ser trilhado, no qual o homem é quem decide. Esta visão da Quimbanda e em algumas Umbandas se choca com uma visão cristã-ocidental de Exu como manifestação diabólica, contrária às forças do bem e condutora do homem ao inferno, onde Exu reina. O Exu, na perspectiva dos sujeitos estudados, é o guardião, aquele que embora seja espírito, ainda é muito próximo aos desejos humanos. Por isso, age rápido, não difere os desejos proibidos dos desejos permitidos. Assim, o padê de Exu traz o sentido de proteção, de consumação de desejo.

Todos os ingredientes do padê ficam recolhidos no congá à luz de velas por três dias, exceto a carne. O preparo da comida é antecedido por preceitos (ausência da prática sexual, redução na quantidade de alimentos ingeridos pelo médium durante o dia). A comida é feita ao som dos pontos dos Exus e com a realização de pedidos, tanto feito mentalmente, quanto escrito e depositado junto à farofa. Diferentemente do Candomblé, em que a cozinha é em sua maioria responsabilidade da mulher, homens protagonizaram o preparo do padê no Zambi-Iris.

Ainda na Quimbanda praticada no Zambi Iris não se pode esquecer da comida das “moças da casa”, segundo linguajar predominante no terreiro ao se referirem às Pomba-Giras. Estas são espíritos femininos, cuja origem (de surgimento e mesmo etimológica26) ainda é um campo de pesquisa em construção, segundo Barros (2006). Elas estão ligadas ao despudor, ao afloramento da sexualidade humana, dos prazeres da carne, vistas por muitos terreiros como “messalina”, com ares de prostitutas e da mulher devassa. Contudo, alguns terreiros com perspectiva mais cristianizadas as têm apresentado como seres doutrinados espiritualmente, capazes de controlar os desejos mais escusos e proibidos para a sociedade, para qual podem trabalhar em sentido da não prática do mal. (BARROS, 2006).

Assim, a comida de Pomba-Gira no contexto do Zambi-Iris é uma “comida do amor” e uma “comida da sexualidade”, acreditada ser capaz de mudar pensamentos, promover a beleza, a atração e os olhares do outro. Neste sentido, dois aspectos comuns em relação à comida de Pomba-Gira se destacam no terreiro: o Banho de Pomba-Gira e uma receita de amarração. O Banho de Pomba-Gira é um ritual onde a entidade incorporada em um médium passa no corpo do consulente algumas comidas para promover a atração sexual, arrumar namorado/a, aumentar a autoestima ou reatar casamento/namoro.

Outra forma de “encantar com comida” traz uma receita simples, mas que segundo os filhos-de-santo do Zambi-Iris são extremamente eficazes para solucionar problemas amorosos, como o foi na resolução do caso que segue. O “trabalho” consiste em cortar uma maçã, a maior, doce e mais vermelha possível, cortá-la ao meio, retirar o miolo das metades, escrever o nome da pessoa amada por baixo e de quem quer ser amado/a por cima, dobra-se sete vezes com a letra para fora e colocar na parte de baixo da maçã cortada. Despeja-se mel ou leite condensado por cima, acrescenta-se anis estrelado e sete cravos-da-índia, fecha-se a maçã, amarra verticalmente as bandas da maçã uma na outra com uma fita vermelha com as medidas do cumprimento do pé de quem quer ser amado, dá sete nós na fita e professa: “Que você fulano/a não tem paz, nem alegria, nem de noite nem de dia, enquanto não voltar para mim/ me amar”. Acende-se sete velas vermelhas, uma cigarrilha, põe num prato virgem em cima do padê de Pomba-Gira (o padê é opcional) e serve-se um espumante. Quando a vela apagar procede-se o despacho em encruzilhadas, valendo-se da lógica de recolhimento no outro dia.

A partir dessa ótica a comida ofertada à Pomba-Gira encadeia um duplo sentido: é uma “comida que amarra”, mas também é uma “comida que liberta”, liberta da vergonha, da solidão, da baixo autoestima, da introversão/introspecção desmedida, das palavras presas para o ser humano, mas ditas para a Pomba-Gira. Enfim, assim como o próprio arquétipo da Pomba-Gira, é uma amarração ou liberdade relativa e, sobretudo, do ponto de vista no qual se debruça.

A comida dos adeptos do Ilê e do Zambi-Iris: onde eu dou de comer e beber é onde eu como e bebo

As questões religiosas do Ilê e do Zambi-Iris são refletidas direta e indiretamente na vida de seus adeptos. Por exemplo, no Zambi-Iris associa-se algumas cores aos Orixás, desta feita, assim como objetos pessoais, a cor dos alimentos ingeridos pelos umbandistas do Zambi- Iris é associada à cor dos Orixás. O branco lembra Oxalá, o amarelo Oxum, o verde Oxóssi. Logo, ao adquirir os alimentos em um supermercado, por exemplo, prioriza-se os que possuem a embalagem na cor que se remete aos Orixás que os regem ou a outras entidades de direita ou esquerda cultuadas.

Em face do exposto, segue-se a análise das principais especificidades observadas na alimentação dos médiuns participantes do Ilê e no Zambi-Iris, bem como similitudes e comparações entre a prática alimentar encerrada nestes espaços religiosos.

Quizilas, Preceito e Camarinha: o cardápio que pode versus o que não pode

As quizilas, também conhecidas como ewó, são concebidas nos terreiros não apenas como restrições alimentares em virtude da não aceitação de determinados alimentos por algumas Orixás. Elas tem um sentido amplo de aversão, conflitos inter e intra-pessoais, brigas, falhas, insucessos, etc. Enfim, a quizila é tudo aquilo que não dá certo e que faz não dá certo. A crença é que quando se está quizilado tudo dá errado, há um descontrole do equilíbrio sistêmico na matéria (corpo/saúde física), na vida pessoal da matéria (prosperidade, família, emprego), decorrente de insatisfação espiritual (desagrado/desrespeito à entidade). Assim, é importante frisar é que a quizila considerada é a alimentar. A quizila dos médiuns é a quizila do Orixá, os quais parecem transmitir aos filhos, como que por hereditariedade o “desgosto” para com alguns alimentos. Comer a quizila é afrontar e desrespeitar o Orixá que rege o médium.

O ponto motriz, gerador e principal das quizilas alimentares são os mitos de cada Orixá, a exemplo da explicação da quizila com mel de Oxóssi. Com base no mito é possível dizer o que cada entidade come ou não e, logo, por transposição o que o fiel come ou não. Por exemplo, quando já foi abordado a “Feijoada de Ogum” e da relevância simbólica deste prato no ajeum ocorrido no Ilê. Mas sob a lógica da quizila, a feijoada servida a Ogum foi dividida em duas: uma contendo carne suína e outra com a dispensa de ingredientes advindos desta carne, uma vez que constitui quizila de Xangô, conforme reza o mito supramencionado. Isto porque há no Ilê três filhos desse Orixá. Mesmo a feijoada sendo para Ogum, se houvesse carne de porco os mesmos ficariam excluídos do ajeum. Contudo, a feijoada servida no assentamento de Ogum foi a completa, pois carne de porco não é quizila para esse Orixá e nem para seus filhos, sob a ótica do Ilê

As histórias mitológicas dos Orixás desencadeiam a história alimentar dos fiéis a partir da entrada deles para o Ilê e o Zambi-Iris. Como em cada terreiro contam-se mitos diferentes, as quizilas alimentares podem variar de terreiro para terreiro, seja entre os de Candomblé entre si, os de Umbanda/Quimbanda entre si, e, claro, entre os de Candomblé e Umbanda- Quimbanda. O que é ou não quizila também depende da maneira como é (re)contado o mito pelos pais e mães-de-santo. O que se percebe é que a quizila é relativa, pois haverá quantas quizilas quantos forem os mitos apreendidos.

Entretanto, a observação por parte dos médiuns, segundo Mametto e os líderes do Zambi-Iris, também é importante na determinação da quizila, pois a crença é que no dia a dia os Orixás se comunicam com os médiuns indicando sinais de quizilamento alimentar, tais como alergias, coceiras, beliscões, tonteira, dores estomacais, desarranjos intestinais, dores de cabeça, dificuldades de concentração, problemas financeiros, obsessão espiritual, atraso em todos os sentidos. Igualmente, as entidades podem indicar quizilas por meio da informação via incorporação, jogo de búzios (Ilê) e jogo de cartas (Zambi-Iris).

No Ilê e no Zambi-Iris as quizilas dos Orixás são as mesmas dos médiuns. Segundo Mametto em alguns terreiros há uma compreensão inversa, pois a comida do Orixá é a quizila do médium. Neste sentido, pode-se depreender que não comer o que o Orixá come é uma maneira de promover uma separação entre o que pertence aos homens e o que pertence aos deuses, compreendendo que o que é dos deuses é superior à vontade humana. Mas no Ilê e no Zambi-Iris vale a ideia de que quizila do Orixá é quizila do filho dele.

Partindo deste ponto de vista, a “contra-quizila”, por assim dizer, consiste em comer aquilo que o Orixá gosta. Desta forma, os filhos de Ogum devem comer feijoada, os de Oxum fradinho e dai por diante, os de Oxóssi, frutas, legumes e verduras. Mametto afirma que a quizila apresenta ainda uma particularidade: ela pode ser quebrada. Isto porque segundo ela todos os Orixás entendem as necessidades biológicas dos filhos em se alimentar e ter que comer alimentos diversos, ou ainda que nem sempre é possível abster-se de tudo, seja por educação (ter que recusar o alimento oferecido ao outro), questões econômicas ou por facilidade de acesso a determinados elementos. Contudo, ela pondera que é possível quebrar a quizila ao ingerir repetidas vezes a “comida quizila” e eliminar os “males físicos”, mas os malefícios espirituais e os “atrasos” decorrentes do quizilamento são inevitáveis. Assim, explica esta possibilidade aos seus filhos, deixando-os escolher, exceto em dias de preceito ou no caso de rituais específicos, como na camarinha, por exemplo.

Quanto à quebra da quizila, os adeptos do Zambi-Iris entendem que não é possível isto acontecer, uma vez que se o médium é afetado negativamente espiritualmente falando, a quizila ainda existe, pois o “ser espiritual” deve prevalecer sobre o “ser matéria”. Na lógica do Zambi- Iris quebrar a quizila é um subterfúgio para inserir na religião novas práticas, às vezes, rigorosas. Contudo, ressalta que no Zambi-Iris as questões de quizilamento alimentar não são levadas aos umbandistas enquanto uma responsabilidade ferrenha, mas sob a lógica do “livre arbítrio” e de “causa-consequência”, pois o ato de comer a quizila corresponde aos malefícios imanentes ao quizilamento alimentar.

No Ilê a quizila também serve para “castigar”, isto é, conhecendo-se o Orixá e quizila do inimigo é possível puni-lo, seja inserindo um ingrediente quizilador escondida e disfarçadamente numa comida e dando a ele para comer; passando a quizila no corpo ou numa representação do corpo do inimigo (boneco de cera ou de pano, por exemplo); arriando uma comida com quizila na porta ou próximo à casa do adversário. Esta prática, contudo, segundo Mametto deve ser evitada porque “quizila gera quizila.”, isto é, a quizila do outro, usada para afetá-lo, pode provocar a ira do Orixá que protege o inimigo quizilado. Por isso, é muito difícil ouvir algum médium falar das próprias quizilas, pois seria uma forma de mostrar fraqueza para o inimigo. De outro ângulo, a comida do médium está relacionada ao preceito. Santos (2014) aclara que quizila é uma restrição permanente e no preceito a restrição alimentar é temporária. O preceito possui duas funções básicas no Ilê: a primeira abster-se de algumas comidas (incluindo quizilas) para alcançar determinados objetivos, limpar-se espiritualmente, entrar em sintonia com o Orixá, realizar ritos de iniciação; e a segunda para punir o filho-de-santo desobediente.

O preceito na primeira função envolve, além de restrições alimentares, tudo aquilo que aumentaria a profanização: brigas, fofocas, sexo, álcool, cigarro. Ainda em relação à primeira função, entrar em preceito também evoca rezar, fazer ebós de limpeza, oferendar ao Orixá, comer a contra-quizila, etc., como forma de fortalecer o sagrado. Quanto à segunda função, o preceito impõe restrições alimentares partindo do ponto de vista mais secular do que religioso. Assim, no Ilê, o candomblecista em preceito [por desobediência] normalmente costuma ficar “proibido” de comer doces, guloseimas, carnes vermelhas, pratos favoritos dele, ingerir bebidas alcoólicas, fumar; além de ter que sacralizar o que come a todo o tempo rezando e oferecendo de tudo [observada a quizila] ao Orixá.

O preceito no Zambi-Iris não segue a ideia de castigo, apenas de fortalecimento e preparação tanto para os dias de gira, quanto em alguns rituais, a exemplo em casos em que se é necessário fazer oferendas para alcance de objetivos mais difíceis. No terreiro o preceito alimentar se assemelha à noção de jejum no Cristianismo, ou seja, é uma renúncia alimentar que faz prevalecer o espiritual em detrimento da matéria. Por isso, come-se menos, sem exageros e somente o necessário para a manutenção fisio-biológica do organismo de cada médium. Parte-se do princípio que enquanto médium ele saberá discernir e se comunicar com as entidades, as quais lhe repassarão os interditos ou o que inserir no cardápio, o que não significa renegar a orientação dos líderes do terreiro, mas a construção de um cardápio com sugestões mais coletivizadas e protagonizadas por deuses, filhos-de-orixás e pais-de-orixás.

O mais forte dos preceitos, todavia, é a realizada na camarinha.27 Nela a alimentação dos médiuns não é dos médiuns e sim dos Orixás donos dos oris. Há uma longa lista do cardápio do “não pode”: pimenta, amendoim, óleos, açúcar, temperos, refrigerantes, enlatados, defumados, carnes vermelhas, frituras, porco, alimentos que possuem cores mais escuras (chás, café), as quizilas do Orixá/médium. Por sua vez, o ovo, arroz, canjica, água e chás mais claros/calmantes são utilizados, pois se traduzem como noção respectivamente de: nascimento, prosperidade, saúde, fluidificação e serenidade:

Há uma longa e variável lista de interditos alimentares no candomblé; ao adepto iniciado são ensinados alguns destes, outros ele aprende com o tempo e a convivência no terreiro. Mas seu aprendizado é também descoberta das quizilas do seu santo individual (manifestação única e intransferível do orixá geral): alimentos que seu corpo passa a rejeitar, que lhe fazem mal, mas que não fazem parte da lista das quizilas conhecidas daquele orixá” (RABELO, 2013, p. 102).

Na “feitura de Santo” de um dos filhos-de-santo de Mametto, durante 21 dias, ele ficou recluso, com alimentação restrita, conforme mencionado acima. Além disso, usou um ilequê próprio do Orixá que o rege, no caso o Oxóssi, sendo o acessório retirado seis meses depois. Durante os seis meses o iniciado teve que se manter de preceito, incluindo as restrições alimentares. O talher utilizado para comer sempre foi o de madeira e outros utensílios do gênero devem ser evitados, como colher de metal, por exemplo. Embora depois dos seis meses, a rigidez dos preceitos tenha diminuído possa retomar a vida sexual, a fazer uso do cigarro e da bebida alcoólica, da carne, refrigerante, alguns alimentos estão interditados por toda a vida, como o mel e a tangerina, por exemplo, que como apresentado anteriormente é quizila de Oxóssi.

Outro fato importante a ser mencionado, é que enquanto o Ilê tem presenciado a predileção pelo álcool e pelo cigarro, no Zambi-Iris as bebidas apenas são utilizadas nos rituais e durante as incorporações, quando se destacam o vinho e a cachaça para Exus, Boiadeiros, Caboclos, Malandros, Ciganos e Baianos e espumantes para Pomba-Giras. A predileção é para outros elementos: o café, açafrão e para o óleo de coco.

O café além de servido para os Pretos-Velhos e para o Boiadeiro, é também muito consumido pelos umbandistas do Zambi-Iris. Diante disso, o uso do café no Zambi-Iris ocorre sob três perspectivas básicas: como energético para “aguentar” a rotina decorrente de atividades do terreiro, as quais são muitas e pesadas, algumas muitíssimo demoradas; para relembrar o gosto de algumas entidades pela bebida, pois sempre que se toma o café é comum falar sobre Pretos Velhos, Boiadeiros ou até sobre as traquinagens promovidas pelos Erês usando o café.

Desta maneira, o café no Zambi-Iris exprime também uma prática de comensalidade voltada para a manutenção da rotina religiosa umbandista no próprio contexto. O “café motivacional”, por assim se referir, embora seja servido mais concentrado e sem açúcar, normalmente sem nenhum acompanhamento (pães, biscoitos, bolos, etc.), é seguido do sentimento de pertencimento ao terreiro, uma bebida que é capaz de unir os umbandistas do Zambi-Iris e no ato de beber, conversar, trocar experiências e confidências.

No Zambi-Iris em muitos pratos preparados para se servir no terreiro se usa o óleo de coco e o açafrão. Há uma explicação teológica para isso. O açafrão é um tempero tubérculo. Há nele, um odor específico, que lembra o “cheiro de terra”. No terreiro ele é usado com um “culto ao chão”, tanto pela cor, pelo cheiro e pela maneira como é cultivado. Como culto ao chão, é associado à figura de Obaluaiê, Orixá dono do chão e da cura. No Zambi-Iris o açafrão, além de ser usado como tempero na comida para os médiuns, é inserido em banhos de descarrego, em oferendas e em outros rituais, a exemplo do “escalda pé”, espécie de banho de descarrego utilizado para limpar energeticamente especificamente aos pés, cuja essência é uma mistura de água, sal grosso, açafrão, milho de pipoca cru e caroços de feijão preto.

Enquanto o açafrão é usado como “culto ao chão”, o óleo de coco é usado por relembrar, a Bahia, uma espécie de “Terra Mãe” das religiões afro-ameríndio-euro-brasileiras; as principais entidades de direita em cujas oferendas sempre têm coco ou derivados dele; ou ainda o Orixá Oxóssi, um dos primeiros a ser cultuados no terreiro. Por sua vez, Carneiro (2003) denomina de “alimentos-droga”, por terem sido utilizados inicialmente como remédios, os alimentos tais como o álcool, açúcar, chocolate, café e chás, os quais, segundo ele, foram responsáveis por consumar alguns hábitos alimentares no mundo moderno. Esses alimentos se expandiram consideravelmente ao gosto do homem moderno, que os incorporou uma dimensão cultural e econômica.

Deste jeito, novos significados foram atribuídos aos alimentos-droga, como estimulantes, afrodisíacos, associação às práticas religiosas, como o é no Ilê, no caso do cigarro e do álcool, ou do Zambi-Iris, com o café.

Considerações Finais

Foi possível verificar que nas religiões Candomblé, Umbanda e Quimbanda, o homem religioso integra a uma totalidade dos fatos sociais ao expressar especificidades na maneira de falar, vestir, relacionar-se com o outro e, sobremaneira, nas particularidades que vivencia para com a comida, tanto na ofertadas nos rituais, quanto na que ingere ou deixa de ingerir. Mas, por serem totais, os fatos não podem ater somente às particularidades religiosas ou econômicas, de um grupo social, por exemplo. Portanto, as especificidades do “comer” e “dar de comer” naquelas religiões não podem ser entendidas enquanto a totalidade dos fatos, mas um elemento que contribui para a totalização no contexto onde os seus adeptos se inserem, seja adotando hierofanias, transterritorializando ou levando à mesa uma comida matizada pela fé.

A totalidade dos fatos sociais foi apresentada como uma lógica que opera por unicidade, mas esta unicidade é gerada por embates, dissidências e duelos que modelam e remodelam as práticas existenciais de uma sociedade. Esses elementos paradoxais e complementares se ressignificam na prática candomblecista, umbandista e quimbandeira por meio de oferendas contendo comidas que se acredita poderem ao mesmo tempo: trazer a união entre amigos, mas provocar conflitos para e com os inimigos; promover a paz ou a guerra, ganhar ou fazer perder, presentear para agradar ou para destruir, “adoçar” ou “amargar”, juntar ou separar.

Foi observado que a cozinha do Ilê é o motor do Candomblé, por meio dela se dinamizará todos os setores do Ilê. Ela se materializa como um espaço heterofônico que permite a troca simbólica entre seres espirituais e seres humanos, onde se concretiza o produto final da oferenda. No processo de cozinhar, os Orixás, entidades de direita e esquerda, são cultuados. O ato representa de certa forma a reterritorialização da África. Através da comida dos Orixás se mantém a história do continente, misturado com hibridismo cultural brasileiro. A cozinha do Ilê representa um sentimento de solidariedade não só para com o Orixá, mas também para com o antepassado e a “família de Santo”, pois foi nesse espaço que ele aprendeu a cozinhar para as divindades. De certa maneira, os produtos e subprodutos da cozinha do Ilê são como uma lente para entender vários aspectos da vida dos que oferendam.

A singularidade do culto dos umbandistas do Zambi-Iris não se limita aos Orixás, pois também se destacam as especificidades do culto às entidades de direita e de esquerda. A direita com a linha de espíritos evoluídos que constituem uma representação de arquétipos do Brasil. A comida dos Boiadeiros, por exemplo, que relembra o alimento derivados de bovinos, tais como leite, queijo e carne. O modelo de alimentação é característico do espaço rural, engloba a rapadura, a farofa, a galinha caipira, o fruto do mato. Já na esquerda se agrupa espíritos ligados à liberdade, autonomia, capacidade de mudança, transgressão de ordens preestabelecidas. Os Exus e as Pomba-Giras, constituem a força vital da sexualidade e das emoções e paixões humanas. Entidades solicitados para “tarefas mais pesadas”, aquelas relacionadas a vencer inimigo, auto superação, prosperidade, abrir caminhos, curar. A encruzilhada foi apresentada como exemplo de representações de Exu, espaço onde precisa decidir se vai ou fica, para qual caminho deseja seguir. A comida ofertada na encruzilhada é um mecanismo motivador para a “tomada de decisão”. O preparo é antecedido por preceitos, tais como abstinência da prática sexual, diminuição na quantidade de alimentos ingeridos pelo médium durante o dia.

A pesquisa revelou que o bori, assim como toda comida no Ilê, é uma prática pedagógica, pois a comida sempre tem o efeito de educar o candomblecista. Educar na perspectiva de incutir valores, eliminar comportamentos indesejados, firmar ideias, ensinar a como lidar diante das várias situações e contextos, saber tratar o Orixá, pois este lhe é superior e rege a vida; aprender a incorporar o Orixá! A comida do Orixá, desta forma produz/reproduz o “axé da educação”, pois desde uma primeira ida ao Ilê já se aprende que lá é lugar de dar de comer ao Orixá para receber o axé que dele emana. Nesta perspectiva, dar de comer ao bori é educar o espírito, a cabeça, as emoções e as respectivas ações decorrentes do (re)equilíbrio destes elementos do candomblecista.

A comida faz presente na vida intra e extra-terreiro dos médiuns. A fé nos Orixás e nas demais entidades institui tabus, restrições e indicações alimentares de acordo com toda a mística desenvolvida em cada um destes terreiros. Verdadeiros cardápios são construídos consoantes à ideia de que os médiuns são filhos de determinados Orixás, os quais possuem as quizilas alimentares; durante os ritos iniciáticos o médium se alimenta especificamente, observando interditos e comidas indicadas; as festas e ajeuns exploram uma variedade de comidas, as quais variam desde as comidas servidas às entidades até a presença de comidas mais secularizadas.

No Zambi-Iris o quizilamento não é entendido sob a mesma ótica do Ilê, pois a proposta de renovação da Umbanda encetada por eles tem levado a um novo entendimento da relação quizilamento versus comida versus “trabalho feito”: o Orixá tem a condição de proteger o médium contra interferências com quizilamento se isto parte de ação externa. O que ele cobra é a obediência do seu filho.

Por fim, a comida representa uma das importantes faces dessas religiões. No Ilê e no Zambi-Iris, o conjunto de práticas ritualísticas alimentares não pode ser visto como expressão do exotismo sincretismo religioso brasileiro. Parece ocorrer nos casos estudados, uma moralidade enviesada pela lógica religiosa, isto é, não está se consumindo por consumir, há uma especificidade que justifica o consumir não só para si, mas para os deuses.

Referências

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CAPÍTULO 4

JUVENTUDE RURAL DO ALTO RIO PARDO: REPRODUÇÃO SOCIAL CAMPONESA NO NORTE DE MINAS GERAIS28

Erika Fernanda Pereira de Souza
José Paulo Pietrafesa

O debate sobre a juventude enquanto categoria social se desenvolve com a reflexão da condição juvenil na sociedade, a inserção social do jovem sob a luz de aspectos econômicos, políticos, considerando a escolaridade e inclusão no mundo do trabalho na sociedade capitalista. Com a ressignificação das condições de vida pelo modo de produção capitalista, a modernidade tem historicamente se constituído repleta de incertezas, com aceleradas transformações que afetam diretamente a condição e atuação da juventude na sociedade (BERMAN, 1986; SPOSITO, 2001; CARNEIRO, 2011).

De modo geral, a juventude vivencia desafios similares em contextos diversos, mesmo considerando essas particularidades, estão historicamente sob a égide do capitalismo – nos desafios e desigualdades promovidas – buscando a reprodução de suas condições de existência. O Diagnóstico da Juventude Rural apresentou dados da pesquisa “Tendências Globais de Emprego para a Juventude”, realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e aponta que “[...] o desemprego entre os jovens no Brasil, no final de 2017, atingiu a maior taxa em 27 anos, com 30% das pessoas de 15 a 24 anos em busca de uma ocupação”, sendo a taxa brasileira maior que o dobro do índice mundial de 13,1% (BRASIL, 2018, p.33).

Cabe ressaltar que a juventude enquanto categoria social é composta de grande heterogeneidade. O debate sobre a juventude rural costuma ocupar pouco espaço na pesquisa científica, muitas vezes sendo apresentada como antecipação da vida adulta, ou retratando o jovem apenas como “aprendiz de agricultor” ou “membro da equipe de trabalho familiar”. Um fértil debate sobre essa questão está presente em Carneiro (1998), Silva (2004), Sposito (2009), Carneiro (2011), Castro (2013), Weisheimer (2015) e Freitas e Santos (2015).

Essa invisibilidade impossibilita a reflexão sobre os dilemas e desafios comuns e específicos e está intrinsecamente vinculada à negação de direitos e a marginalização do campo enquanto lugar de vida (CARNEIRO, 2011; WEISHEIMER, 2015).

Weisheimer (2007; 2009) e Martins (1975) apontaram para a socialização geracional enquanto processo de trabalho e aprendizagem de valores, construção e tomada de papéis. Ademais, desde a adolescência já está presente o aprendizado de funções, hierarquia e tarefas, com o aprendizado e inserção na lógica de trabalho e produção através de um “[...] processo de inserção social, familiar, que consolida a identidade adaptada ao lugar cultural” (STROPASOLAS, 2006, p. 210). Este processo de trabalho é pautado na reciprocidade e objetiva a reprodução social do grupo familiar, sem a exploração, obtenção de mais-valia e acúmulo de capital (WEISHEIMER, 2007).

O debate sobre juventude rural requer, para além de refletir sobre a juventude enquanto categoria forjada socialmente, pensar sobre o mundo rural e suas condições na superação do imaginário de lugar atrasado e estático, superando a oposição entre campo e cidade, para enfim vislumbrá-lo enquanto lugar em movimento, heterogêneo, diverso, no qual múltiplas atividades podem ser desenvolvidas, inclusive nas relações de dependência recíproca e vínculos com o meio urbano (CARNEIRO, 2011).

As percepções sobre a juventude do campo por vezes se expressam de forma superficial e estereotipada. De modo geral o senso comum costuma tecer uma crítica ao jovem camponês do presente considerando a figura idealizada do passado, sujeito supostamente imutável perante os adventos da modernidade, as mídias, novas tecnologias e contexto de sua geração.

Ainda se reproduz a ideia superficial de que os jovens não desejam permanecer no campo, sendo que essa realidade precisa ser problematizada considerando sua permanência ou vínculo enquanto condições construídas historicamente no bojo das relações sociais do modo de produção capitalista.

A pesquisa “Perfil da Juventude Brasileira” apresentada por Carneiro (2011), possibilita a reflexão sobre as condições de permanência no campo, elencados principalmente no que cabe ao acesso à educação, emprego, cultura, lazer e ampliação das oportunidades no mercado de trabalho. Os jovens ouvidos nessa pesquisa ainda creditavam ao acesso à educação como oportunidade de superação da condição de agricultor e os vínculos de trabalho precário no campo, sinalizando que a “[...] reprodução social não é satisfatoriamente garantida pela atividade agrícola” (CARNEIRO, 2011). Contudo, o desejo de não desfazer os vínculos com o campo ainda persiste, pois

Alcançar uma profissionalização e retornar ao município de origem é um ideal compartilhado por muitos jovens que, atualmente, não vislumbram um rompimento definitivo com a localidade de origem, mas a possibilidade de combinar os dois mundos: a realização de um projeto próprio e a segurança (afetiva) oferecida pelos laços familiares (CARNEIRO, 2011, p. 260).

Ampliar as possibilidades de atuação dos jovens no concernente à sua inserção social, econômica e profissional é um grande desafio para a reprodução social dos do meio rural e consequentemente para a qualidade de vida no campo.

Citando um levantamento feito pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2003, Frigotto (2004) apontou que 62% dos jovens ouvidos gostariam de permanecer no campo estudando áreas relativas à sua realidade. Em contrapartida, grande número desses deslocam- se para o meio urbano. Dentre estes, 28,5% justificam o êxodo em razão da inserção no mundo do trabalho, 26,5% creditam ao acesso à escola, outros 26,5% por envolvimento nas duas atividades de forma concomitante e os outros 17,5% apontaram outras razões. Este autor já apontava para a necessidade de políticas públicas que contemplem os filhos dos trabalhadores do campo em suas particularidades, considerando a condição estrutural histórica brasileira, além da divisão de classes, fomentando as já conhecidas altas taxas de abandono escolar.

A emancipação e desenvolvimento dos sujeitos não ocorrerá no plano das ideias, posto que, a produção da vida, dando-se a partir das condições materiais e históricas diretas decorrentes do trabalho e suas relações não é uma conquista do mero pensamento, no campo do universo abstrato. A produção da vida é forjada nas relações sociais, no modo de produção determinado, são as forças produtivas responsáveis também pela produção do estado social tal como ele existe. Como é a vida que determina a consciência, não o contrário, a disputa está no campo da produção da vida, em como os seres materializam sua existência e tomam as rédeas da sua vida e consequentemente da história (MARX e ENGELS, 2007).

A inserção social, produtiva e profissional dos egressos da EFA Nova Esperança: possibilidades e desafios

O trabalho de campo se debruçou sobre a atuação do jovem egresso da Escola Família Agrícola (EFA) Nova Esperança, situada no município de Taiobeiras – MG e que se materializou enquanto escola comunitária enquanto conquista dos trabalhadores rurais organizados no Território Alto Rio Pardo – MG. Foram feitas entrevistas semiestruturadas com 50 egressos dentre o universo de 132 jovens já concluintes do curso de ensino médio integrado ao técnico profissionalizante em agropecuária na Escola Família Agrícola Nova Esperança até o ano de 2017 e residentes em 5 municípios do território Alto Rio Pardo no Norte de Minas Gerais. Neste processo foi possível estimar as possibilidades e desafios dos jovens egressos a partir da formação na EFA, considerando a sua reprodução social de acordo com a inserção produtiva, social e profissional destes sujeitos.

Dentre os 132 jovens egressos, 68% são homens e 32% mulheres. A proporção obtida entre os entrevistados é de 66% e 34%, entre homens e mulheres, respectivamente. Os egressos entrevistados possuem entre 18 e 26 anos e concluíram a formação na EFA entre os anos de 2014 a 2017.

Foi possível mensurar a importância da rede de parceiros que envolve a EFA considerando os meios pelos quais obtiveram contato com a escola. Foram mencionados os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, parentes e amigos, ex-alunos e as associações comunitárias.

Essa relação com a sociedade civil organizada é fundamental pois remete à raiz histórica da Educação do Campo. Esta integração com a escola é necessária na construção do planejamento e organização do projeto formativo. Neste sentido, cabe ressaltar que a Educação do Campo assume uma postura política na sociedade, nascendo da experiência classista dos trabalhadores do campo organizados e

[...] inicia sua atuação a partir da radicalidade pedagógica dos Movimentos Sociais e entra no terreno movediço das Políticas Públicas, da relação com um Estado comprometido com um projeto de sociedade que ela combate, se coerente for com sua materialidade e vínculo de classe de origem. Sim, a Educação do Campo tem se centrado na escola e luta para que a concepção de educação que orienta suas práticas se descentre da escola, não fique refém de sua lógica constitutiva, exatamente para poder ir bem além dela como projeto educativo. E uma vez mais, sim, a Educação do Campo se coloca na luta pelo acesso dos trabalhadores ao conhecimento produzido na sociedade e, ao mesmo tempo, problematiza, faz a crítica ao modo de conhecimento dominante e à hierarquização epistemológica própria dessa sociedade que deslegitima os protagonistas originários da Educação do Campo como produtores de conhecimento e que resiste a construir referências próprias para a solução de problemas de uma outra lógica de produção e de trabalho que não seja a do trabalho produtivo para o capital (CALDART, 2010, p. 105).

Os Movimentos Sociais em sua radicalidade e protagonismo na Educação do Campo, adentram a escola, interrogam velhas práticas, questionam seus muros, ampliam seus horizontes, trazem suas pautas e saberes para a construção de um projeto educativo humanizador. Tal processo só é possível se estiver vinculado à luta pela terra, às relações de trabalho, produção, democratização da cultura, dentre outras matrizes formativas amplas que precisam integrar-se à ação educativa na escola. Ao serem incorporados ao movimento da escola, os trabalhadores do campo organizados trazem um desafio genuíno à formação.

O território Alto Rio Pardo apresenta bons índices de atuação dos sujeitos do campo em sindicatos, cooperativas e associações comunitárias, inclusive, destaca-se a influência da família e amigos com esse vínculo social no incentivo aos jovens para que iniciem os estudos na EFA. A relação dialética entre essas entidades e a EFA Nova Esperança contribui para o desenvolvimento de ambos, bem como o avanço coletivo em prol do projeto de sociedade almejado.

O interesse em estudar na EFA também foi mensurado, considerando que um projeto formativo contra-hegemônico está necessariamente articulado “[...] a um projeto político de transformação social liderado pela classe trabalhadora, o que exige a formação integral dos trabalhadores do campo[...]” (MOLINA e FREITAS, 2011, p. 24). Daí a importância de os jovens identificarem seus anseios e interesses na Pedagogia da Alternância29 e numa formação integrada, também vinculada ao trabalho, um ensino contextualizado às matrizes formativas humanizantes. Destaca-se a organização do curso de forma integrada, confluindo uma formação do ensino médio e o curso técnico profissionalizante em agropecuária, o que também está vinculada ao interesse pelo trabalho no campo contemplado pela proposta formativa da escola.

A questão do interesse do jovem pela educação assombra os estudos na área, posto que, segundo o senso comum, essa parcela da população, principalmente aqueles que vivem no campo, não se interessariam pelos estudos.

Em pesquisa citada por Carneiro (2011), a Educação é um dos três assuntos que mais despertam o interesse do jovem rural e para 22 % é o tema que figura em primeiro lugar. Para essa mesma autora, a escolarização é peça fundamental para a realização dos projetos da juventude. Mesmo resguardadas as justas críticas à lógica da empregabilidade mediante a relação entre educação e desenvolvimento e aos problemas no processo ensino-aprendizagem, a escola ainda é um lugar privilegiado e estratégico na sociedade.

Silva (2004) ainda apresentou os diversos problemas enfrentados pelos jovens do campo para permanecerem na escola, como: falta de educação contextualizada, distâncias geográficas, conflito com sua condição de trabalhador. Tais desafios culminam em dificuldades de aprendizagem, repetência, situações vexatórias e evasão escolar. Mesmo assim, para os jovens desse estudo a escola é tida como boa ou excelente e destaca-se o gosto em aprender, desconstruindo o mito da falta de interesse.

O processo de socialização dos jovens do campo não pode ser entendido fora das relações de trabalho e produção. O anseio por uma educação contextualizada, de acordo com a sua condição de filho de agricultor, sujeito dos saberes agrícolas e sua necessidade de enfrentar os desafios de produção no campo representam um grande atrativo desse modelo de escolarização. Essa escola que busca “ressignificar os valores da subordinação do trabalho ao capital, ou seja, ter o trabalho como um valor central – tanto no sentido ontológico, quanto no sentido produtivo –, enquanto atividade criativa pela qual o ser humano cria, dá sentido e sustenta a vida” dialoga com as necessidades do jovem do campo em busca de sua formação e reprodução social (MOLINA e FREITAS, 2011, p. 26).

Por vezes o trabalho familiar agrícola está em confronto com a escola através do tempo de dedicação a uma ou a outra ocupação, geralmente sendo o trabalho um obstáculo para frequência e dedicação aos estudos. De modo geral ainda há escassa oferta de educação profissional de nível técnico para os filhos dos trabalhadores do campo, fator que, em conjunto ao processo tradicional de educação formal “[...] revela-se distante das tarefas cotidianas dos jovens agricultores, e, não raramente, se opõe aos valores da família e da racionalidade do trabalho familiar agrícola” (WEISHEIMER, 2009, p. 204).

Na pesquisa de campo se verificou que no caso das EFAs a oferta de ensino médio integrado ao técnico em agropecuária através da Pedagogia da Alternância tem sido um grande atrativo para os jovens, inclusive enquanto contraposição do panorama anteriormente citado, sendo esse modelo um importante aliado na integração entre escolarização e trabalho, possibilitando ainda a conclusão do ensino médio, o qual segundo alguns jovens, dificilmente poderia ser acessado através do ensino formal tradicional.

Estudar na EFA é visto como uma possibilidade de permanência no campo, além de responder ao apelo pela falta de uma escola vinculada ao trabalho e à realidade dos sujeitos do campo, na condição de jovens trabalhadores buscando uma formação que não expressa o conflito e tensão entre educação e trabalho, mas na qual se aliam para compor uma ousada proposta educativa.

Em relação à experiência enquanto educando, os relatos são de intenso aprendizado, principalmente em questões práticas, em vivências, possibilidade de conhecer pessoas, lidar com problemas e desafios da convivência. Os relatos ressaltam a mudança significativa na vida dos alunos. Destaca-se o êxodo rural na região através da grande massa de trabalhadores safristas que se encaminham sazonalmente para as lavouras do sul de MG e interior de São Paulo, esvaziam as comunidades enfraquecendo a organização social, dificultando a mobilização, ação coletiva e desenvolvimento local. Em contrapartida, tem-se a retomada dos estudos e as mudanças promovidas no modo de vida decorrentes da formação na EFA.

Os jovens ressaltam a importância da formação para a socialização de saberes e conhecimentos relativos à produção e desafios de reprodução social na agricultura e no território, bem como a influência desse processo educativo em suas vivências, experiências e melhor possibilidade de colocar-se socialmente em defesa de seus direitos e atendimento às suas necessidades. Ainda destacam a importância da formação humana e integral desenvolvida na EFA. A estrutura de internato, a forma como a prática pedagógica é pensada e organizada, promovendo a formação crítica dos jovens e contribui para o desenvolvimento das habilidades para interação, convivência e engajamento social.

Juventude rural, mundo do trabalho e mobilidades

Dados do IBGE (2018) apontaram para o crescente aumento da desocupação, informalidade e condições de trabalho desfavoráveis. O mundo do trabalho de forma geral e o mercado de trabalho são constituídos em um processo histórico marcado por desigualdades, precarização, dificuldade de acesso e baixa remuneração.

Em relação ao trabalho vinculado à agropecuária, as políticas públicas referentes ao acesso à terra, financiamentos de projetos de agricultura camponesa e questão agrária de modo geral, as quais poderiam contribuir para a mudança desse quadro, são deficientes, escassas e insuficientes. Dificuldades materiais, crise hídrica e desafios de produção e comercialização fomentam essa condição que está engendrada ao fortalecimento dos empreendimentos de agronegócio, cuja destinação de investimento público é historicamente favorável, criando uma conjuntura adversa para a permanência do jovem no campo, além de promover a exploração da força de trabalho jovem através, inclusive, da contratação precária da mão de obra por migração sazonal (COVER e CERIOLI, 2015; FREITAS e SANTOS, 2015).

Em outras pesquisas os jovens apontam de forma velada ou direta os desafios do trabalho agrícola, principalmente relativos ao baixo rendimento, estigma e falta de prestígio na sociedade, falta de autonomia e penosidade do trabalho. Por sua vez, o trabalho não-agrícola é visto por uma parcela dos jovens como “mais leve”, “com direito a descanso nos fins de semana” e com a vantagem de um salário fixo mensal, mas também com certo receio devido aos índices de desemprego, além da instabilidade e difícil contratação (WEISHEIMER ,2009).

Entre os jovens egressos foi constatada uma variedade de tipos de ocupação. As atividades mencionadas superam o número de entrevistados devido ao exercício de pluriatividade30 de muitos deles, por exemplo ao relatarem o trabalho na propriedade familiar combinado à continuidade dos estudos, ou ainda, um vínculo de trabalho comercial na sede do pequeno município intercalado com o trabalho na unidade produtiva. Destacadamente, 46% exercem atividade agrícola na propriedade familiar, seja de forma exclusiva ou combinada alguma outra ocupação, contribuindo para o desenvolvimento do território e resistindo no campo.

Dentre os jovens entrevistados, 30% afirmou ter dado continuidade aos estudos, 18% são trabalhadores do comércio nos próprios municípios do território. Ainda foi constatado um grupo que atua na prestação de serviço informal no sul do estado ou em São Paulo (6%), outros 6% trabalhando em indústria e comércio vinculado ao agronegócio em São Paulo e outros 6% migrando sazonalmente e trabalhando na propriedade familiar de forma combinada. Alguns deles ainda fazem parte do quadro de trabalhadores do monocultivo de eucalipto na região (4%), ou atuando como técnicos agrícolas em empresas ou ONGs (4%) e ainda como monitores de EFAs (4%).

Considerando a intencionalidade do projeto formativo para os filhos dos trabalhadores rurais desempenhado pela EFA, É necessário um trabalho mais aprofundado para problematizar essa suposta contradição expressa na inserção dos egressos no mercado de trabalho, já que o sujeito, confrontado com o acirramento das condições de reprodução social enquanto camponês, precisa encontrar outros meios de renda e sobrevivência, vendendo sua força de trabalho para empregadores e empreendimentos que representam um projeto de sociedade convergente à proposta formativa construída na Educação do Campo e na Escola Família Agrícola.

Os jovens egressos estão imersos no pelo mundo do trabalho, no qual mesmo desenvolvendo um trabalho agrícola não caracterizado como capitalista, estão, nessa condição, fatalmente inseridos em tal modo de produção em suas relações sociais, processo de socialização, aprendizagem de valores e ética, inevitavelmente envoltas nesse contexto (WEISHEIMER, 2009; WANDERLEY, 2009).

Além das dificuldades no acesso à educação, terra e condições para geração de renda que propicie a reprodução dos jovens e constituição de suas próprias famílias, o núcleo familiar em sua hierarquia muitas vezes não oferece uma remuneração de acordo com a expectativa do jovem, dificultando sua permanência no campo, como colocado por Cover e Cerioli (2015).

Stropasolas (2007) já havia apresentado o desencantamento dos jovens rurais com a cidade e o desejo por alternativas que os possibilitem ficar no campo e usufruir dos atrativos da vida rural através da valorização do lugar, de suas possibilidades e de si mesmos. Para esse autor, essas novas concepções e abordagens são fundamentais enquanto parte da estratégia para pensar o desenvolvimento no campo. Nessa direção, constata-se que

As dificuldades enfrentadas nos centros urbanos por um jovem de origem rural, com qualificação profissional e nível educacional normalmente mais baixos que os da cidade, a inexistência de uma rede de parentela de apoio, a obrigação de pagar caro pela moradia, pelo transporte e pela alimentação, têm levado os jovens a “descobrirem” que podem ter um padrão de vida bem satisfatório no campo onde contam com um conjunto de facilidades inexistentes na cidade, sobretudo a da moradia (CARNEIRO, 1998, p. 113).

Para Wanderley (2009), a proletarização do trabalhador rural além de reforçar a já anunciada contradição entre capital e trabalho, demonstra a importância estratégica da propriedade da terra. A modernização da agricultura teve consequências negativas como pobreza, concentração de renda, exclusão social. Para ela, a modernização da agricultura em busca de autossuficiência de alimentos a partir de um modelo de eficiência produtivista, sistema intensivo de produção e integração à economia de mercado global em sua complexidade, gerou consequências drásticas e “[...] mais do que efeitos colaterais, as tensões geradas pela modernização expressam os limites estruturais deste processo, na forma como ele ocorreu no Brasil” (WANDERLEY, 2009, p.64).

Em alguns casos a dupla ou tripla ocupação dos jovens se dá através de uma relação indissociável entre as modalidades, com forte vinculação, por exemplo, entre a produção familiar e a condição de estudante de cursos de graduação com debate sobre o campo, como a Licenciatura em Educação do Campo, Agronomia e Engenharia Florestal. Ainda foram mencionadas graduações em andamento em Química, Pedagogia e Ciências Contábeis através de instituições de ensino superior como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Universidade Federal do Triangulo Mineiro (UFTM), Institutos Federais de Educação, dentre outros.

Boa parte dos jovens egressos buscam cursar o ensino superior e retornar aos seus municípios de origem para atuar profissionalmente, inclusive com a formação acadêmica voltada para os desafios enfrentados no campo (STROPASOLAS, 2006; CARNEIRO, 2011). Ainda é possível inferir que almejam à permanência no campo cientes dos desafios que a realidade impõe, mas

[…] não vislumbram mais um rompimento definitivo com o universo cultural de origem, mas a possibilidade de combinar os dois mundos: a realização de um projeto próprio e a segurança (afetiva e econômica) oferecida pelos laços familiares, valorizados por todos os jovens entrevistados de ambas as comunidades estudadas. Para eles, seria a possibilidade de conjugar o melhor dos dois mundos: a “tradição” - representada pela família, altamente valorizada como universo afetivo além de expressão e condição do pertencimento à localidade e à cultura de origem - e a “modernidade”, que se traduz na realização de um projeto profissional individualizante, autônomo, representado na figura de um profissional liberal ou de um pequeno empresário (CARNEIRO, 1998, p. 111).

É uma estratégia de “sair para permanecer”, posto que esses não anseiam um afastamento e consequente ruptura com o campo, mas desejam retornar para suas comunidades, serem bem sucedidos em seus projetos de vida e contribuir com o desenvolvimento do seu lugar de moradia, contribuindo para uma nova reconfiguração do rural e fomento da sociabilidade atrativa do campo.

Os egressos das EFAs, devido a sua proposta de formação para o trabalho, desenvolvem um projeto durante o curso que é fundamental enquanto estratégia de inserção produtiva e profissional. O chamado PPJ – projeto profissional do jovem – é uma mediação que compõe a Pedagogia da Alternância e propõe o desenvolvimento da forma pela qual ele pretende adquirir renda que garanta sua reprodução social (QUEIROZ, 2004; FREITAS E SANTOS, 2015).

Os projetos dos jovens estão sendo desenvolvidos na região Norte-mineira e abrangem o cultivo agrícola com produção animal e vegetal, sendo citados a avicultura, suinocultura, silagem, cultivo culturas como a banana, o maracujá do cerrado, abacaxi, verduras, feijão, abóbora, hortaliças e mandioca.

Contudo, quase metade dos entrevistados (48%) não colocaram seus PPJs em prática. Alguns desses por outras escolhas profissionais ou continuidade dos estudos e residência em outro município. Mas, foram relatadas inúmeras dificuldades para o desenvolvimento do projeto, havendo desistências ou aplicação parcial. Da parcela que conseguiu efetivar o PPJ em suas propriedades, há relatos de jovens produzindo, agregando sua renda à família ou já atuando de forma independente.

Foi possível verificar que os egressos consideram a importância da formação profissional para enfrentamento dos desafios no território, mas a culminância deste processo está estruturada e submetida às condições concretas de reprodução social e seus desafios na região e no campo de forma geral. Foram constatadas dificuldades em relação a questão hídrica, falta de políticas públicas de apoio e financiamento para produção e comercialização, impossibilidade de investimento próprio, e questões na ordem do êxodo rural e migração sazonal, que por sua vez, funcionam como estratégias aos desafios de reprodução social local.

Cabe ressaltar que as EFAs, tendo como um dos pilares o desenvolvimento do meio, precisam atuar de forma integrada “[...] a partir de um somatório de esforços e planejamento entre as diversas forças sociais e políticas da localidade e região, cada uma com seu papel e sua especificidade” (FREITAS e SANTOS, 2015, p. 178) a fim de que tal articulação contribua para a superação de dificuldades das famílias do campo.

Historicamente existe uma distinção entre campo como lugar de atraso e a cidade enquanto espaço privilegiado do progresso e o jovem em seu processo de socialização pode aderir a esse pressuposto, sendo a escola também parte de um conjunto de mecanismos e estratégias que exercem essa sedução e culminam no desenraizamento e construção do desejo de sair do campo.

A EFA vem desenvolvendo um trabalho de formação contextualizado com a intenção de fortalecer a aspiração pela permanência no campo. Além disso a oferta do ensino médio integrado ao técnico em agropecuária busca promover a qualificação dos saberes para a convivência com o semiárido e o enfrentamento das condições de produção adversas no território. Contudo, as EFAs precisam estar integradas a uma rede de sujeitos sociais que atuem nessa linha de frente, não apenas no que tange à formação dos jovens, mas na construção de condições materiais de existência no campo. Neste sentido,

Um projeto de escola, mesmo que seja uma proposta pedagógica saída de dentro dos movimentos sociais populares rurais/do campo, não resolve a questão da terra. Terra e escola estão indiscutivelmente imbricadas na constituição do que os movimentos sociais populares identificam, com o sentido de unidade política e da historicidade, como camponês (RIBEIRO, 2010, p.195).

Por isso, a escola não pode ser vista como uma instituição redentora, a qual detém o poder de reverter as mazelas sociais, mas, como destacado por Freire (2010, p.31) “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Para a composição e fortalecimento dessa rede de parceiros da qual a EFA é integrante fundamental, é importante que os jovens participem de organizações que promovam o debate e atuação coletiva na sociedade. Neste sentido, também foi investigado se os jovens, após a conclusão do curso, procuram ocupar espaços de reivindicação social, construção, fortalecimento da democracia e luta por direitos. Dentre os entrevistados, 48% declararam atuação em movimentos sociais, sindicatos, cooperativas e ou organizações na comunidade, sendo que, desses, há jovens com inserção dupla, tripla ou em quatro das opções mencionadas.

A parcela não atuante corresponde a 46% do total, além de 6% que preferiram não responder quando questionados sobre a inserção social. O índice de atuação é superior à média nacional que corresponde a 39% da atuação em relação à direção dos estabelecimentos agropecuários, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, mas inferior à média do território, o qual atingiu os elevados níveis de 76% (IBGE, 2017).

A associação comunitária aparece enquanto maior aglutinador para atuação política- social dos jovens egressos, com participação de 20% dos entrevistados. Muitos deles mesmo atuando profissionalmente na sede dos pequenos municípios considerados urbanos, residem nas comunidades e são presentes nas atividades e debates das associações. Os Sindicatos dos trabalhadores rurais também são citados (16%) como um dos principais meios de atuação social.

Os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais também são citados pelos jovens como um dos principais meios de atuação social (16%), lembrando que os mesmos já foram apresentados também como um dos principais parceiros da EFA para o fortalecimento da educação do campo e na busca por melhores condições de vida no meio rural.

Para Queiroz (2004, p. 130), “[...] as EFAs, além da formação escolar e técnica, estão contribuindo para a formação social, política dos jovens e que a experiência do trabalho em equipe contribuiu fortemente para a formação dos jovens e que eles continuam a vivenciar esta dimensão”. As EFAs possuem uma clara intencionalidade de formação política, crescendo e atuando integrada aos movimentos sociais.

O fomento ao convívio coletivo através do funcionamento em internato, a estrutura e os debates sobre a importância da organização social na EFA têm contribuído para a atuação social dos jovens em movimentos sociais, cooperativas, sindicatos e organizações comunitárias, bem como apresentado na pesquisa de Queiroz e Silva (2008), com atuações também no Movimento Geraizeiro, no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), ONGs, pastorais e grupos de jovens e projetos sociais.

Neste sentido, “[...] as relações de sociabilidade, interconhecimento, confiança e cooperação gerados pelos grupos sociais podem se constituir num fator essencial para o sucesso das iniciativas e experiências de desenvolvimento”, ou seja, a ação coletiva organizada em relação com o poder público “podem realizar uma intervenção efetiva nos mecanismos que provocam o esvaziamento demográfico, econômico, cultural e político das regiões de predomínio da agricultura familiar (STROPASOLAS, 2006, p.317). Inclusive, muitos deles anteriormente atuantes, deixaram de participar por conta da condição de migrantes ou pela mudança para a sede de outros municípios. O esvaziamento das comunidades enfraquece a organização social, dificultando a mobilização e ação coletiva.

Historicamente, as políticas públicas têm atuado para o fortalecimento do agronegócio, concentração de terra, acirramento das condições de vida e êxodo rural, como apontaram Cover e Cerioli (2015). O desafio também se coloca na construção de políticas públicas para a juventude rural. O Diagnóstico da Juventude Rural reconhece a precariedade de políticas para a juventude do campo, salientando para a necessidade de criar instâncias de diálogo entre Estado e os movimentos e organizações da juventude, para que eles possam estar politicamente envolvidos “na elaboração, implementação e avaliação de políticas públicas que atendam suas demandas e necessidades” (BRASIL, 2018, p.8).

Ainda foi possível mensurar índices de vínculo e permanência no campo, posto que, segundo discutido por Queiroz (2004), desenvolvimento rural e produção na propriedade familiar estão vinculados às estratégias de resistência ao êxodo rural.

Foi constatado que 68% dos egressos possuem ocupação ligada ao campo, produzindo, envolvidos na comunidade ou conquistaram acesso ao ensino superior e optaram por dar continuidade à formação em um curso vinculado às questões do campo. Entre os entrevistados, 44% permanece morando em suas comunidades de origem enquanto trabalhadores rurais e produzindo. Mas se considerarmos aqueles residindo em comunidades ou sedes dos pequenos municípios, ainda na região, esse índice chega a 84%. Os outros 16% estão residindo no Sul de Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Apenas 10% migraram para outro estado e não desenvolvem nenhuma atividade vinculada à formação.

O acirramento das condições de vida, produção e trabalho no campo, entraves para a conquista de independência econômica dos jovens e ou críticas à baixa remuneração e penosidade do trabalho agrícola, têm sido uma das justificativas para o movimento migratório dos jovens (CARNEIRO, 1998; STROPASOLAS, 2006; CASTRO, 2013).

Considerando essa condição, os fluxos migratórios precisam ser pensados a partir de suas configurações históricas em uma sociedade classista, posto que, “[...] são sempre historicamente condicionadas, sendo resultado de um processo global de mudança” (SINGER, 2008, p.29).

A mobilidade do migrante altera as relações sociais do seu círculo de origem, a divisão do trabalho em sua família, bem como o lugar que deixou em sua partida. O migrante, por sua vez, é ressocializado em sua condição marginal urbana de exclusão e retorna com outra mentalidade, modo de ver o mundo, gostos, desejos (MARTINS, 1986; 2002). Nesse movimento, migrar é

[...] viver como presente e sonhar como ausente, É ser e não ser ao mesmo tempo; sair quando estar chegando, voltar quando está indo. É necessitar quando está saciado. É estar em dois lugares ao mesmo tempo, e não estar em nenhum. É, até mesmo, partir sempre e não chegar nunca (MARTINS, 1986, p. 45).

Para Singer (2008), a migração interna está articulada ao desenvolvimento regional e ocorre com a dinâmica de inserção do capital agrário na região, conflito e expropriação dos camponeses e também pela a insuficiência das terras disponíveis e/ou concentração das mesmas, inviabilizando a atividade produtiva dos camponeses. Ambos os contextos estão sob a égide do mesmo processo, inseridos no bojo das contradições do modo de produção capitalista e promovem a proletarização e marginalização do trabalhador.

Na mobilidade no interior da região – entre os jovens egressos há uma significativa mudança para a sede do município de sua comunidade de origem – é preciso considerar o fator da “diluição das fronteiras entre o rural e o urbano”, como apontou Carneiro (1998, p. 115), bem como a diversidade das relações entre urbano e rural como um importante critério para refletir sobre a categoria “rural” em sua construção histórico-social, como colocou Wanderley (2009), já que muitos jovens morando nas comunidades, trabalham na área dita urbana do município ou residindo na sede do município, possuindo vínculos e relações intensas com o campo. Essa vinculação não representa um “fim do rural” por sua sobreposição, mas aponta para relações cada vez mais complementares e confluentes.

Segundo o Censo Demográfico do IBGE 2010, dos 5.565 municípios do país, 70% possuem até 20 mil habitantes, boa parte deles considerados urbanos pelos parâmetros do IBGE, mas com vida rural latente e constituidora de suas relações sociais, políticas e econômicas.

As relações ou mudança para a sede do município não expressam uma transformação drástica, podendo esse continuar fazendo parte do universo camponês, já que “[...] a sociedade rural não se esgota no pequeno espaço propriamente rural, mas se espalha pelas pequenas cidades que não só lhe servem de apoio político-institucional, como também, constituem um quadro complementar de vida” (WANDERLEY, 2009, p.285). Este movimento preserva em certa medida o vínculo com o rural e funciona enquanto estratégia de resistência e reprodução social.

Para Carneiro (1998; 2007) e Stropasolas (2006), a melhor conexão entre campo e cidade em seus benefícios, somado aos desafios de vida nos grandes centros urbanos, tem feito com que a cidade se torne menos atraente como era em décadas passadas, considerando ainda a crescente mobilidade das pessoas, principalmente entre os jovens. Esta possibilidade de síntese com novas ruralidades e confluência entre esses mundos, inclusive como estratégia de reprodução social, é chamada pela autora de “projeto de vida rurbano” (CARNEIRO, 1998, p. 113).

É importante salientar que a profissão do jovem não pode ser vista meramente enquanto escolha ou projeto individual, desconsiderando as condições estruturais que permeiam a materialização de tais projetos, como apontou Castro (2013). Por isso é importante exortar para o risco de reproduzir de forma superficial e sem problematização a prerrogativa de manutenção dos jovens no campo de forma sentenciosa, desconsiderando sua realidade e desafios, creditando o êxito ou fracasso ao “esforço individual” e desconsiderando as ações coletivas e a necessidade de mudanças estruturais de forma regional e global.

Escolarização, juventude rural e resistência no Norte de Minas Gerais

A Educação do Campo vem sendo construída no seio da contradição entre capital e trabalho, forjada na luta de classes. Essa base figura como referencial político na práxis do Movimento Por Uma Educação do Campo em busca da “[...]superação das leis fundamentais de funcionamento da lógica de produção que move o capitalismo: exploração do trabalho e exploração da natureza”. Seguindo esse compromisso, não é possível “[...] pensar o destino da educação fora do destino histórico do trabalho”, estando a Educação do Campo desde o seu nascimento vinculada às contradições do desenvolvimento do campo (CALDART, 2016, p. 327).

A materialidade da Educação do Campo forjada nessa dinâmica e suas contradições têm sido preponderante na formação crítica de trabalhadores camponeses conscientes e atuantes no processo de enfrentamento e resistência ao acirramento das condições de vida no modo de produção capitalista (CALDART, 2016).

É importante não perder de vista a dimensão do trabalho enquanto princípio educativo, explorando sua “potencialidade pedagógica” inserido em um projeto formativo comprometido com a humanização, com a superação da dualidade histórica na divisão social do trabalho da sociedade de classes (FRIGOTTO, 2004; CALDART, 2011). Além disso, as conquistas no campo da educação não podem estar dissociadas dos avanços em relação à questão agrária, trabalho e condições dignas de vida (MOLINA e FREITAS, 2011)

A EFA foi forjada no seio da contradição capitalista em seus conflitos e consequente resistência dos trabalhadores do campo organizados para ser também instrumento de formação em prol das mudanças necessárias no território. O desafio de construir coletivamente e de forma comunitária uma escola com um propósito dessa magnitude e ousadia encontra inúmeros e grandiosos obstáculos. Queiroz (2004) já havia ressaltado a importância de fortalecer o protagonismo dos trabalhadores do campo para a consolidação e fortalecimento das EFAs. Por isso, sua força está necessariamente vinculada aos seus desafios enquanto instituição inserida num contexto de articulação social para o desenvolvimento do território do qual faz parte.

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CAPÍTULO 5

DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO INTERIOR DE MINAS GERAIS; UM ESTUDO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA DE SELEÇÃO UNIFICADA (SISU) NA UNIMONTES

Mônica Maria Teixeira Amorim
Emília Murta Morais
Maria Jacy Maia Velloso

Nas últimas décadas o Brasil registrou um crescimento significativo em termos de ampliação da oferta de ensino superior e a cidade de Montes Claros, situada no Norte das Minas Gerais, registrou igualmente um crescimento expressivo em número de instituições e de cursos superiores, notadamente a partir do final dos anos de 1990 e início dos anos de 2000. (ARAÚJO, 2014). O crescimento da oferta de ensino superior no país, que já se nota no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), com viés essencialmente privatista, se intensifica nos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em que pese o fato de manter, sob sua gestão, o crescimento da oferta privada de ensino superior, este último implementou um conjunto de políticas destinadas à democratização da educação superior no Brasil. Dentre o conjunto de políticas voltadas para a democratização e expansão da educação superior no período de 2003 a 2014, então implementadas, podemos apontar o Programa Universidade Para Todos (PROUNI), a Lei de Cotas (Lei nº. 12.711/2012), o Sistema de Seleção Unificada (SISU), o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), entre outros31.

Nesse bojo importante papel é atribuído ao SISU para promoção do acesso ao ensino superior. Implantado em 2010 pelo Ministério da Educação (MEC), o SISU consiste em um sistema informatizado de acesso ao ensino superior que tem por objetivo selecionar os candidatos às vagas ofertadas pelas instituições de ensino superior (IES) públicas utilizando a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Como o ENEM tem alcance nacional, entende-se que o SISU oportuniza aos estudantes a escolha de instituições em todos os estados do território nacional, possibilitando uma mobilidade para esses sujeitos e maiores chances de fazerem o ensino superior. Estudos sobre o SISU apontam que houve uma democratização da concorrência, que a mobilidade estudantil é importante característica nesse processo de ampliação do acesso ao ensino superior no país, mas avaliam que a lógica de seletividade social permanece. (LUZ, 2013; SANTOS, 2013). Indicam, ainda, que houve elevação considerável da não matrícula e altos percentuais de evasão (OLIVEIRA, 2013) e que o perfil dos estudantes não sofreu significativa alteração (NOGUEIRA et al, 2017).

A Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) optou pela adesão ao SISU no seu processo seletivo 01/2016. Considerando a grande relevância da Unimontes, enquanto Instituição pública de educação superior com atuação em toda uma vasta área “correspondente a 40% da área total do Estado de Minas Gerais, incluindo as regiões Norte e Noroeste de Minas e os Vales do Jequitinhonha e do Mucuri”[1]; considerando a importância de estudos que contribuam com as análises do processo de democratização do Ensino Superior nesse contexto específico e que destinem-se a ampliar a reflexão sobre o acesso à Educação, direito humano fundamental assegurado pela Constituição Federal de 1988, nos propusemos a desenvolver o presente trabalho. Este trabalho resulta de uma pesquisa cujo propósito se direcionou para analisar a implantação do SISU na Unimontes, com atenção às percepções de atores institucionais diretamente envolvidos nesse processo. O trabalho encontra-se organizado em duas partes. Na primeira parte discorremos sobre o processo de pesquisa. A segunda parte contempla os dados e análises alusivos à implantação do SISU a partir das percepções dos atores institucionais participantes do estudo. Por fim, apresentamos nossas principais inferências sobre o objeto estudado.

O processo de pesquisa

A pesquisa foi desenvolvida entre os anos de 2018 e 2020, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética (CEP) da Unimontes32. Do ponto de vista metodológico realizamos um estudo do tipo descritivo com ênfase na abordagem qualitativa. A pesquisa envolveu cinco etapas para seu desenvolvimento, a saber: 1. Estudo bibliográfico; 2. Entrevistas com profissionais da universidade envolvidos com a implementação do SISU na instituição; 3. Levantamento de dados de matrícula e evasão na Secretaria Geral; 4. Aplicação direta de questionários para graduandos; 5. Aplicação de questionários eletrônicos para estudantes evadidos.

Nos limites deste trabalho concentramos nossas análises nos dados advindos das entrevistas semiestruturadas realizadas com profissionais da universidade envolvidos com a implementação do SISU na instituição. Foram entrevistados três profissionais da gestão e dois profissionais da área de serviço social que compunham a equipe ligada ao processo seletivo de candidatos. Como forma de garantir o sigilo dos participantes utilizamos nomes fictícios para apresentação de suas percepções. As entrevistas realizadas tiveram duração média de uma hora e meia, foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra, sendo que os textos daí resultantes foram submetidos a uma análise de discurso (FAIRCLOUGH, 2008). De acordo com esse autor “os discursos não apenas refletem ou representam entidades e relações sociais, eles as constroem ou as ‘constituem’”. (FAIRCLOUGH, 2008, p.22). As entrevistas se orientaram pelo propósito de levantar pontos positivos e negativos da adesão ao SISU pela Unimontes, incluindo o debate acerca de questões como a democratização do acesso ao ensino superior via SISU, bem como a ocorrência de aumento da não matrícula e da evasão na percepção dos gestores entrevistados. Abordamos, na sequência, as percepções dos sujeitos do estudo.

Percepções dos atores institucionais envolvidos com a implementação do SISU

O conjunto de entrevistas realizadas permite depreender que os atores institucionais envolvidos com a implementação do SISU na Unimontes aprovam a adesão da universidade a este sistema com argumentações bastante semelhantes entre si. Os gestores destacaram, por exemplo, a maior visibilidade da universidade, pois segundo eles, a Unimontes deixa de ser conhecida apenas regionalmente e passa a ser conhecida nacionalmente. Antônio ressalta que:

A adesão da Unimontes ao SISU [...] elevou a Universidade a um patamar nacional mesmo. Claro que a gente sempre soube que ela tem influência em várias regiões, mas, principalmente a nossa aqui, o norte de Minas e o sul da Bahia. Só que com a adesão ao SISU, nós percebemos, pelas inscrições efetivadas, que o Brasil inteiro se inscreve no processo seletivo da Unimontes e na minha concepção isso é muito importante, entendeu?

É destacada também a diminuição de custos para a realização da seleção de ingresso dos estudantes. Uma das entrevistadas, aqui denominada de Tereza, avalia que a instituição tem uma grande expertise em processos seletivos, mas acrescenta que não tem condições financeiras para tal, afirmando que “a gente não tem dinheiro para isso, não tem, e nem o Estado tem condição de liberar, por semestre, no mínimo 500 mil reais para fazer um processo seletivo”. Esse posicionamento de Tereza, que é reafirmado por alguns dos demais entrevistados, corrobora os achados de Nogueira e outros (2017) que, ao destacar vantagens do SISU em relação ao vestibular tradicional, coloca a eliminação de gastos institucionais com o vestibular, como uma dessas vantagens. Outro ponto destacado se refere ao fato de que a Unimontes ao aderir ao SISU, se alinha, nos dizeres de um dos nossos interlocutores, denominado de Roberto, “ao que está sendo discutido e implementado no Brasil”. Continua na sua argumentação ressaltando que o “importante é que as universidades se preocupem com as suas especificidades, mas também estejam alinhadas com a legislação nacional e ao cenário internacional”. Para ele “não se aceita atualmente formar graduando, um estudante, somente com uma visão regional, ele tem que ter uma visão nacional e também internacional”.

A defesa a adesão ao SISU, na fala dos entrevistados, vem atrelada aos pontos positivos, considerados por eles em relação a este sistema de ingresso ao ensino superior. Roberto enfatiza que o SISU possibilita a mobilidade dos estudantes pelo Brasil e que esse fato faz com que eles, os estudantes, conheçam melhor a realidade brasileira, inclusive em relação às possibilidades de trabalho e não só as possibilidades de cursar o ensino superior em uma instituição pública. Defende ainda que esse é um ponto positivo na própria formação do estudante, pois considera que essa mobilidade amplia, e muito, a entrada do candidato em um curso do seu real interesse, além de ser benéfico para sua formação geral, pois o faz conhecer realidades nacionais diferentes. Ao poder se inscrever em Instituições de Ensino Superior (IES) em todo território nacional, o SISU abre realmente um leque bem maior de ofertas de curso, não restringindo aos que são ofertados no município de residência do candidato ou próximo dele. Roberto reforça essa ideia colocando que com o sistema unificado, aumenta-se “o acesso dos alunos a uma maior qualidade na formação e também a perspectiva de ingressar em uma instituição pública e, sobretudo, em cursos que são a vocação do estudante e não necessariamente o que as instituições próximas de onde reside oferecem”.

Muitos dos entrevistados ao elencarem esses fatores como positivos fazem uma ligação entre eles e a democratização do acesso ao ensino superior público. De uma maneira geral consideram que o SISU democratizou o ingresso ao curso superior em instituições públicas, como podemos observar na fala de Tereza, quando afirma que:

O ponto positivo é a democratização, [...] pela democratização do acesso ao ensino superior [...] os processos seletivos próprios, eles são mais elitizados, [...] aí o SISU, querendo ou não, gostando ou não, achando bom ou não, o estudante ele tem uma condição maior de acesso. Então, para mim, é um ponto positivo, e eu bato nessa tecla aqui desde quando eu comecei a estudar a possibilidade de a gente aderir ao SISU ou não.

Podemos observar também esse posicionamento de que o SISU democratizou o acesso ao ensino superior público, na fala de Antônio, quando ele destaca que com o SISU, a Unimontes passa a utilizar a nota do ENEM, diferentemente do sistema de seleção tradicional utilizado anteriormente pela universidade, que obrigava o aluno a estudar especificamente para a Unimontes, dificultando o período de estudo e consequentemente de acesso, pois muitas vezes o aluno ficava limitado à inscrição na Unimontes ou no máximo em mais outra instituição. Com a nota do ENEM o estudante se habilita a inúmeras instituições em todo o país.

No entanto, essa defesa da democratização do acesso à universidade pública via SISU, não foi postulada por todos os entrevistados da mesma forma. Célia e Joaquim, profissionais da área de serviço social que compunham a equipe ligada ao processo seletivo de candidatos do SISU/Unimontes, alegaram que é preciso analisar essa questão de maneira bem cuidadosa, pois o acesso foi ampliado, mas pouco mudou o perfil dos ingressantes, quando se pensa nos cursos de maior demanda e prestígio, como Medicina e Direito. Colocam que,

[...] existem estudos já que discutem o próprio conceito de democratização e mostram essa questão do acesso ao ensino superior que, houve uma ampliação, mas que aquelas pessoas que entravam nos cursos de maior status, digamos assim, continua não havendo tanta mudança no perfil desses sujeitos.

De fato, como apontam os estudos de Luz (2013), Santos (2013), Nogueira et al (2017), a lógica de seletividade social permanece com o SISU, já que cursos de maior prestígio social seguem sendo acessados por estudantes de perfil financeiro e social mais elevado. Célia e Joaquim não desconsideram a importância do SISU para maior democratização do ensino superior em instituições públicas, afirmam que o SISU se constituiu como importante política para promoção da democratização do acesso à educação superior ao possibilitar abertura geográfica e social de ingressantes que antes não acessavam esse nível de ensino. Afirmam que esse fato foi possível de ser observado ao analisarem os questionários socioeconômicos dos candidatos, mas fazem esse alerta, de que para as áreas de maior prestígio o perfil dos ingressantes pouco mudou no que diz respeito ao pertencimento socioeconômico.

Nogueira et al (2017) argumentam que há “limites na realização de algumas das promessas associadas ao SISU, especialmente a mobilidade geográfica estudantil e a inclusão de candidatos com uma origem social mais baixa em cursos mais seletivos” e consideram que estas encontram-se vinculadas “com as condições reais dos candidatos para se beneficiarem dessas oportunidades formalmente oferecidas a todos”. Para os autores, no que se refere à mobilidade geográfica isso é evidente e embora “a plataforma online do SISU ofereça a possibilidade de o candidato se inscrever em qualquer curso de qualquer instituição do país, na prática, poucos têm condições de se deslocar e se manter em locais distantes da residência”.

Assim, não podemos desconsiderar que desigualdades sociais e econômicas impactam no acesso e na permanência dos estudantes. Embora parte dos entrevistados sinalizem que no contexto da Unimontes houve uma democratização do acesso à educação superior, não podemos perder de vista que o conceito de democratização merece ser problematizado. Carvalho (2004) considera que democratizar não é apenas ampliar o número de vagas na universidade, mas promover o acesso universal. Nesse sentido entendemos que houve ampliação do acesso, e não exatamente democratização desse. Em documento da Secretaria de Educação Superior (SESu) do MEC, intitulado “A democratização e expansão da educação superior no país 2003 – 2014” podemos encontrar um balanço acerca das políticas realizadas no período e uma referência de que as políticas e os programas então implantados “possibilitaram o avanço extraordinário para a democratização e expansão da Educação Superior nos últimos 12 anos.” (BRASIL/MEC, s.d, p. 12)33. Ainda conforme o citado documento a democratização é entendida como processo de reversão do “quadro no qual ir à universidade é opção reservada às elites” e a educação superior é entendida enquanto “bem público, destinada a todos indistintamente, inserida no campo dos direitos sociais básicos, tratada como prioridade da sociedade brasileira,” devendo a universidade “ser a expressão de uma sociedade democrática e multicultural”. (BRASIL/MEC, s.d, p.19).

Em que pese a importância dessas políticas para a ampliação do acesso à educação superior no país a tese da democratização pela via do SISU, como aludimos, vem sendo questionada, e pauta-se, entre outros, nos seguintes argumentos: que as vagas são limitadas, que cursos e universidades de mais prestígio continuam sendo majoritariamente acessados por pessoas de camadas mais abastadas, que muitos estudantes das camadas populares acessam mas não conseguem concluir o ensino superior, que a democratização envolve mais investimentos em políticas de permanência, entre outros. (LUZ, 2013; SANTOS, 2013; SILVA e LUZ, 2014; NOGUEIRA e OUTROS, 2017; ARIOVALDO e NOGUEIRA, 2018).

Entendemos que democratizar envolve garantia de acesso a todas e todos de tal modo que a universidade pública não se caracterize como espaço reservado às elites. Ademais, democratizar envolve garantia de acesso e, igualmente, de permanência e conclusão do ensino superior. Nesse sentido, podemos falar que o SISU, em que pese seus poucos anos de existência no Brasil e, especialmente, na Unimontes, tem ampliado o acesso das camadas populares à universidade, mas ainda há muito por fazer. Conforme apontam Nogueira et al (2017, p.86-87), é preciso ponderar que o SISU:

ainda está em processo de implementação e que, portanto, seus benefícios podem ainda não ter sido plenamente produzidos. Além disso, os dados sugerem que as consequências da adoção do SISU são complexas e diferenciadas conforme os cursos da universidade, o que exigirá análises muito mais detalhadas antes de qualquer avaliação conclusiva sobre suas vantagens e desvantagens.

Nessa esteira, de análise cuidadosa do processo, alerta importante é feito pelos entrevistados Célia e Joaquim e se relaciona ao não preparo dos professores das universidades para a promoção da inclusão dos novos sujeitos, que passaram a ter acesso à universidade depois do advento do SISU. Para Célia e Joaquim o despreparo de muitos docentes para incluir tais estudantes contribui para que muitos não permaneçam na instituição. Ainda segundo eles, esse não preparo também se refere à instituição como um todo, e destacam que a não permanência desses estudantes na universidade se deve a diversos fatores que vão desde a postura dos professores, à falta de infraestrutura da universidade, até as condições materiais de sobrevivência dos próprios alunos.

Em relação a esse último apontamento nos deparamos com o que parece ser um grande obstáculo da Unimontes em relação à permanência de estudantes, que é a política de assistência estudantil. Esse foi apontado por todos os entrevistados como o maior problema a ser enfrentado. Podemos observar em vários momentos das entrevistas a reiteração da necessidade de uma política estudantil na Unimontes que fosse bem estruturada o suficiente para fornecer ao aluno ingressante pelo SISU o apoio necessário para seu bem estar e permanência na instituição. Nessa linha, Tereza ressalta que “o acesso fica mais democrático, mas a permanência fica complicada porque nós não temos as políticas de assistência estudantil em larga escala, nossa assistência ainda é pouca [...]”. Antônio, Célia e Joaquim lembram, em relação a essa questão, que o estado de Minas Gerais, no momento da adesão ao SISU, não tinha nenhuma legislação que possibilitasse a alocação de recurso para a garantia de uma política estudantil que possibilitasse o mínimo necessário para a permanência dos alunos oriundos das camadas menos favorecidas economicamente. Tal fato compromete a democratização do ensino superior, pois nessas condições quem terá mais possibilidade de permanência serão os alunos procedentes das camadas mais abastadas, e que historicamente sempre tiveram mais acesso ao ensino superior no país.

Célia e Joaquim foram bastante enfáticos em relação às dificuldades advindas da falta de política de assistência estudantil na Unimontes. Ressaltaram que a Unimontes tem seu sistema de cotas para acesso ao ensino superior34, que é oriundo de legislação estadual e não federal e que, desde então, inclusive anterior a adesão ao SISU, a instituição já recebia alunos das camadas menos favorecidas economicamente, mas que esses, basicamente, eram oriundos do município de Montes Claros ou da região, o que amenizava a falta de assistência estudantil. No entanto, reforçam que, com o SISU, alunos de outras regiões, ou outros estados, precisam de mais assistência para sua permanência. Nesse sentido, voltam ao tema da democratização e lembram que é preciso relativizar a democratização originada pelo SISU.

Na opinião de nossos interlocutores, em casos, como o da Unimontes, onde o apoio se restringe ao Restaurante Universitário (RU) que possibilita aos alunos almoço e janta no valor de R$2,5035, e um número bem reduzido de bolsas, a incidência de não matrícula e de evasão aumenta, pois os alunos tendem a buscar outras instituições que oferecem auxílio moradia, alimentação, apoio psicológico, pedagógico, assistência à saúde, lazer, etc. Célia e Joaquim foram responsáveis pela análise da documentação dos candidatos que se inscreveram ao SISU, pelo sistema de cotas da Unimontes, tendo, portanto, uma visão privilegiada do perfil geográfico e socioeconômico desses candidatos. E eles elucidam que:

[...] isso nos coloca, a partir do que a gente conseguiu perceber, é isso. A gente passa a ter um pessoal muito pobre, declaradamente muito pobre. A gente tem rendas baixíssimas, a gente chegava a pegar sujeitos que apresentavam renda próximo de zero, então a gente tem o que a gente fala renda zero, que não tem nenhum tipo de sustentação.

É fácil perceber que parte dos inscritos no SISU/Unimontes necessita de uma política estudantil robusta e não tão tímida como a existente atualmente. A nossa instituição está inserida em uma região de Minas Gerais com alto índice de “pobreza”36 e tem como característica o atendimento significativo a alunos oriundos da região. Na entrevista realizada com Antônio foi enfatizado que a Unimontes mantém o perfil de atendimento regional que a caracteriza desde sua origem, que esse perfil não se alterou muito com a adesão ao SISU, com exceção dos cursos de maior prestígio, como apontamos anteriormente, especialmente Medicina – em que se registram aumento do número de estudantes que vêm de outros lugares do Brasil. Dessa forma, fica evidente a urgência em desenvolver uma política estudantil na instituição como caminho para promoção da democratização do acesso ao ensino superior, em outras palavras, que possibilite que estudantes de diferentes lugares do país possam aqui se estabelecer para cursar o ensino superior.

Ainda em relação à política de assistência estudantil foi destacado por Roberto, Antônio e Tereza, que houve um agravante, o não cumprimento do repasse de verba por parte do governo federal para as instituições estaduais que aderissem ao SISU. Tereza explica que um dos problemas centrais na implementação do SISU se relaciona ao recurso financeiro que a universidade deveria receber e não recebeu. Silva e Luz (2014) esclarecem que há uma contrapartida financeira do governo para as IES que aderem ao SISU. Lembram que o MEC criou, em 2010, o Programa Nacional de Assistência Estudantil/PNAEST para IES públicas estaduais que participam do ENEM/SISU. (Portaria MEC Nº 25/2010). A referida Portaria, em seu artigo 5º, determina que o repasse orçamentário deverá ser diretamente proporcional à quantidade de vagas disponibilizadas pela instituição. Oliveira, (2014) ao tratar do tema, ressalta que o PNAEST é parte integrante das ações do MEC com o objetivo de ampliação de vagas, bem como de promoção de maior acesso a IES públicas e que, para tanto, a assistência estudantil é essencial. Roberto colabora com essa discussão ao assinalar que,

O SISU está em vigor, mas a assistência estudantil não está implementada. Os recursos financeiros previstos no SISU não são repassados para as universidades, se esses recursos estivessem implementados eu creio que talvez não tivesse problema em relação a não efetivação da matrícula, mas ele está implementado de maneira parcial no Brasil.

Não se pode negar que a não disponibilização do recurso, por parte do governo federal, agrava a situação da Unimontes que já vinha de uma situação precária em relação a assistência estudantil. Célia e Joaquim ressaltam que a Unimontes já apresentava necessidade de política de assistência estudantil visto ter sido esse um dos fatores de adesão dos acadêmicos à última greve dos professores, o que resultou na elaboração de uma legislação mineira para assistência estudantil, tanto da Unimontes como da Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG. Apesar desse avanço no âmbito legal, os entrevistados não consideram, de maneira unânime, que foi o suficiente, e apontam que a operacionalização de uma política estudantil mais robusta é fundamental para enfrentar o quadro de não efetivação de matrícula e de não permanência de alunos nos cursos que se tem observado com a implementação do SISU.

Nesse sentido, se a promoção de maior inclusão social com ingresso de estudantes de camadas populares no ensino superior pode ser considerada um aspecto positivo com a implementação do SISU, por outro, a não efetivação de matrículas (ou aumento de “não matrícula”) e a não permanência (ou evasão) figuram como pontos negativos, ou problemas que merecem atenção nesse processo. Tais problemas estão relacionados à política estudantil ainda precária, como já indicamos, que fica comprometida com o não cumprimento do repasse de verbas que as instituições que aderiram ao SISU deveriam receber. Ainda assim, mesmo que precária, a implantação de uma política estudantil na Unimontes foi um ganho que veio no bojo do processo de implementação do SISU.

Tratando especificamente da não efetivação de matrículas (ou aumento de “não matrícula”), Antônio e Roberto ressaltam especialmente como problema o seguinte fenômeno advindo da adesão ao SISU/Unimontes: trata-se da dificuldade com a efetivação das matrículas dos cursos de licenciatura. Essas, as licenciaturas, representam o maior número de alunos matriculados na instituição, sendo essas matrículas de forma majoritária local e regional e atendendo de maneira mais acentuada às camadas populares. O problema destacado por esses interlocutores, a partir da adesão ao SISU, se pauta no fato de que, oriundo de outra região de Minas Gerais ou até de outro estado, os alunos se inscrevem e são aprovados para cursarem licenciatura na Unimontes. No entanto, não efetivam a matrícula, muitos por colocarem a instituição como segunda opção, preferindo outro curso ou outra instituição, ou mesmo, fazendo os devidos cálculos e percebendo ser mais vantajoso financeiramente fazer o curso em uma instituição privada mais próxima do que se mudar e vir para uma instituição sem alojamento, sem auxílio moradia, enfim, sem auxílio estudantil. Segundo Antônio, a não matrícula aumentou nos cursos de licenciatura após o SISU, fazendo com que os aprovados além da lista de vagas, muitos oriundos da região, tivessem que aguardar novas chamadas. Antônio afirma que a Unimontes já chegou a realizar nove chamadas para matrícula. Esse ato só pode ser realizado no máximo com 28 dias letivos concluídos, como o processo é demorado, faz com que sobrem alunos na lista de espera e sobrem vagas nos cursos de licenciaturas. Ele explica:

Para as licenciaturas, na verdade, só dificultou o acesso, que é um ponto negativo. Que é aquilo, o aluno se inscreve, a gente chama, perde um tempo chamando, perde um tempo analisando o socioeconômico, ele não vem. Aí tem que fazer outra chamada, as aulas já iniciaram e a chamada é demorada. Eu acho um ponto negativo porque isso comprova a dificuldade nossa de encher a sala de aula, entendeu? É uma dificuldade a gente encher a sala de aula. Não fecha turma. Então assim, não vou falar com você que o número de evadidos aumentou. Mas o número de vagas ociosas aumentou, entendeu?

No que concerne à evasão esse é um fenômeno complexo que apresenta variação na determinação do seu conceito. O que se entende por evasão? Trata-se de um conceito que pode variar e de uma perspectiva que nem sempre indica algo negativo – pode significar abandono, mas pode envolver mudança de curso. Santos e Giraffa (2013, p.02) avaliam que “a medida que o acesso à Educação Superior aumenta, crescem também os problemas relacionados a evasão e a permanência dos estudantes nas instituições de ensino superior”. As autoras advertem para o cuidado no trato ao conceito de evasão. Dizem que para podermos discutir “questões relacionadas à saída de alunos do sistema educacional superior” mostra-se necessário definirmos “o que estamos considerando por “evasão”. Nessa direção Santos e Giraffa (2013, p.02) lembram que a Comissão Especial de Estudos sobre a Evasão nas Universidades Públicas Brasileiras, em documento que data de 1996, define evasão como “saída definitiva do aluno de seu curso de origem, sem concluí-lo”. Ainda conforme as autoras outra perspectiva entende que “a evasão corresponde ao aluno que ingressou na educação superior, mas em algum momento do curso não efetivou sua matrícula” e pressupõe que o aluno “decide desligar-se por sua própria responsabilidade”.

Contudo Ristoff (1999, p.125) pondera que parte significativa do que denominamos evasão não consiste em exclusão, mas mobilidade. Explica o autor que a evasão:

não é fuga, não é desperdício mas investimento, não é fracasso - nem do aluno nem do professor, nem do curso ou da Instituição – mas tentativa de buscar o sucesso ou a felicidade, aproveitando as revelações que o processo natural de crescimento do indivíduo faz sobre suas reais potencialidades.

A Secretaria Geral da Unimontes, conforme nos foi informado, trabalha com o entendimento de que evadido é o aluno que não tranca matrícula em um semestre e não retorna no próximo, e é possível depreender, pela fala de parte dos entrevistados, que a instituição ainda não realiza um acompanhamento tão sistemático de dados de evasão, o que demandaria um estudo mais aprofundado do fenômeno. As respostas a nossos questionamentos sobre evasão indicaram que não existe acompanhamento do percurso que o aluno faz na instituição depois de efetivar a matrícula, pois o mesmo pode ter se evadido de um curso e migrado para outro através do sistema de mudança de curso, oferecido todo semestre pela própria instituição. Ele é considerado evadido, mas pode estar em outro curso da Unimontes. Esse dado é importante, pois pode ser intensificado com a adesão ao SISU. O candidato se inscreve para um curso menos concorrido e depois pleiteia a mudança para outro de maior demanda, indicando um abandono ao curso superior, que na realidade não aconteceu. Seria igualmente relevante que a instituição acompanhasse o movimento externo que o aluno faz no caso de abandonar realmente a Unimontes – se o estudante seguiu cursando ensino superior em outra instituição.

Roberto considera que o SISU tem acarretado um número considerável de “não matrícula” e que não se pode chamar esse fenômeno de evasão. Para Roberto a “não matrícula” é um grande problema, não a evasão. Um outro problema que para Roberto resulta da adesão ao SISU é a ampliação da concorrência que, no entender dele se configura como algo negativo para os candidatos da região uma vez que, com o SISU, se tornou mais difícil o acesso para quem é do município de Montes Claros ou da região. Esse fato já preocupa a gestão da instituição, tanto que Antônio afirma que uma proposta está sendo gestada pela Unimontes e se baseia na destinação de uma cota para alunos de Montes Claros, bem como da região norte mineira, como podemos perceber a partir de sua fala: “Por isso, assim, que nós estamos estudando a possibilidade de a gente implementar vagas regionais no SISU, entendeu? Nós já estamos trabalhando com isso. Já é até um indicativo aí, para vocês, eu acho que é uma das alternativas”.

Um outro desafio que é destacado com a implementação do SISU é apontado por Célia e Joaquim, para quem há uma intensificação de demandas de trabalho para a universidade a partir do SISU, havendo, portanto, a necessidade de constituição de uma equipe de profissionais para acompanhamento desse processo. Contudo, falta pessoal e equipe específica com profissional devidamente destinado para esse trabalho – conforme os entrevistados avaliam que deveria ocorrer.

Nessa direção foi mencionada a necessidade de criação de um grupo de profissionais, especialmente da área do Serviço Social, para cuidarem do acompanhamento dos inscritos pelo sistema de cotas já que esse sistema exige análise da situação socioeconômica dos candidatos. Conforme foi levantado nas entrevistas o trabalho relativo a essa demanda no processo de implementação do SISU foi realizado por três professores do curso de Serviço Social através de um projeto de pesquisa que teve duração de dois anos. A realização das ações por esse grupo foi considerada pelos participantes, bem como pela gestão da Universidade, como essenciais para promover a democratização do acesso à instituição, pois o grupo primou pela seleção rigorosa dos mais necessitados cuidando para evitar fraudes no sistema de cotas. Mesmo que os professores participantes desse grupo aleguem que a burocracia, na visão deles, excessiva, prejudicasse a seleção, consideraram ação profícua na busca por maior licitude do processo.

Através da escuta dos entrevistados, não foi possível saber como essa seleção está sendo realizada após o término do projeto. Fato é que a implementação do SISU requer, na opinião dos entrevistados, uma equipe específica para análise socioeconômica dos candidatos bem como para acompanhamento e avaliação dessa política. Joaquim destaca que em outras instituições públicas existe uma equipe que cuida dessa seleção dos candidatos, bem como do acompanhamento desses acadêmicos, e afirma considerar essencial esse trabalho. Tereza também faz a defesa da necessidade de manutenção de grupo com essa finalidade. No dizer dela, quando o projeto acabou,

[...] a análise socioeconômica dos candidatos do SISU deixou de existir e com esse encerramento os nossos problemas, eles aumentaram sobremaneira e ficamos aí sem o profissional de Serviço Social para fazer essa análise e ela é necessária, tem que ter essa análise.

O não acompanhamento dos candidatos ao sistema de cotas pode gerar, entre outros fatores, a não observância de necessidade de apoio específico para determinados candidatos, por desconhecer a real situação econômica, familiar, psicológica, de logística para a permanência e sucesso desse candidato na Instituição, além de facilitar a ocorrência de fraude, o que compromete a almejada democratização do ensino superior via SISU. Tais recomendações dos entrevistados reforçam a proposição de Luz (2013), de que deveriam ocorrer estudos sobre o SISU e maior acompanhamento do processo na Universidade.

A constituição de grupo de profissionais para análise das condicionantes para a efetivação da matrícula é também defendida por Joaquim, para quem os candidatos pertencentes as camadas mais pobres são os que também possuem menores condições de recorrerem às decisões da Universidade em relação a aceitação dos documentos apresentados no socioeconômico. A fala de Joaquim é bastante contundente nesse sentido, quando ele relata que,

Candidatos vinculados a cursos hierarquicamente mais valorizados, Medicina e Direito, a gente já recebeu recursos que pareciam peças judiciárias, assim, muito bem montadas, enquanto que a gente recebeu recurso de estudante extremamente pobre que falava ‘moço me dá uma chance, eu me esqueci de colocar o documento’, ele colocava isso no recurso, sabe? Na folha de caderno. Numa folha de caderno.

O relato de Joaquim corrobora a premência em criar e manter um grupo de profissionais para análise e acompanhamento de todo o processo, desde a inscrição, a efetivação da matrícula, a entrada na Instituição, a permanência, o movimento realizado até a conclusão do curso e, quiçá, o acompanhamento pós-formatura. São ações que entendemos muito importantes e que nos desafiam a pensar os caminhos para construção de uma universidade pública mais includente e plural.

Ao final da realização e análise das entrevistas foi possível notar que a implementação do SISU traz questões que merecem ser melhor examinadas, debatidas e enfrentadas no interior da Unimontes e, como avalia Luz (2013), o sistema foi implantado às pressas, havendo pouco debate com a comunidade. Ademais, como asseveram Nogueira et al (2017), o sistema ainda tem pouco tempo de implementação e necessita de maiores e mais detalhadas análises sobre suas vantagens e desvantagens. Portanto, os dados suscitam o debate sobre as fragilidades e potencialidades do SISU na promoção da democratização da educação superior no país e no interior de Minas Gerais.

A título de conclusão

As percepções de profissionais da Unimontes que atuaram na gestão do processo de implementação do SISU nesta IES revelam que o sistema tem importante papel no processo de democratização do ensino superior, destacando-se a atuação do SISU para implantação de uma política de assistência estudantil nesta universidade – condição fundamental para a permanência dos estudantes. Aspectos positivos do SISU são destacados e corroboram dados da literatura estudada – com é o caso da eliminação de gastos institucionais com o vestibular e a oferta de vagas para todo o Brasil, com mobilidade geográfica maior para os candidatos. A ampliação do acesso de estudantes de camadas populares na universidade também se faz notória e observa- se que o SISU, articulado com a reserva de vagas, tem promovido maior inclusão social na educação superior.

Entre os aspectos controversos que o sistema comporta nota-se que, em função do volume de trabalho que acarreta, o SISU deveria contar com uma equipe de acompanhamento sistemático e avaliação do processo. Ressalta-se a premência de avaliação cuidadosa deste sistema nas IES, o que pode contribuir, entre outras questões, para aprofundar as análises sobre “não matrícula” e evasão, bem como sobre o perfil de ingressantes, sobre aspectos que merecem ser aprimorados, incluindo simplificação da documentação de inscrição para torná-la menos onerosa. No caso da Unimontes o problema da “não matrícula” nos cursos de licenciatura merece atenção especial, de modo a atenuar a situação de vagas ociosas em um processo, como o SISU, que se propõe a ampliar o acesso à educação superior.

Por fim, salientamos a necessidade de novos estudos sobre o SISU, por ser ainda recente sua implementação, como já mencionamos e, pelo seu propósito tão relevante, de promoção da democratização da educação superior no país. A democratização é, assim, entendida, como sinônimo de maior acessibilidade dos cidadãos ao ensino superior, em outras palavras, refere- se à popularização da educação superior, a promoção do direito à formação superior para todos os brasileiros. A partir dos dados das entrevistas é possível concluir que o SISU tem uma relevante contribuição na ampliação do acesso de estudantes das camadas populares à educação superior, mas há muito a avançar no processo de democratização. Nessa direção, políticas de permanência mostram-se necessárias, englobando não somente assistência estudantil, mas um aspecto que o diálogo com gestores nos suscitou atenção, qual seja, a relevância de uma política institucional de formação continuada de professores universitários pautada no compromisso com a democratização do ensino superior, na desconstrução de preconceitos, no combate às desigualdades educacionais e na promoção da inclusão de todos estudantes.

Referências

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CAPÍTULO 6

VAZANTEIROS DE PAU DE LÉGUA: A ANCESTRALIDADE E A RESISTÊNCIA NA LUTA POR UM TERRITÓRIO LIVRE

Júlia Veloso dos Santos

Felisa Cançado Anaya

Introdução

A comunidade tradicional vazanteira de Pau de Légua se autorreconhece enquanto população tradicional vazanteira e pesqueira e vive ancestralmente nas vazantes e ilhas da margem esquerda do Rio São Francisco, no Norte de Minas Gerais. O processo histórico de expropriação territorial deste grupo social tem na elite local e nos órgãos ambientais estaduais, seus principais agentes. Apoiados em políticas de desenvolvimento econômico do campo e nas políticas ambientais de cunho conservacionista, Anaya e Santo (2019) observaram dois ciclos de expropriação. O primeiro, durante as décadas de 1940 e 1960, através das políticas públicas de modernização do campo e sua ocupação por grandes empresas rurais, inaugurou um momento de “ruptura” na organização social e no modo de vida vazanteiro.

A apropriação da natureza pelo agronegócio através da especulação imobiliária, transformou terra e a água em mercadorias, chocando-se com as formas de apropriação e uso da natureza realizada por estes grupos. Como consequência deste processo, houve o avanço do agronegócio sobre os territórios tradicionais, encurralando e confinando as comunidades vazanteiras nas margens e ilhas do rio São Francisco. A transformação de fazendas em grandes empresas rurais dispõe de um modo de produção que se coloca em oposição às práticas tradicionais de manejo do solo, de rios e lagoas realizadas pelos grupos vazanteiros, tampouco reconhece o regramento costumeiro onde o território e seus recursos naturais são acessados conforme as normas compartilhadas pela coletividade. A racionalidade do agronegócio de “acumulação por despossessão” (HARVEY, 2003) impede a coexistência de dois regimes de propriedade e acesso aos recursos distintos. A expropriação territorial das comunidades tradicionais faz parte do modus operandi da dinâmica mercadológica do agronegócio, assentada sobre a propriedade privada e financeirização da terra.

O segundo ciclo de expropriação se distingue pela implementação de políticas ambientais de cunho conservacionista que intensificaram a vulnerabilidade e os conflitos ambientais junto às diversas comunidades vazanteiras da região, inclusive Pau de Légua. A implementação de um sistema de áreas protegidas enquanto compensação ambiental à expansão da etapa 2 do Projeto de Fruticultura Irrigada Jaíba, incluía vários tipos de áreas protegidas a serem implementadas na região. Dentre elas foi criado o Parque Estadual da Mata Seca (PEMS), unidade de conservação de proteção integral sobreposta ao território tradicional da comunidade tradicional vazanteira de Pau de Légua, conforme apresentado no mapa abaixo.

Figura 1 - Sobreposição das áreas protegidas compensatórias ao projeto de fruticultura irrigada do Jaíba sobre territórios tradicionais no rio São Francisco. Do lado esquerdo o PEMS sobre o território tradicional vazanteiro de Pau de Légua.

Figura 1 - Moradores de Pau de Légua desenterrando a cruz durante incursão no território no ano de 2018.

Fonte: Diagnóstico Socioambiental da Comunidade Vazanteira de Pau de Légua, 2018.

O parque estadual da Mata Seca vem se colocando como mais uma barreira à reprodução do modo de vida tradicional da referida comunidade e seus agentes ambientais, responsáveis pela criação e fiscalização da área protegida, vêm reproduzindo o mesmo processo de expropriação realizada por grandes fazendeiros com a introdução das políticas econômicas anteriores.

Por se tratar de uma unidade de conservação de proteção integral, categoria em que não se permite a presença humana no interior da área protegida, a criação do parque vulnerabiliza ainda mais as populações que vivem das e nas vazantes do Rio São Francisco, comprometendo não somente a sua reprodução social, mas também sua soberania alimentar, sua autonomia territorial e, principalmente, sua identidade.

O parque foi criado nos anos 2000 através de decreto estadual, mesmo ano de criação do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação). O SNUC, por sua vez, fora criado num contexto de conflitos entre povos e comunidades tradicionais e unidades de conservação após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992. A Eco-92 foi um marco no que diz respeito à incorporação do desenvolvimento sustentável ao modelo de desenvolvimento econômico adotado no Brasil. A criação do PEMS no referido contexto e, em sobreposição a terras tradicionalmente ocupadas, representa bem a relação dicotômica entre homem e natureza. As divergências no modo de pensar a natureza com visões e projetos sociais diferentes para os lugares fica evidente quando compara-se, a título de exemplo, as visões dos agentes ambientais que baseiam-se numa perspectiva conservacionista37 em oposição à visão dos povos e comunidades tradicionais de uso sustentável da natureza38 (THOMAS, 1996).

Atualmente, a comunidade vazanteira de Pau de Légua se encontra confinada na margem esquerda do rio São Francisco e nas periferias da cidade de Matias Cardoso. Os conflitos ambientais desencadeados pela sobreposição de distintas territorialidades, apresenta um cenário de disputas de visões e de interesses: os povos e comunidades tradicionais que ali habitam utilizando os recursos naturais de forma coletiva e familiar há gerações e que ali desejam permanecer; o agronegócio consolidando uma era desenvolvimentista que só atende aos interesses do capital em detrimento das populações tradicionais, através da criação de gado para exportação, das monoculturas, do reflorestamento, e da agricultura irrigada em grande escala; o Estado, através dos órgãos ambientais, impondo uma lógica de preservação integral excludente. Observa-se ainda que o que está em jogo são distintos modos de apropriação de terras, na maioria das vezes públicas, por diferentes atores sociais.

Os dados aqui apresentados são resultados de trabalhos de campo etnográficos no âmbito dos projetos de pesquisa “Dinâmicas Socio ambientais do Rio São Francisco” e do “Nova Cartografia Social do Brasil Central”39. Durante o processo, foram realizadas diversas reuniões junto à comunidade, oficinas em grupo para resgate da memória social e seus componentes históricos; entrevistas individuais junto às lideranças com uso da metodologia da história oral; caminhadas pelo território para delimitação e identificação de seus elementos; oficinas para elaboração de croquis e mapas com a representação do território a partir do método da nova cartografia social; além de aplicação de questionário para levantamento de dados quantitativos. Também foi realizado levantamento bibliográfico e documental a fim de coletar as informações existentes sobre a área pesquisada, lançando-se mão dos estudos de Araújo (2009), Anaya (2012), Camenietzki (2011) e Santos (2015). Utilizou-se ainda dados cartográficos disponibilizados pelo IEF acerca da questão fundiária da área de pesquisa, bem como informações constantes em um dos processos judiciais de desapropriação movido pelo IEF40, de onde foi possível coletar dados acerca do modo como o órgão ambiental avalia uma área para desapropriação, dados sobre o modo de apropriação territorial dos fazendeiros proprietários do imóvel, bem como consultar registros notariais acerca de uma das propriedades onde foi criado o PEMS.

A Vida Nas Vazantes

A comunidade de Pau de Légua, está localizada à margem esquerda do Rio São Francisco. Seu nome remete à presença de uma árvore antiga do território vazanteiro, que marcava a extensão de uma légua da cidade de Manga/MG (ARAÚJO, 2009). Segundo os membros da comunidade, a distância de uma légua era de aproximadamente 6 km e o “pau” servia como referência para os ribeirinhos que se deslocavam da comunidade para a cidade e vice-versa.

O modo de vida vazanteiro da comunidade é organizado através de regras baseadas em direitos costumeiros, que se opõem à propriedade privada. A relação com o rio São Francisco e as formas de manejo nas vazantes, através da “lida” com as baixas e cheias do rio, são elementos étnicos diferenciadores acessados por estes grupos que os distingue dos demais grupos circundantes. Conforme relatado por Luz de Oliveira (2005) e também por Araújo (2009), o surgimento e o desaparecimento de ilhas aqui e acolá exige dos povos que vivem na beirada do rio São Francisco um modo específico de manejar a terra e organizar suas plantações e criações. A mobilidade não se resume à do local de trabalho, mas também das moradias daquelas famílias que, de tempos em tempos, mudam de lugar acompanhando sempre a dinâmica do rio. Luz de Oliveira (2005) esclarece que o termo “vazanteiro” constitui-se como categoria nativa dos povos que tradicionalmente ocupam as margens da baixada média sanfranciscana e muitas vezes pode ser associado às categorias de “barranqueiro”, “lameiro”, “varjeiro” e “varzeiro”: todos dizem respeito a uma autoidentificação com um modo de vida específico baseado na lida cotidiana com a natureza.

Little (2002) atribui aos processos de miscigenação e sincretismo cultural, a diversidade de povos e comunidades tradicionais que vivem à beira do Rio São Francisco mineiro e que, segundo Costa (1999) se constituíram no âmbito de um amplo “território negro na Mata do Jaíba”. Alguns estudos41 ratificam a existência desse grande território negro na região do Norte de Minas povoado por negros fugidos da escravidão e que ali encontraram condições propícias para viverem em liberdade e de forma autônoma. A existência desse território negro por si só já nos remonta a um complexo de particularidades no qual se desenvolveu a ocupação da região aqui estudada. Os grupos sociais que foram sendo formados ali, se diferenciaram no seu processo de reprodução social e consequentemente, foram se distanciando cada vez mais dos padrões sociais hegemônicos. Casamentos interétnicos entre os grupos negros e povos indígenas fazem parte das origens das comunidades vazanteiras ao longo do rio São Francisco. As heranças são a apropriação coletiva e familiar do ambiente, o modo de vida extrativista, a caça, a pesca, a criação de gado na solta e o manejo das ilhas e vazantes.

A chegada das cercas do gado e do parque

Os “dramas sociais” (TURNER, 2008) vivenciados pela comunidade vazanteira de Pau de Légua foram identificados por Anaya (2012) a partir de duas temporalidades: o tempo do Liberto e o tempo do Encurralamento. De acordo com os relatos dos vazanteiros de Pau de Légua, primeiro vivenciou-se um momento de liberdade e autonomia em relação ao território, o chamado “tempo antigo” ou “tempo de liberto”; em seguida, sobreveio o “tempo do encurralamento”, com a ruptura a partir da chegada do agronegócio e, depois, com a criação de uma unidade de conservação no território.

Ao relembrarem o tempo antigo, os vazanteiros de Pau de Légua referem-se a ele com saudosismo e nostalgia, afinal, representa um momento de liberdade em relação ao território. Tal liberdade lhes permitiu viver também um tempo de fartura, pois era quando podia-se plantar, colher e criar animais livremente em toda a extensão do território vazanteiro, de forma coletiva entre as famílias que ali habitavam. (DIAGNÓSTICO SOCIOAMBIENTAL DE PAU DE LÉGUA, 2018).

A dinâmica de ocupação do território vazanteiro era compartilhada com intenso fluxo migratório de outras comunidades vindas do nordeste. Comunidades estas com a mesma origem negra e indígena e que compartilhavam as formas de apropriação e uso do ambiente e as regras morais instituídas na relação com a natureza. Tal fluxo migratório remete ainda às primeiras décadas do século XX. Nesse tempo, segundo relato de um membro antigo da comunidade, famílias vindas da Bahia e de outras localidades norte mineiras, se instalaram naquele lugar para trabalharem como “agregados”42 para o Sr. José de Oliveira, fazendeiro que mantinha relação pacífica com os grupos vazanteiros com quem compartilhava o território e que deixou como herdeiro seu filho, Darly de Oliveira43. Os vazanteiros de Pau de Légua relataram terem também boa relação com o fazendeiro Darly de Oliveira, de maneira que muitos se referiam a ele como “Padrinho Darly”. Essa boa convivência entre fazendeiro e “agregados” simboliza as relações que foram sendo estabelecidas no Norte de Minas quando da sua ocupação territorial a partir do século XVII. Tratavam-se de relações harmônicas de um modo geral, porém marcadas pela subordinação e dependência.

Naquele tempo, os moradores da comunidade tinham livre acesso às inúmeras lagoas, não somente para a pesca e para o plantio como garantia de sua subsistência, mas também para os momentos de lazer.

Eu lembro como hoje. Teve uma festa lá, festa do Bom Jesus, todo ano, todo ano, esse pessoal da Lavagem (lagoa) vinha tudo pela Lagoa de canoa, e encostava lá e ia pra lá. [...] era aquele tanto de panelada, era peru, carne de porco, era trenheira lá. Aí o sanfoneiro subia, tirava o altar lá, uma espécie de um palcozinho assim e ficava tocando. Aí a festa era boa, e era gente... era gente! (Entrevista concedida por membro da comunidade de Pau de Légua, 2017).

A Lagoa da Lavagem, sempre presente nas memórias resgatadas pelos moradores de Pau de Légua, era o cenário de boas lembranças, constituindo-se como um lugar simbólico e elementar para a história da identidade de Pau de Légua.

Foi nessa época, no chamado “tempo antigo” que os vazanteiros da Ilha de Pau de Légua começaram a fortalecer os laços com seu território, laços já criados por seus ancestrais. Ali decidiram permanecer e se reproduzir socialmente. A existência de um cemitério na localidade torna-se um símbolo de pertencimento ao território, afinal aquele era o local escolhido por eles para colocar em descanso seus entes queridos. A criação do cemitério sacralizou o “local”, conferindo a ele agora o status de “lugar”, permitindo aos vazanteiros uma ligação com seus ancestrais, com o eterno.

O lastro mítico44 na comunidade de Pau de Légua é acionado nas figuras do Caboclinho D’água, do Gritador, da Bolinha de ouro e também da Santa do Morro. No que diz respeito à devoção à Santa do Morro, esta mostra-se como um dos mais importantes elos entre o território e os vazanteiros de Pau de Légua. A aparição e também o súbito desaparecimento da Santa transformou um simples morro em meio a tantos outros que existiam no território, em um lugar sagrado para os habitantes dali. Os vazanteiros de Pau de Légua passaram a alimentar a sua fé fazendo visitas esporádicas ao local onde aparecera a imagem, voltando-se a ela para fazer promessas e agradecimentos pelas graças alcançadas. Fato marcante foi o vivenciado durante o trabalho de campo realizado na comunidade de Pau de Légua, onde tivemos a oportunidade de conhecer, na companhia de antigos membros, o Morro da Santa, hoje englobado pelo Parque Estadual da Mata Seca. Atualmente proibidos pelos agentes ambientais de visitar o local, os membros da comunidade mostraram-se emocionados ao retornar ao lugar sagrado e que os conectava com sua história e seus antepassados. A equipe ouvia atentamente às histórias que os membros da comunidade contavam, enquanto um deles, retirando a camada de folhas e terra que cobria o chão, encontrou a cruz que enfeitava o altar construído para a Santa. De acordo com um membro da comunidade, aquela era uma prova da ocupação territorial ali existente, um símbolo da ancestralidade.

Figura 2 - A cruz que enfeitou o altar da “Santa do Morro” descoberta pelos moradores de Pau de Légua durante incursão no território em 2018.

Fonte: SANTOS, 2018.

Fato é que todo esse território livre e farto descrito pelos vazanteiros como o “tempo de liberto” ou “tempo antigo” (ANAYA, 2012), passou a ser subsumido pelas políticas públicas desenvolvimentistas implantadas no Norte de Minas entre as décadas de 1940 e 1960. A modernização do campo e sua ocupação por grandes empresas rurais foram incentivadas pelos programas desenvolvidos pela SUDENE e pela regularização fundiária da RURALMINAS.

Do tempo antigo ao encurralamento

Conforme os registros notariais pesquisados, por volta de 1973, Darly Oliveira decidiu vender suas terras para Air Vieira45, e a partir de então as relações baseadas no apadrinhamento e a vida esteada na autonomia sobre o território desapareceram a tal ponto que os vazanteiros se viram expropriados de seu território. Conforme contam os membros da comunidade, as famílias tiveram que sair às pressas porque, diferentemente de Darly, Air Vieira se apossou46 do território com violência, privando os habitantes de terem acesso aos recursos ali disponíveis. Segundo os relatos, assim que assumiu a propriedade, o fazendeiro deu ordem para que fossem derrubadas todas as casas, fazendo a substituição de algumas que eram de taipa por casas de alvenaria. Anaya (2012) descreve esse primeiro momento de ruptura ressaltando que tudo isso foi feito com a finalidade de apagar qualquer vestígio de ancestralidade ali existente, o que acaba sendo corroborado pelo fato do fazendeiro ter renomeado determinados lugares do território que já tinham nome dado pelos membros da comunidade. A Lagoa da Lavagem passou a ser chamada de “Lagoa da Prata”, enquanto a Lagoa da Picada passou a ser chamada de “Lagoa Encantada”.

Depois da expulsão dos membros da comunidade do território, Air Vieira deu início à execução de várias atividades econômicas na fazenda, trazendo pessoas de outras localidades para trabalhar para ele. Além de criar gado, o fazendeiro produzia carvão em grande escala. O corte de madeira também era voltado para uso próprio e segundo um dos informantes, grande parte da madeira extraída era levada para uso em outra fazenda de propriedade de Air Vieira. As atividades de Air Vieira na região foram diminuindo aos poucos, até mesmo em função da divisão das terras entre ele e seus filhos Mércio, Gualter e Jairo Ataíde Vieira, conforme informações extraídas dos registros cartorários constantes nos autos da Ação de Desapropriação analisada.

Durante esse momento de ruptura, os vazanteiros de Pau de Légua tiveram de reconstruir suas vidas em outros locais, mas o vínculo territorial foi mantido, dividindo suas vidas entre a periferia de Matias Cardoso, localizada do outro lado do Rio São Francisco, e a beira rio de seu território. Eram pessoas habituadas com o lugar em que viviam, lá desenvolviam uma dinâmica particularizada com a natureza local e, de repente, tiveram de se deslocar para outros ambientes, com uma dinâmica completamente diferente daquilo que aquele povo já viveu. Eles não pertenciam à vida das cidades e, ao longo do tempo, conseguiram exteriorizar esse estranhamento através do uso da palavra “rua” para se referirem à cidade: “Aí de lá que eu fiz uma casinha lá na rua”; “Aí eu tive que pegar e começar fazer bico na rua, comecei a pegar trabalho de pedreiro na rua, carpinteiro...”(Entrevista concedida por membros da comunidade de Pau de Légua, 2017). A cidade não representava uma casa, um lar, e morar ali significava o mesmo que morar na rua, morar em um local com o qual não há identificação, um local que pode se tornar a casa de qualquer um.

Foi justamente por conta dessa dificuldade em terem que se adaptar a uma vida diferente da que estavam acostumados é que, paulatinamente, os vazanteiros de Pau de Légua foram retomando parte de seu território. Impedidos de terem acesso às lagoas, tendo em vista as investidas de Air Vieira na expropriação do território, os vazanteiros desenvolveram uma estratégia para sobreviverem, a “recursagem”. Tratava-se de rápidas e discretas incursões no território, de maneira a não serem pegos por algum funcionário do fazendeiro. De acordo com Araújo (2009), a recursagem se dava nas áreas de lagoas, pois essas eram o ponto de referência para a coleta de alimentos ofertados pela natureza, embora as lagoas também oferecessem outros produtos que auxiliavam a pesca no próprio Rio São Francisco (ARAÚJO, 2009).

Os vazanteiros de Pau de Légua viram no declínio das atividades dos fazendeiros no território uma oportunidade para reterritorialização. Assim, aos poucos, principalmente aqueles que haviam se abrigado em Matias Cardoso, atravessaram o rio e foram retomando pequenas partes de seu território. Com a iniciativa dos primeiros, os outros membros da comunidade também foram retornando, mas todos de uma maneira muito tímida, restringindo-se às proximidades da beira do rio. Cumpre esclarecer que esse processo de retomada foi apenas parcial, de maneira que os vazanteiros não alcançaram a integralidade de seu território.

Foi logo após essa retomada que a comunidade experimentou o que Anaya (2012) denominou tempo de “intensificação da crise”. A “intensificação da crise” foi fruto da criação de uma unidade de conservação de proteção integral sobreposta ao território vazanteiro, intensificando o processo de “encurralamento”, categoria nativa utilizada para se referir à perda de domínio territorial e confinamento das comunidades vazanteiras nas margens e ilhas do rio São Francisco.

Com a criação de uma unidade de conservação de proteção integral os vazanteiros passaram a ter que conviver com a restrição absoluta de uso das áreas que faziam parte de seu modo de vida tradicional. Não obstante a criação do parque datar do ano 2000, através da publicação do Decreto nº 41.479 de 20 de dezembro de 2000, os vazanteiros somente começaram a sentir as restrições dos agentes ambientais em meados de 2003. O Parque Estadual da Mata Seca se enquadrava inicialmente nos chamados “parques de papel”, aqueles parques que existiam apenas na legislação que os criou. Na prática, não havia qualquer estrutura e, em muitos casos, nenhum método de controle da conservação da área a que se propunha. No caso do Mata Seca, o fato de tal unidade de conservação ter sido criada sem qualquer participação das populações que ali moravam, só corrobora a ideia de que tratava-se de um parque criado sem qualquer estudo socioambiental e sem consulta às populações locais que foram alijadas do processo. Foi criado tão somente como medida de compensação ambiental à expansão do Projeto de Fruticultura Irrigada Jaíba em sua Etapa II47.

Com a criação do parque, nem mesmo a “recursagem” é permitida. Avançar as cercas do parque passou a ser uma alternativa não cogitada pelos vazanteiros, já que as penalidades ambientais impostas por tal prática tornam a exploração dessa parte do território em algo impraticável. Os membros da comunidade se viram terminantemente proibidos de circularem pela área do parque, sob pena de serem autuados pelos órgãos ambientais, restando- lhes apenas a beira do rio a que tinham recorrido após o primeiro momento de ruptura. Devido as restrições de acesso às lagoas, a partir de então passaram a adquirir o peixe para consumo em determinadas épocas do ano, ao invés de pescá-lo. Também viram a sua área cultivável ser diminuída drasticamente, já que não podem mais plantar nas áreas próximas às lagoas e nas vazantes, como costumavam fazer nos tempos de cheia. O quintal pequeno e limitado é o único espaço que têm para plantar alimentos para sua subsistência. Essa restrição impossibilitou o cultivo de determinados alimentos que antes nunca lhes tinham faltado na mesa, a exemplo do arroz. Além da pesca nas lagoas, outras atividades passaram a ser proibidas, como é o caso da caça, e outras passaram a ser restringidas, como é o caso da criação de animais. Até a criação de animais domésticos tornou-se uma proibição, já que os cachorros a partir de então tinham de viver presos para não adentrarem as áreas do parque, sendo soltos apenas no período noturno quando não havia fiscalização. A limitação a estas áreas fez com que a comunidade se tornasse dependente de um comércio externo para aquisição de alimentos que antes, no “tempo antigo”, eram produzidos por eles e com fartura.

Não tinham mais acesso à Lagoa da Lavagem, lugar simbólico e elementar para a história da identidade de Pau de Légua. Ao Morro da Santa também não podiam ir fazer suas preces e agradecimentos. O tempo de encurralamento também cessou as festas e comemorações da comunidade. O Gritador, o Caboclo D’água e a Bolinha de ouro, são vistos com menor frequência devido à degradação do rio e das lagoas, comprometendo as relações construídas com os seres míticos que regulam as regras sociais de acesso e uso da natureza.

As territorialidades em disputa: direitos e interesses

a sobreposição de distintas territorialidades remete também as formas de apropriação de terras e de regularização fundiária que estão em jogo. Os vazanteiros de Pau de Légua, na condição de posseiros, não foram contemplados pela legislação fundiária que contempla apenas a posse e a propriedade individual da terra. A posse da terra neste caso é familiar e de uso coletivo, nos moldes das terras tradicionalmente ocupadas, conforme Constituição Federal de 1988 e Decreto nº 6.040/200748. Fazendeiros e grandes empreendimentos rurais obtiveram os títulos de propriedade individual da terra da RURALMINAS49 , órgão responsável pela regularização fundiária da região na década de 1960/70 e pela expansão das mesmas.

Em contraposição as concepções hegemônicas de posse e propriedade construídas pela sociedade capitalista, povos e comunidades tradicionais desenvolveram racionalidades distintas para o uso dos recursos naturais, criando sistemas de uso comum da terra que variam de acordo com a categoria e até mesmo com a etnia em que se enquadram. São regimes de propriedade comum, onde muito embora exista um resquício de individualidade em relação ao produto do trabalho – uma individualidade que se dá em recortes familiares - as formas de apropriação da natureza e de acesso aos recursos naturais se dão no plano da coletividade (LITTLE, 2002). A água, o solo, a fauna e a flora são propriedades comum pertencentes a toda a comunidade e integram parte do território.

Estas formas alternativas de apropriação e uso da terra não são abordadas pelo sistema jurídico e, de fato, não são sequer mencionadas nos diplomas legais que regulam a questão fundiária no Brasil. Luz de Oliveira (2005) esclarece que essa lacuna jurídica é motivada principalmente pelo modo coletivo em que se dão essas formas de ocupação territorial, que transcendem o aparelho estatal montado para atender a interesses específicos relacionados à questão agrária. O Estado vê na autonomia territorial embutida nos regimes de propriedade alternativos de povos e comunidades tradicionais uma ameaça à sua soberania. A razão instrumental do Estado – sua divisão em propriedades públicas e privadas - é colocada como uma divergência à razão histórica das populações tradicionais – regimes de propriedades comuns, sentimento de pertencimento ao território, acionamento da memória coletiva para afirmação territorial -, apesar de não se tratarem necessariamente de categorias antagônicas.

No caso, da comunidade tradicional vazanteira de Pau de Légua observa-se um sistema próprio de cessão de direitos possessórios por eles nominado de “direito de uso”. O “direito de uso” pode ser entendido como uma construção social que foi sendo elaborada pela comunidade durante seu processo de territorialização. Portadores de racionalidade diferenciada em relação ao privado, os vazanteiros de Pau de Légua conceberam um sistema de cessão de direitos possessórios como uma alternativa aos meios legais de aquisição de propriedade vigentes na sociedade. Durante as entrevistas realizadas no decorrer desta pesquisa, muito se falou a respeito do chamado direito de uso e de como a confiabilidade era fator determinante nas transações. Em uma das entrevistas, um informante relatou a compra e venda de terras e, ao ser questionado sobre como esse processo era realizado, nos informou que o que se comprava era o “direito”. Questionado sobre como se dava a compra do “direito” o informante nos explicou detalhadamente: “Assim, igual eu tô ali. Eu vou sair, eu vendo meu direito, minha benfeitoria, casinha, essas coisas com tudo ali. Não vendi terreno não, só o que eu tinha mesmo, só a benfeitoria. Meu pai mesmo comprou foi o direito do cunhado de Darly” (Entrevista concedida por membros da comunidade de Pau de Légua, 2017). Ou seja, o que se compra ou cede é o direito de trabalhar na terra e não a terra em si, pois a relação com ela é de valor patrimonial e não mercadológico como nas relações de base capitalista. Em outra entrevista, um informante nos relatou que seu pai teria adquirido suas terras ainda na mão do fazendeiro Darly. Ao ser questionado sobre como teria se dado essa compra e venda e se havia registro da mesma, o entrevistado nos revelou que a compra e venda de imóveis era realizada na forma verbal, dada a confiança que as partes depositavam entre si. Era requisitada a presença de uma ou duas pessoas para testemunharem a celebração do contrato verbal, o que já era suficiente para que a compra e venda se efetivasse. Em suas palavras: “Não, naquele tempo era a palavra do homem. Aí chamava uma, duas pessoas.” (Entrevista concedida por membro da comunidade de Pau de Légua, 2017).

Não é por acaso que a simples compra e venda do “direito de uso” da terra transforma- se quase que em um ritual para os vazanteiros de Pau de Légua. Transmitir o direito de lavrar a terra e dela colher os frutos de seu trabalho é algo sagrado para aqueles que dela vivem. Mais ainda quando leva-se em conta o fato de que a terra faz parte da história de vida daquela comunidade. Como se pode ouvir em vários relatos, muitos ali tiveram seus umbigos enterrados naquelas terras, o que fortalece ainda mais a ligação daquele povo com seu território, ressignificando-o: ele deixa de ser uma simples área de cultivo e passa a ser um lugar de memórias, histórias e de reconhecimento de sua identidade.

Considerações finais

Os ciclos expropriatórios vivenciados pelos vazanteiros de Pau de Légua levara esse povo a se adaptar a essa nova realidade por questões de sobrevivência, fazendo pequenos ajustes em seu modo de vida costumeiro, ao verem-se obrigados a atender às exigências de um sistema que era incompatível com seu modo de vida tradicional. A légua, unidade de medida utilizada no tempo antigo e que deu nome ao lugar, foi substituída pelos hectares. A medição do terreno em hectares não era uma prática dessa comunidade até a chegada dos fazendeiros com sua concepção de acumulação de terra através do cercamento e da capitalização dos recursos naturais. Para além disso, o território que antes era compreendido como pertencente à coletividade, foi expropriado e reduzido a lotes de 10 hectares a partir de uma orientação do IEF/MG, devido à situação de conflito. Neste contexto, o órgão impõe a mesma lógica territorializante do capital, a partir da espoliação de seu território tradicional, o confinamento do grupo em lotes individuais e o impedimento de acessar e exercer seu modo de vida de forma dialética com a natureza.

Além dessa transformação dos regimes de propriedade, o lugar também sofreu transformações paisagísticas a partir dos ciclos expropriatórios ali deflagrados. A natureza sofreu alterações e onde se viam árvores nativas de dezenas de anos – quixabeira, jatobá, pau jaú, aroeira, angico, braúna, embaré – passou-se a ver um enorme vazio deixado pelos grandes empreendimentos agroindustriais ali instalados: as monoculturas, a instalação de pivôs centrais e a construção de pastos para a criação de gado bovino.

Por outro lado, a área em que se localiza a unidade de conservação foi se revelando no decorrer desta pesquisa e, em consequência, os questionamentos foram surgindo. Não se sabe os motivos que levaram o Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais - IEF a destacar uma área para conservação integral tradicionalmente ocupada por povos e comunidades tradicionais sem sequer incluí-los nesse processo. O que se verificou foi que o instituto ignorou a existência daquela população a fim de concluir a demanda que lhe foi incumbida de executar o condicionante ambiental do Projeto Jaíba. Não obstante a lei do SNUC, Lei nº 9.985/2000, preveja a realização de consulta pública, o Estado não se ateve ao cumprimento integral da lei, e além de não realizar qualquer consulta à população local, procedeu como se gente não tivesse naquele lugar. Ademais, levando-se em consideração que a área do parque compreende uma extensão territorial que vai desde a margem do Rio São Francisco, é possível afirmar, a princípio, que houve incorporação de áreas consideradas pertencentes à União, uma vez que as áreas marginais de rios que banham mais de uma unidade federativa pertencem à União, conforme disposição constitucional do art. 20, III da Constituição Federal (BRASIL, Constituição Federal de 1988). Por fim, resta-nos mais um questionamento acerca da atuação do Estado, uma vez que, a princípio, não haveria razões para o IEF proceder à indenização a particulares por áreas que supostamente pertencem à União.

A complexidade da questão fundiária que envolve o território de Pau de Légua transcende a temática da redistribuição de terras, abrangendo também as políticas públicas voltadas para o reconhecimento de formas alternativas de ocupação territorial. pluralidade de povos, etnias e ambientes em todo o território brasileiro requisita um sistema jurídico igualmente diversificado, onde regramentos distintos possam coexistir, sem necessariamente formarem um campo de disputas. O reconhecimento dessa pluralidade por parte do Estado significa, necessariamente uma mudança radical em suas políticas públicas, notadamente nas ambientais.

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CAPÍTULO 7

GERAIZEIROS DO ALTO RIO PARDO-MG: LUTAS POR TERRITÓRIO E INVENTIVIDADE LOCAL50

Aldinei S. Dias Leão
Rômulo Soares Barbosa

Introdução

No final da década de 1990 e no início da década de 2000, emerge no norte de Minas Gerais uma intensa luta de comunidades tradicionais contra um fenômeno denominado de encurralamento, que, grosso modo, diz sobre a restrição territorial imposta pelas políticas desenvolvimentistas, ocorridas a partir da década de 1970. Tais restrições se dão tanto pelos monocultivos de eucalipto em larga escala, incidindo sobre partes importantes dos seus territórios – as terras de uso comum – quanto pela criação de reservas ambientais, enquanto política compensatória, face aos passivos ambientais.

A luta contra o encurralamento intensifica nas comunidades o sentimento de pertencimento ao lugar, como fonte de energia e força para continuarem reproduzindo seus modos de fazer e viver. Tal sentimento se afirma no contraste com grupos sociais diferentes e potencializa o enfrentamento aos causadores da violência física e simbólica.

O presente estudo busca analisar os processos sociais de lutas territoriais e de reafirmação identitária e autoafirmação de uma das categorias desses sujeitos coletivos de direito: as comunidades tradicionais geraizeiras do Alto Rio Pardo. Pretende-se trazer ao debate as lutas, reivindicações e movimentações das comunidades Baixa Grande e Moreira, município de Rio Pardo de Minas, em seus processos de afirmação das suas identidades e de luta pelo reconhecimento formal e proteção dos seus territórios. Desta feita, busca-se lançar luz à contribuição desses sujeitos coletivos de direito para a construção de um pensamento contra hegemônico, contrastando com o projeto monocultor globalizante.

Ao passo que avançam na autodemarcação e reocupação de partes de seus territórios, outrora expropriados pela monocultura ou pela ação de grileiros – as chapadas e cabeceiras, as comunidades de Baixa Grande e Moreira têm buscado munirem-se de instrumentos capazes de dar forma jurídico-normativa às suas demandas por direitos territoriais. Um desses instrumentos, pretendidos pelas comunidades, é a legislação municipal. A exemplo do que fez a Comunidade de Sobrado, naquele mesmo município, Baixa Grande e Moreira vêm construindo projetos de lei buscando o reconhecimento formal de suas tradicionalidades e a proteção dos seus territórios.

Essas experiências examinadas são processos sociais que podem ser denominados como o Direito forjado nas grotas e nas chapadas. Trata-se, portanto de analisar as motivações dessas comunidades, bem como as suas contribuições para o debate sobre a temática relacionada aos povos e às comunidades tradicionais. De igual importância é a contribuição dessas experiências para o aprimoramento do Direito, entendido aqui não como algo estanque, mas compreendido dentro de um processo dialético-social.

Geraizeiros: território e identidade

Os conceitos de território e de identidade são fundamentais para se entender os significados da luta das comunidades tradicionais. Território aqui é entendido além do sentido de espaço, visto que é justamente o resultado da transformação deste, a partir de uma relação vivenciada por um coletivo, que atribui disposições simbólicas, criando vínculos de ancestralidade transmitidos de geração em geração, portanto, elementos geradores de identidade.

Autores como Raffestin (1993), Fernandes (2006), Souza (2001) e Little (2002), trazem elementos fundamentais para a compreensão de território que baseiam o presente estudo. Em apertada síntese, trata-se de uma compreensão a partir da ação de grupos sociais específicos que ocupam determinados espaços geográficos, exercendo controle e se identificando com os seus aspectos biofísicos, imprimindo aspectos sensoriais, sentimentais, simbólicos ou cosmológicos (SOUZA, 2017, p. 94).

Para Claude Raffestin (1993) a compreensão de que a existência do espaço antecede a formação do território é essencial. “O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático em qualquer nível”. Dessa forma, para o autor, a territorialização do espaço se dá na medida em que o ator se apropria dele, entendendo assim, o território como sendo “um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder.” (RAFFESTIN, 1993: 144)

O Geógrafo Bernardo Mançano Fernandes ressalta que são as relações sociais que transformam espaço em território, e que para compreendê-lo em sua multidimensionalidade, três relações são explicitadas: a contradição, a solidariedade e a conflitividade. Desde modo, o território “é espaço de liberdade e dominação, de expropriação e resistência.” (FERNANDES, 2006).

A respeito das relações de poder, elemento fundamental para a configuração do território, Souza (2001) salienta que não se restringe ao Estado e não se confunde com violência e dominação. Dessa forma, o conceito de território deve abarcar mais que o território do Estado- Nação. Assim, o autor diz que “todo espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder é um território, do quarteirão aterrorizado por uma gangue de jovens até o bloco constituído pelos países membros da OTAN” (SOUZA, 2001, p. 11).

Ao desenvolver uma antropologia da territorialidade, que estuda elementos que manifestam as particularidades de cada povo nas suas relações com os seus territórios, Little (2002, p.3-4) lança luz sobre os “saberes ambientais, ideologias e “identidades”, entendendo o território como “produto histórico de processos sociais e políticos”. Tal conceito, portanto, “inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele” (LITTLE, 2002, p. 4).

Para Litlle (2002) existem diferentes formas de apropriação do território, que vão além da dicotomia entre o privado e o público. Para o autor, os povos tradicionais do Brasil, em que pesem estar, por vezes, submissos à razão instrumental, devido à diferença de poder, por outro lado apresentam características que os colocam em contraposição a ela, pela ótica da territorialidade expressa pela razão histórica. Sob esta ótica, incorpora-se “elementos comumente considerados como privados, já que pertencentes a um grupo específico de pessoas, mas que existem fora do âmbito do mercado” (LITTLE, 2002, p. 7). Estas formas de apropriação, todavia, como fundamentam-se em um arcabouço de leis costumeiras – direito consuetudinário – raras vezes são reconhecidas e respeitadas pelo Estado, o que torna esses grupos sociais marginalizados, face aos principais centros de poder político.

Nesse ponto, necessário fazer menção aos territórios geraizeiros, já que, conforme Brito (2006), ali existia um regime diferenciado de propriedade, que se assemelhava ao que McKean e Ostrom denominam de regime de propriedade comum, onde:

um grupo particular de indivíduos divide os direitos de acesso aos recursos, assim caracterizando uma forma de propriedade – ao invés de sua ausência. Em outras palavras existem direitos, e estes são comuns a um determinado grupo de usuários e não a todos. Dessa maneira, a propriedade comum não se caracteriza por acesso livre a todos, mas como acesso limitado a um grupo específico de usuários que possuem direitos comuns (MCKEAN E OSTROM, 1995, p. 81)

Nos últimos anos, a busca por reconhecimento formal desses direitos comuns perpassam por lançar mão de uma série de estratégias políticas, por esses distintos grupos sociais. Tais estratégias partem do pressuposto de que, ainda hoje, é necessário o desenvolvimento de leis e normas próprias, capazes de trazer à discussão jurídico-normativa as diversidades de sentidos de territorialidade. Little alerta, todavia, sobre o cuidado para não se fundir as análises etnográficas com as categorias jurídicas, visto que as análises etnográficas se firmam sempre na totalidade complexa da realidade, não podendo resumir aos dogmatismos.

Sem o devido espaço para debruçar-se sobre a vasta literatura que trata das formas de ocupações dos gerais51 , fundamental a compreensão de identidade a partir da relação, indissociável, desses sujeitos coletivos com esse ambiente. Gerais utilizado, sobretudo na região norte do Estado de Minas Gerais, para definir as áreas de cerrado, como os planaltos, topos de serra, encostas e vales. Portanto, a relação com o bioma é o que diferencia essas populações e comunidades tradicionais. A relação dinâmica das comunidades com o meio em que vivem traz importante simbolismo, no processo de afirmação da sua identidade.

Para Brito (2012) os Gerais são mais do que uma paisagem. São também a representação simbólica, sociocultural-espacial-paisagística indissociável. A referida autora também leciona que a afinidade intersubjetiva com a natureza guiou a vida humana nos Gerais, cuja ocupação do espaço remete à ocupação indígena antiga, além de estar na rota das primeiras incursões dos colonizadores portugueses.

A alteridade e os processos autoidentitários e de resistência dos geraizeiros do Alto Rio Pardo

As proposições de Bourdieu (2010) propiciam a compreensão dos processos de autodenominações da contemporaneidade, visto que suas análises contribuem para elucidar como as categorizações ganham realidade, seus efeitos sociais práticos, ou seja, como criam uma “realidade objetiva”. A possibilidade de influência efetiva da representação que o grupo social faz de si mesmo vai depender de sua “eficácia performativa” em relação a seu reconhecimento pelos outros, pois, segundo Bourdieu (2010), no “ser percebido como distinto” e reconhecido como legitimamente diferente consiste em o “existir socialmente”.

No caso em análise, percebe-se que a autoafirmação dos geraizeiros guarda uma profunda relação de alteridade, no contraste com os habitantes do biomo vizinho, a caatinga e os seus habitantes históricos: os catingueiros. Conforme afirma o geraizeiro João Marques Chiles, em sua dissertação de Mestrado, “os agricultores e agricultoras, homens e mulheres, sabem o que é ser geraizeiro pelo catingueiro” (CHILES, 2018). O termo era tido como uma “alcunha pejorativa”, atribuída pelos povos da caatinga aos camponeses que, descapitalizados, se dirigiam ao bioma vizinho para vender sua mão-de-obra nos campos de algodão ou comercializar seus produtos nas feiras locais.

Outro termo ainda complementava a particularidade daqueles, o chiste “Cacunda di librina”, atribuição também dada pelos caatingueiros visto que de onde aqueles vinham, geralmente montados em seus cavalos ou mulas – os tropeiros dos gerais – sempre chegavam com as costas molhadas pela neblina do alto das serras, ao contrário do que ocorria no lado da caatinga, que pouco chovia.

Não obstante outras denominações, conforme menciona Dayrell (1998):

Chapadeiro, Geralista, Geraizeiro são termos que encontramos em diferentes regiões no Norte de Minas e que fazem referência a um tipo de população que se diferencia das demais. Estes termos são ouvidos, quase sempre, em regiões que fazem contato entre ambientes distintos, onde são explícitas as diferenças ecossistêmicas, como no caso dos Cerrados e da Caatinga. (DAYRELL, 1998, p. 73)

Na microrregião do Alto Rio Pardo, assim como em outras partes da região norte de Minas Gerais, a categoria “geraizeiro” é comumente acessada para diferenciar essas comunidades, no seu jeito de fazer, viver, bem como no relacionamento intra e intercomunitário e com outros grupos sociais. A categoria geraizeiro, portanto, é um dos principais vetores no processo de autoafirmação identitária desses grupos, cujo território “oferece elementos discursivos e performativos de justificação para as demandas desse grupo, numa ampla arena de articulação política” (NOGUEIRA, 2009, p. 23)

Para um líder comunitário entrevistado52:

Identificar como geraizeiro, tendo raiz neste lugar, aí já tá no sangue de cada um de nós aqui, Comunidade de Moreira. Nós se identifica como geraizeiro porque as práticas que a gente aprendeu só os geraizeiros faz, usa dessas pratica. É peculiar, é diferente das outras pessoas, da caatinga, por exemplo, se planta algodão – se plantava, hoje cria só gado – o geraizeiro não consegue se sustentar somente com uma coisa só: ele tem que ter várias práticas, aprender vários ofícios para ele tirar uma pequena renda daquilo lá. Primeiro: a extensão de terra é muito pequena. Se for ver, dentro da comunidade de Moreira, um fazendeiro só, lá do lado da caatinga ou mesmo aqui do município de Rio Pardo, tem muito mais terra que uma comunidade inteira onde tem trinta e duas famílias, que vive e sobrevive e não precisa pedir nada a ninguém, para ter seu sustento. A maioria das famílias aqui não tem um hectare de terra para trabalhar e vive, não rouba de ninguém, mas planta arroz, planta feijão, tem mandioca, faz farinha, faz goma, tem café, tem cana, faz rapadura. (Entrevista realizada em 30/12/2020)

O “ser diferente”, presente em diversas falas do entrevistado A, assim como nas rodas de conversas com os grupos pesquisados, diz sobre a relação de pertencimento ao ambiente, de onde provem o sustento, a renda e o “viver bem” do geraizeiro. Isso porque, ao longo dos anos, perpassando por diversas gerações, os geraizeiros desenvolveram maneiras próprias de ocupação e manejo do Cerrado, “incluídos os seus diferentes ecossistemas, transformando-o assim nos Gerais - uma paisagem que resultou da coevolução dessas comunidades e do Cerrado no Norte de Minas Gerais” (OLIVEIRA, 2018, p. 24).

Deus fez essa comunidade aqui com tão pouquinha terra, mas o povo consegue viver. Já viveu muito melhor antes, mas consegue viver bem, graças a Deus. Então, ser geraizeiro, dessa forma, é ser diferente. Ele é diferente, ele busca. O geraizeiro não é acomodado, ele é do seu jeito, caladinho ás vezes, trabalha o dia a dia ali, mas ele se vira, se ajeita e tá vivendo. É casca grossa. (Entrevistado A)

O “viver bem” diz sobre poder colher os frutos do trabalho na agricultura tradicional, o acesso e o cuidado com as riquezas que os gerais produz: frutos diversos, pastagem para o gado, plantas medicinais, e, sobretudo, a água. A água, aliás, é tema central e recorrente, visto que se trata do principal vetor da luta dos geraizeiros, conforme se verá adiante. A relação de interdependência e de pertencimento com os Gerais guarda relação direta com este elemento vital. Isso porque as áreas de chapadas – os gerais, propriamente dito – dada às suas características de solo arenoso e vegetação de cerrado, funcionam como áreas de recargas para os lenções freáticos e nascentes, que abastecem os cursos d’água nas grotas e veredas, onde se situam as áreas de domínios familiares: o chão de morada.

E o gerais, ele é diferente também porque pode ele tá seco do jeito que for, onde tem mina, no gerais, a água é do mesmo tanto. Você for no gerais Santana, por exemplo, na maior seca, no mês de setembro, outubro, antes de começar as chuvas, se cê ir no rio ele tá do mesmo jeito, a mina do mesmo jeito, corre do mesmo tanto. O gerais, ele é rico. Se a vegetação tiver em pé, aquele povo que nasceu ali for pessoa trabalhador, que já sabe trabalhar na terra, ela vai produzir toda vida, tendo boa fertilidade. Então o gerais, ele é muito, muito, muito rico. Você pode observar: o gerais, ele não é de mata forte, mas tem muita fruta, tem água, tem pastagem, tem uma diversidade de coisa. É muito diferente. (Entrevistado A)

João Guimarães Rosa, na sua obra “Grande Sertão: Veredas”, define as pessoas do gerais como, sendo aquela “gente calada em si e sozinha, moradores das grandes distâncias” (ROSA, 1986: 130). Não contradizendo o autor, Oliveira (2018) alerta para a necessidade de se fazer a devida distinção entre o “ser gente calada e sozinha” com incapacidade de comunicar- se e interagir, concluindo que “o geraizeiro comunica em outras frequências e fala para além da verbalização” (OLIVEIRA, 2018: 23).

Um estudo de Izabel Brito (2006), desenvolvido na comunidade de Vereda Funda, no município de Rio Pardo de Minas, aponta elementos fundamentais para a compreensão do território geraizeiro, quer seja quanto à apropriação, uso e transformação do espaço, quer seja quanto ao “tecido social”: a noção de pertencimento, considerando os vínculos sociais, simbólicos e rituais. Este tecido social, portanto, consolida-se com a “aglutinação das pessoas por motivos religiosos e laços familiares, mas também pela necessidade de contato e convívio inerente ao ser humano” (BRITO, 2006).

Como consequência da forma de ocupação dos Gerais e da “mesclagem das diferentes formas de se relacionar com o outro e com a natureza, - indígena, africana e europeia” (BRITO, 2012) – tem-se, portanto o “ser geraizeiro”: pessoas que instalaram suas moradas e cultivo agrícola nas partes baixas da paisagem dos gerais, ao longo dos cursos hídricos, enquanto as partes altas, as largas chapadas, serviam para o uso comum, na criação de gado, coleta de frutos e plantas medicinais.

De Vereda Funda a Sobrado: motivações e estratégias dos geraizeiros do Rio Pardo na luta pelos territórios

Conforme Brito (2006), o território geraizeiro pode ser classificado como misto. Isso porque, existiam proprietários de “pedaços” particulares de terra. Porém, existia o terreno que era usufruído por todos para o extrativismo e a criação de gado. Essa definição, de território misto, é crucial para compreender uma das peculiaridades do território graizeiro.

Oliveira (2018) subdivide essas duas categorias, classificando as áreas comuns como sendo de áreas de uso comunitário (interfamiliar) e intercomunitário, enquanto os “pedaços particulares”, o autor classifica como sendo de uso familiar e interfamiliar. Estas compreendem as partes baixas ou veredas, propensas à instalação de moradias e de cultivo agrícola – brejos, beiras de rio, vazantes, vargens, tabuleiros, carrascos, capões – enquanto aquelas compreendem as terras altas, as chapadas.

Nas décadas de 1970 e 1980 as políticas desenvolvimentistas alteraram, sobremaneira, a paisagem dos gerais e o “viver bem” dos geraizeiros, ao expropriarem as partes altas do território. Essas grandes áreas de chapadas, tidas como terras devolutas, foram arrendadas pelo Estado para empresas monoculturas de eucalipto, sob a promessa de desenvolvimento econômico. Nesse cenário, e sob a lógica dicotômica de propriedade – pública e privada – tem- se, portanto a desconsideração da posse comum, que teve como consequência o encurralamento dessas comunidades nas partes baixas da paisagem.

Entre os geraizeros do Alto Rio Pardo, a comunidade de Vereda Funda foi pioneira na reação aos efeitos desse encurralamento, iniciando já no final da década de 1980, ainda que timidamente, um processo de organização e resistência. Esse processo de resistência, conforme afirmou Arcilo Elias dos Santos, desencadeia-se a partir do não cumprimento das promessas de melhoria de vida, feita pelas empresas e pelos agentes políticos locais (LEÃO, 2012).

Mas se nós tivéssemos sentido bem, se não tivesse acabado a água, se não tivesse causado problema com a liberdade nossa. Se as empresas tivessem oferecido boa qualidade de vida, se tivesse melhorado a vida das pessoas, o acesso à escola, saúde, a estrada, talvez isso não passava pela cabeça nossa. Que as pessoas só explodem na hora que tiver apertado. A mesma coisa que você pegar um gato e fechar aqui dentro, fecha essas portas tudo, as janelas e começa a insultar ele para você ver, ele não passa a ser gato, a partir dai ele passar a ser... ele pega a gente. Desse modo aconteceu com nós. (LEÃO, 2012, p.32)

Falecido em dezembro de 2014, vítima da doença de chagas, Arcilo foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Associação53 daquela comunidade, criada em 1986, com o intuito de “melhorar a vida da comunidade” (LEÃO, 2012, p. 44). Naquele mesmo período, tem-se o surgimento ou fortalecimento de organizações de trabalhadores, que, ao longo do processo, tem contribuição decisiva na busca pela retomada dos territórios geraizeiros, a exemplo do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAA-NM, a Comissão Pastoral da Terra – CPT e os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, organizados pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Minas gerais – FETAEMG.

Outro fator determinante na reorganização do tecido social abalado pela chegada do eucalipto (NOGUEIRA, 2009, p. 170), são as reuniões religiosas, destacando-se naquele período o movimento de Comunidades Eclesiais de Base – CEBs da Igreja Católica, cuja principal orientação consiste na junção entre fé e vida, permitindo uma vivência espiritual a partir das realidades vividas pelas comunidades. A junção das reuniões de organização social e de exercício da espiritualidade, portanto, é fator primordial no processo de retomada dos territórios dos Geraizeiros do Rio Pardo. Não por acaso, em sua imensa maioria, as sedes das Associações dessas comunidades encontram-se no mesmo ambiente, lado a lado com o templo religioso e, comumente, os horários de reuniões das Associações costumam ser após uma reunião religiosa, como os cultos dominicais.

No incio da década de 2000, outras comunidades geraizeiras do Rio Pardo e de outros municípíos da região do Alto Rio Pardo e de Grão Mogol, somam-se na luta pelos seus territórios, criando espaços de cinergia entre elas, a exemplos da Conferência Geraizeiras. Neste período, portanto, enquanto findavam-se os contratos de arrendamento, firmados entre o Estado e as empresas para a exploração das chapadas, têm-se o início de um processo de organização dessas comunidades, posteriormente denominado de Movimento Geraizeiro. Conforme Brito (2012) A memória ativa do ser gerraizeiro no passado alimenta o ser geraizeiro no presente, a reinvenção dessa identidade geraizeira, agora com seu viés político atualizado e explicitado.

Diversos são os encontros dessas comunidades a partir daquele período:

Manifestação em defesa da Chapada do Areião, na Comunidade de Água Boa (Rio Pardo de Minas); em 2002, (2) reunião com lideranças de diversas comunidades na Comunidade de Brejinho (Rio Pardo de Minas) em 2003, (3) Encontro dos Encurralados, na comunidade de Vereda Funda, em 2004. Em 2005, foi realizada (4) a primeira Conferência Geraizeira, no Assentamento de Tapera (Riacho dos Machados), cuja temática foi “a criação de Reservas Extrativistas – RESEX e o fortalecimento dos povos dos gerais”. (5) A segunda conferência Geraizeira, em 2006, no Assentamento Vale do Guará (Vargem Grande do Rio Pardo) contou com a participação de trezentos e cinquenta pessoas de quarenta municípios e deliberou sobre a luta pela criação de quatro RESEX nos municípios de Riacho dos Machados, Rio Pardo de Minas, Vargem Grande do Rio Pardo e Montezuma, além da “Carta dos Povos Geraizeiros” e da produção, pelo CAA (Centro de Agricultura Alternativa), do vídeo-documentário “Cacunda di Librina”54. (6) A terceira Conferência Geraizeira, no ano de 2007 na Vereda Funda, teve como tema “Terras públicas e o território geraizeiro”. (7) Em 2010, foi realizada a 1ª Romaria rumo ao Areião55. (8) Em 2013 os geraizeiros trancaram, por mais de 4 horas, a Rodovia Federal BR 251, com uma extensa pauta de reivindicações que, contudo, diziam respeito ao reconhecimento e proteção dos territórios tradicionais geraizeiros. E, por fim, (8) em 2014 foi realizada em Brasília – Distrito Federal, uma greve de sede e de fome pela criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável – RDS Nascentes Geraizeiras. (LEÃO, 2015)

Em 2014, a IV Conferência, realizada na comunidade de Cutica, no município de Fruta de Leite, reuniu lideranças geraizeiras, além de diversas entidades parceiras56 e teve como tema central a “Consolidação do Movimento geraizeiro”. Já a V Conferência Geraizeira aconteceu no ano de 2018, na Comunidade de Catanduva, no município de Vargem Grande do Rio Pardo, tendo como tema “Água e território”.

Atentando-se se aqui às experiências dos Geraizeiros do Alto Rio Pardo, ao passo que a luta avança e os encontros acontecem, cresce o número de comunidades que buscam, pela luta conjunta, reafirmar sua identidade e terem o reconhecimento formal dos seus territórios tradicionalmente ocupados. Na falta de instrumentos jurídicos específicos, esses sujeitos coletivos de direitos recorrem a estratégias distintas,

A busca pela reapropriação territorial das comunidades geraizeiras do rio pardo, que, segundo Brito (2012), “acontece a partir da “quebra” da dormência de uma resistência velada, mas que se transforma numa resistência reivindicatória” perdura por duas décadas, período em que importantes transformações ocorreram, quer seja na paisagem dos gerais, com a reconquista de importantes áreas destes territórios, quer seja no ordenamento jurídico, com o surgimento de novos institutos normativos e marcos regulatórios, possibilitando o reconhecimento formal desses territórios.

Nesse processo de autoafirmação identitária no Alto Rio Pardo os projetos de apropriação simbólica e material do mundo levados a cabo pelos Geraizeiros têm possibilitado a construção de realidades objetivas inovadoras. A reação das comunidades face à situação de encurralamento apresenta um caráter transformador, já que propõem construir novas formas de relação com o território, pois a reafirmação identitária, busca como consequência, a garantia de reconhecimento e proteção de um território, e também de uma identidade coletiva. Os intensos processos de luta levaram a coesão comunitária em prol de objetivos comuns, reavivando forças coletivas para a construção de um caminho conjunto, fazendo todos, ou pelo menos uma maioria entender, participando da luta, que tudo ainda está em disputa: o território e a identidade.

A comunidade de Raiz, um dos universos pesquisados por Brito (2012), ocasião em que se organizava para retomar seu território expropriado, sob o lema “nem que a coisa engrossa, a raiz é nossa”, continua lutando pela retomada do território demarcado na sua integralidade, contudo, alguns avanços merecem destaque. A atualmente intitulada Associação da Comunidade Tradicional Geraizeira da Raiz conquistou um importante reconhecimento formal, a certidão de autodefinição, emitida pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades – CEPCT, instituída pela lei estadual 21.147 de 2014. Outra conquista importante foi a negociação em processo judicial na Vara Agrária de Minas Gerais, para a devolução de parte de suas chapadas: 412 hectares, que já se encontra sob domínio da comunidade, de um total de 2380 hectares expropriados pela monocultura do eucalipto.

Na comunidade de Vereda Funda, uma das conquistas foi a criação de um Projeto de Assentamento Extrativista, PAE Vereda Vivas57, modalidade de assentamento ambientalmente diferenciado, implantado em reconhecimento à população tradicional que ocupa aquele território. Em um conjunto de comunidades numa área localizada entre os municípios de Rio Pardo de Minas, Vargem Grande do Rio Pardo e Montezuma, tem-se a criação da, Reserva de Desenvolvimento Sustentável Nascentes Geraizeiras, como forma de proteção de uma importante área de recarga hídrica e de uso comum dos geraizeiros, conhecida como chapada do Areião. Por outro lado, os geraizeiros figuram em autos judicias diversos, ora demandados, pela reocupação das chapadas, ora autores, em Ações Populares, pelo ressarcimento ao erário público, das terras griladas e pelos danos ambientais.

As comunidades também se articulam para se fazerem representadas em espaços decisórios, a exemplo da Comissão Estadual de Povos e Comunidade Tradicionais de Minas Gerais. Outras conquistas importantes sãs as certidões de autodefinição, reconhecimento formal dos seus territórios e de suas tradicionalidades. Munidos de farta documentação comprobatória, como laudos antropológicos, atas de auto reconhecimento e estudos diversos, elas requereram e tiveram emitidos, pela CEPCT-MG, suas certidões de autodefinição para reconhecimento formal como comunidades tradicionais geraizeiras. Caso das Comunidades de Raiz, Moreira, Água Boa II, Sobrado e Vereda Funda.

Na comunidade de Sobrado, os geraizeiros construíram estratégias de formalização de suas tradicionalidades, tanto interna quanto externamente. No plano da organização interna alterou seu Estatuto Social sob a denominação de “Associação da Comunidade Tradicional Geraizeira do Sobrado – ACOMGERAIS, também registrando em cartório ata de autorreconhecimento identitário. No plano externo tem-se a busca pelo reconhecimento estatal, tanto por meio da emissão de Certidão de autoidentificação, pelo Estado de Minas Gerais, quanto por meio de uma pioneira legislação municipal, a lei 1.629, de autoria da Comunidade, que dispõe sobre o reconhecimento da sua tradicionalidade e a proteção do seu território e seu modo de vida, tidos como patrimônio cultural material e imaterial sujeito a salvaguarda, proteção e promoção.

De Sobrado a Moreira e Baixa Grande: as experiências de construção, reconstrução e aprimoramento do Direito pela ferramenta legislativa municipal

Direito, lei e justiça

Para início deste tópico, necessário, ainda que em linhas gerais conceituar o Direito como sendo o conjunto de normas de conduta, escrito ou costumeiro, imposto por um conjunto de instituições para regular as relações sociais. O Direito é, portanto, algo inerente à existência da sociedade. Contudo, para Roberto Lyra Filho (1982), o conceito de Direito muitas vezes se confunde, erroneamente, com o de lei, o que leva a uma imagem distorcida, mas que muitos aceitam como “retrato fiel do Direito”. A lei, segundo Lyra, sempre emana do Estado, que é controlado pelas classes dominantes, pelos que comandam o processo econômico: os proprietários dos meios de produção. “A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto e a negação do Direito, entornado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido.” (LYRA FILHO, 1982).

Nesse sentido, o Direito é compreendido não como algo estanque, mas como um vir a ser, que nasce e se aperfeiçoa dentro de um processo dialético social, na luta entre expoliados e expoliadores – as lutas de classe. Para Lyra Filho, a vertente jurídica é inexplicável fora desse contexto, não havendo, portanto, uma resposta pronta e acabada já que o Direito sempre se transforma, de acordo com os anseios e necessidade dos povos. Não há um modelo físico, um “cabide metafísico em que penduram a realidade dos fenômenos naturais e sociais”. (LYRA FILHO, 1982: p.12).

Se, por um lado, o Direito não se confunde com lei, por outro, ele caminha, nesse processo histórico, entrelaçado com a Justiça. Uma justiça real, aquela que está no processo histórico de que é resultante:

Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração do homem pelo homem; e o Direito não é, mais nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade (LYRA FILHO, 1982. p. 87)

Para Lyra Filho, a exemplo do que acontece com o Direito, que convive e se aperfeiçoa na oposição ao antidireito, a injustiça também faz parte do processo dialético. Segundo ele, tanto a justiça, quanto o Direito, “brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses”.

Marcos jurídicos resultantes da luta dos povos e comunidades tradicionais no Brasil e no Estado de Minas Gerais

Para além dos povos indígenas e quilombolas, tratados expressamente no texto constitucional, o Brasil se constitui por uma diversidade social, expressada por múltiplos comportamentos, línguas, origens étnico-raciais, saberes, modos de vidas e organização social e relação com o ambiente.

Resultado de grande mobilização popular, a Constituição Federal de 1988 tratou de assegurar a salvaguarda e a proteção das identidades, ações e memórias dos grupos formadores da sociedade brasileira, dentre eles os povos e comunidades tradicionais, constituindo seus modos diversos de se expressar, criar, fazer e viver, como patrimônio cultural brasileiro (art. 216).

Os povos e comunidades tradicionais ocupam territórios: espaços com recursos naturais necessários para sua a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, conforme Decreto Federal nº 6.040/2007. Outros fatores importantes, materializados nesse normativo, consoantes com a Convenção 169/OIT e com a CF/88, diz sobre a normatização dos princípios da autodeterminação e do autorreconhecimento, que conferem legitimidade ao protagonismo desses grupos em seus processos de autoidentificação, de modo a acessarem direitos e participarem da construção da Política de Desenvolvimento Sustentável.

O Decreto nº 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT que teve como objetivo promover a sustentabilidade no desenvolvimento desses grupos culturalmente diferenciados. Tal decreto é fruto da mobilização histórica de organizações e movimentos sociais e visou reconhecer, fortalecer e garantir os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais desses grupos sociais. É considerada uma das principais normas que promovem o respeito e a valorização da identidade e modos de vida dos povos e comunidades tradicionais, uma vez que estabeleceu conceitos, princípios norteadores e garantiu a participação social por meio da previsão de instrumentos para sua implementação.

O Estado de Minas Gerais, por sua vez, instituiu a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PEPCT, por meio da Lei Estadual nº 21.147/2014. Referida Lei, posteriormente regulamentada pelo Decreto Estadual nº 47.289/2017, também trouxe a consolidação de conceitos e diretrizes norteadoras para a garantia de direitos aos povos e comunidades tradicionais, estabelecendo que as ações voltadas à efetivação da política estadual devem ser conduzidas de forma intersetorial e articulada. Já o Decreto Estadual nº 47.289/2017 criou a Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais – CEPCT, comissão responsável pelo reconhecimento formal da autodefinição identitária, um pré-requisito para a regularização fundiária dos territórios tradicionalmente ocupados.

Observa-se, portanto que, a partir do texto constitucional e por meio da luta dos Movimentos Sociais, tem surgido importantes avanços no sentido de se consolidar os marcos regulatórios no que concerne à diversidade de Povos e Comunidade Tradicionais. Contudo, ainda é imperativo no nosso ordenamento jurídico, seja pelo texto legal, seja pela interpretação dele, pelos juristas, a prevalência do direito particular de posse e propriedade da terra, em detrimento do direito coletivo ao território tradicional dessas comunidades. Neste sentido, é comum, por exemplo, a expedição de mandados judiciais de reintegração de posse, em áreas reocupadas pelas comunidades, em favor daqueles que as detém, ainda que injustamente.

Vale anotar aqui o entendimento de Shiraishi Neto:

A coexistência do direito de livre acesso e uso comum e do direito de propriedade privada da terra sugere uma “colisão de direitos”, implicando numa interpretação sistemática e aberta da Constituição Federal de 1988, na qual o princípio da dignidade deve ser o norteador da análise desse direito. O fato do princípio da dignidade ser desprovido de conteúdo obriga a que seja compreendido em consonância com as situações vivenciadas. (SHIRAISHI NETO, 2005, p. 18)

Neste diapasão, Häberle (2006) fala sobre a dupla direção protetiva da cláusula da dignidade da pessoa humana, quais sejam “contra o Estado” e “para o Estado”. Ou seja, ao vislumbrar os direitos dessas comunidades à efetiva dignidade de seus integrantes, exige-se tanto a abstenção por parte do Estado, no sentido de garantir a sua autonomia, quanto a ação positiva no sentido de obrigá-lo a implementar políticas públicas voltadas para a preservação do modus vivendi dos povos tradicionais.

Aprimoramento do Direito na esfera municipal: o efeito Sobrado

A experiência de construção e aprovação legislativa pela comunidade de Sobrado, acompanhada e descrita por autores como Silveira (2014), Oliveira (2017), Souza (2017), dado o seu pioneirismo, deixa uma porta entreaberta às demais comunidades geraizeiras do Alto Rio Pardo. Isso porque, em que pese tratar do reconhecimento legal daquele território específico, em seu texto, o normativo acaba por implicar as demais comunidades autoidentificadas como geraizeiras, sobretudo no que tange à competência do Poder Público Municipal (art. 3º). A título de exemplo, são os incisos XII, XIII, XV e CVI, deste artigo ao estabelecer competência ao poder público elaborar e executar ações e programas que visem:

XII– promover a segurança alimentar e nutricional como direito universal dos indivíduos e famílias que integrem as Comunidades Tradicionais Geraizeiras, garantindo- lhes acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, de forma compatível com outras necessidades essenciais, baseada em práticas sustentáveis e promotoras de saúde, articulando-a e integrando-a no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e ao Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Minas Gerais;

XIII– incentivar as formas tradicionais de educação, articulando-as com políticas pedagógicas avançadas, e intensificar processos dialógicos como contribuição ao desenvolvimento próprio das Comunidades Tradicionais Geraizeiras, garantindo-se sua participação nos processos de ensino formais e informais;

XV– implementar e fortalecer projetos que valorizem a importância histórica e a liderança étnico- social desempenhada pelas mulheres pertencentes às Comunidades Tradicionais Geraizeiras, assegurando-se a sua participação em instâncias de interlocução com órgãos governamentais;

XVI– promover a educação sobre a importância dos direitos humanos, sociais, culturais, ambientais e econômicos das Comunidades Tradicionais Geraizeiras, de modo a revigorar o comprometimento com a vivência e as práticas coletivas;

A lei também prevê em seu artigo 8º a realização de fóruns municipais, com a participação de órgãos públicos e seguimentos da sociedade civil, com vistas ao debate e elaboração de ações e medidas para implementação da lei. O artigo seguinte versa sobre participação do Sobrado na comissão municipal de desenvolvimento, instância deliberativa a ser instituída pelo Poder Executivo municipal. Todavia, em que pese a previsão legal, tais instâncias, quais sejam os fóruns e a comissão municipal não foram criadas, o que implica dizer que o referido normativo carece de regulamentação e incidência prática, no que tange à política municipal de desenvolvimento sustentável dessas comunidades.

Por outro lado, o processo de construção e aprovação da legislação, por si só, cumpriu um importante papel de animar e encorajar outras comunidades a trilhar caminhos semelhantes na busca pela proteção de seus territórios. Conforme Oliveira:

Vemos também que o caso da comunidade de Moreira se identifica com a luta da comunidade de Sobrado. Foram realizados encontros e intercâmbios a fim de construir uma estratégia de afirmação de sua identidade e retomada de seu território balizando- se na luta da comunidade Sobrado. Mais recentemente a comunidade de Baixa Grande entrou na luta para garantir seu território e afirmar sua identidade frente aos projetos desenvolvimentistas, e hoje, juntamente com a comunidade Moreira e Sobrado, mas também Raiz, Santana, Riachinho, Bonito, Olhos d’àgua, Santa Edvirgens, Curralinho, Coruja, Vereda Grande, Monte Alegre, Traçadal e São Camilo tem em comum a luta pela defesa e demarcação de seus territórios tradicionais. (OLIVEIRA, 2018, p. 131)

Conforme descrito por Oliveira (2018) as comunidades de Moreira e Baixa Grande são exemplos do que se pode denominar de “efeito Sobrado”. Conforme relatou o presidente da ASCOMGERAIS58, a comunidade de Moreira teve papel decisivo na construção e mobilização que possibilitou a aprovação do Projeto que originou a lei 1.609. Por meio de visitas de intercâmbio, e participações em eventos, como as conferências geraizeiras e reuniões na Câmara municipal, essas comunidade construíram importante laço afetivo.

Nesse período, a comunidade de Baixa Grande anima-se a entrar na luta, demarcando seu território e construindo parcerias que possibilitaram a realização de relatório antropológico, que atesta suas territorialidades. A comunidade também busca junto à CEPCT a emissão de certidão de autoidentificação, cujo processo encontra-se em análise.

A contribuição das comunidades de Baixa Grande e Moreira

Em que pese tratar de territórios e territorialidades distintas, a escolha por tratar conjuntamente as experiências dessas duas comunidades, dá-se pelas seguintes razões: (1) a partir do estudo do relatório antropológico, percerbe-se que Moreira e Baixa Grande para além da proximidade geográfica possuem fortes elos sedimentados por razões familiares e religiosas. Não por acaso, o atual presidente da Associação da Comunidade de Baixa Grande diz ser nascido e criado na comunidade de Moreira, e quando jovem casou-se migrando-se assim para o território da esposa, a comunidade de Baixa Grande, onde reside com a sua família. Os laços religiosos entre as comunidades, por seu turno diz muito sobre uma condição peculiar. Diferente da grande maioria das comunidades, onde coexistem pessoas de diferentes denominações religiosas, Moreira e Baixa Grande são inteiramente formadas por católicos, com forte influência da Congregação Mariana.

O segundo motivo, decorrente do primeiro, diz sobre a disposição das duas comunidades em unificar seus processos de construção das legislações que já propunham. Nesse sentido, Tem-se a criação, por meio de assembleias das duas associações, de uma comissão, formada por representantes das duas comunidades, para encaminhar sobre os pontos a serem propostos. A partir dai, tem-se o início de rodas de conversas, ora realizada em uma comunidade, ora noutra.

A primeira roda de conversa foi realizada no dia 09 de janeiro de 2021, na comunidade de Baixa Grande, tratou sobre nivelamento de informações acerca das lutas e estratégias das comunidades de Baixa Grande e Moreira, pelo reconhecimento e proteção dos seus territórios e busca de unidade na luta entre as duas comunidades, com a presença de lideranças da comunidade de Moreira.

Uma das lideranças presentes, concordando com os demais, relata duas grandes preocupações da comunidade de Baixa Grande: um delas diz respeito à manutenção da sua forma artesanal e tradicional de produção agrícola, principalmente quanto à transformação da mandioca em “goma” (polvilho) e farinha. Sobretudo nos últimos tempos, a comunidade vive num constante medo de terem que parar suas produções. Isso porque a adequação à literalidade das legislações, sobretudo sanitária, fiscal e trabalhista, significaria a extinção do modo tradicional de produzir. Ressalta que, apesar da necessária modernização, como a aquisição, pelos produtores familiares, de motores para ralar a mandioca, por exemplo – antigamente a mandioca era ralada nos “rodões e “rodas”, e processadas em “gamelas” – o jeito de produzir, guarda elementos e técnicas repassadas por gerações, o que influi direta e decisivamente na qualidade e na “fama do produto” regionalmente”. Fala-se muito que as fiscalizações vão chegar e fechar as fábricas de polvilho na região, mas, para a liderança em questão: “nós não temos indústria de polvilho, nós temos “cadaroda”.

A outra preocupação diz sobre o uso e gestão das águas, pela comunidade. O território da comunidade está incluso na área considerada zona de amortecimento do Parque Estadual de Serra Nova e Talhado – PESNT, e a água da comunidade vem do parque. A água é questão central da luta pela retomada e proteção do território da comunidade. Se, por um lado, a presença do Parque é considerada um ganho para a comunidade, visto que a legislação e normas que o regem impedem a implantação de atividades prejudiciais à preservação dos mananciais, como a monocultura de eucalipto e a mineração, por outro lado, a comunidade vê com incerteza a continuidade do “fornecimento de água”, sujeitas às normas do Parque. A preocupação da comunidade ganha contornos ainda maiores, com a atual política de privatização dos parques estaduais, do Governo do Estado de Minas Gerais.

Outra liderança entrevistada trouxe à discussão a necessidade retomada do território e da manutenção dos costumes da comunidade, ao mesmo tempo entende necessária a adequação às leis. A comunidade, que integra o coletivo de Comunidades que lutam pela retomada dos seus territórios na região, a partir de visitas, de intercâmbios e participações na construção da lei municipal que reconheceu o território do Sobrado como Comunidade tradicional, entende que a aprovação de uma lei de reconhecimento do seu território, dará mais visibilidade à luta da comunidade e fortalecerá a luta: “muita gente só acredita se ver, por isso é preciso mostrar”.

O presidente da Associação de Moreira apresentou uma pergunta fundamental para o debate: o que é tradicional hoje? Segundo ele, o jeito tradicional de produzir, em grande parte, foi se perdendo no tempo.

Para outra liderança, da Baixa Grande, “a lei tem que ser para proteger o jeito tradicional da comunidade”. Segundo as lideranças, esse instrumento legal possibilitará outras conquistas, como um tratamento diferenciado, no que tange ao reconhecimento dos territórios demarcados pelas comunidades, a preservação dos seus modos de fazer e viver (cultura) e produzir (agricultura tradicional) e a proteção das suas águas. A respeito da produção, revelam o desejo de uma marca de produto tradicional das comunidades, como a goma de mandioca.

Embora unânimes em entender que o produto (Lei municipal) poderá ser diferente em alguns aspectos, haja vista as peculiaridades de cada comunidade, entendem fundamental caminharem juntas. No “caminhar juntos”, enxergam uma maior possibilidade de reunir os parceiros na construção da proposta, e “pressionar para a aprovação da lei”.

A segunda roda de conversa, realizada na comunidade de Moreira, no dia 30 de janeiro de 2021 tratou da elaboração do formato de projeto a ser discutido com as comunidades, tendo como base o estudo da lei municipal 1629/2015. Após essa formatação inicial, uma série de reuniões foram realizadas até culminar na redação final, entregue em ato simbólico, ao Poder executivo no dia 17 de setembro de 2021. O ato aconteceu na sede da Associação da Comunidade de Baixa Grande, com a participação dos geraizeiros e geraizeiras das duas comunidades. A atividade contou com a participação de autoridades do município, como o vice-prefeito Davitt Bastos, que recebeu da mão dos presidentes das duas associações as minutas de Projetos de Lei, e dos Secretários de Planejamento e de Obras, Moisés Oliveira e Elmy Soares. O legislativo municipal esteve representado pelo Vereador Gilvânio. O evento contou ainda com representantes do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, do Centro de Referência em Direitos Humanos do Norte de Minas, representantes de mandatos parlamentares além de representantes das comunidades geraizeiras de Sobrado, Brejo Grande, Raiz, Vereda da Onça, Vereda Funda e Bonfim.

Ao realizar a entrega, os presidentes das Associações daquelas comunidades agradeceram a parceria da Prefeitura e cobraram agilidade no processo de proposição dos projetos de lei, de modo a atender, não somente os anseios das duas comunidades, mas de toda a região. Isso porque a proteção desses territórios tem implicação direta na revitalização da bacia do rio pardo. As comunidades estão localizadas em áreas de importantes recargas hídricas e nascentes que abastecem os rios Preto e São Gonçalo, principais afluentes do Rio Pardo.

Neste ponto, cabe ressaltar que o ato de entrega das minutas ao Poder Executivo se deu em razão do conteúdo das propostas. Durante o processo de construção das minutas, em conversa com o chefe do executivo, colocou-se à disposição para realizar as proposições dos projetos, que, sendo aprovados, na sua implementação terá impacto no orçamento do município. Os projetos agora seguirão para a análise da Secretaria Jurídica Municipal e posterior proposição e tramitação na Câmara de Vereadores.

À guisa de conclusão

Em apertada síntese, as diversas experiências vividas pelos geraizeiros do Alto Rio Pardo, na luta pelo reconhecimento de suas identidades, pela retomada e proteção dos seus territórios, perpassa por socorrer-se de institutos jurídicos existentes, embora insuficientes, ao passo que busca a construção de novos marcos legais, cuja eficácia importem no alcance das peculiaridades daqueles grupos sociais, com seus processos identitários, forjados ao longo do processo de ocupação e ressignificação do espaço e reafirmados na luta pela retomada de parte dele, expropriados pelas políticas desenvolvimentistas estatais. Isso implica lançar mão da dupla proteção da cláusula constitucional da dignidade humana. (1) A ação positiva do Estado, em se implantar políticas públicas e criar leis específicas que garantam a retomada e a proteção dos territórios geraizeiros, bem como (2) a abstenção do Estado, garantindo a autonomia necessária na autogestão dos seus territórios – os gerais.

Os territórios das comunidades geraizeiras do Alto Rio Pardo são territórios em constantes disputas, em diversas arenas, quer físicas ou conceituais. Se, por um lado, as comunidades se articulam para reocuparem e retomarem o domínio de suas chapadas, por outro lado, buscam construir instrumentos capazes de dar forma legal às suas reivindicações. Nesse sentido, as principais estratégias tem sido a de lançar luz às suas tradicionalidades, por meio de processos de autoafirmação e autoidentificação, seguidos da reivindicação junto ao Estado, do seu reconhecimento, pelo ente estatal, tais como as emissões de certidões de autoidentificação, pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais.

No que tange ao processo de aprimoramento da legislação municipal, experimentado pela comunidade geraizeira do Sobrado, em que pese não haver até esse estudo decreto que a regulamente a lei João Tolentino, pode-se vislumbrar, todavia, efeitos práticos na sua simples existência. O primeiro deles diz sobre o próprio processo de forja do instrumento legal, pela própria comunidade, reafirmando o seu protagonismo na luta pelo território. O segundo diz sobre o uso dessa legislação pela defesa dessa comunidade em processos judiciais de manutenção ou reintegração de posse que tramitam, envolvendo a disputa pelo uso e domínio daquele território. Por fim, o terceiro efeito diz sobre aquilo de fora denominado acima de “efeito Sobrado”: o processo, em curso, pelas comunidades de Baixa Grande e Moreira, de replicação e aprimoramento da ferramenta legislativa, seja no sentido de se buscar o reconhecimento e proteção seus territórios específicos, seja vislumbrando a criação de uma política municipal de desenvolvimento sustentável das comunidades geraizeiras do Rio Pardo.

Portanto, é neste itinerário dialético-progressivo, em que o Direito convive e se aperfeiçoa na relação conflituosa com a negação dele, que se situa a luta dos geraizeiros do Rio Pardo. Essas comunidades vão buscando novas formas de se organizarem, construindo parcerias, no intuito de se manterem vivas, físico e culturalmente, face ao processo de encurralamento que foram submetidas, buscando forjar suas próprias ferramentas jurídico- normativas, capazes de reconhecer e proteger suas tradicionalidades.

Referências

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SOBRE OS AUTORES

Ana Flávia Rocha de Araújo

Doutoranda em Desenvolvimento Social pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS/ UNIMONTES. Mestre em Desenvolvimento Social - PPGDS/UNIMONTES. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES; Pesquisadora pela FAPEMIG/CNPq vinculada ao OPARÁ - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Comunidades Tradicionais no Alto Médio São Francisco sob coordenação da professora Drª Andréa Maria Narciso Rocha de Paula. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental - NIISA (CNPq/Unimontes).

Andréa Maria Narciso Rocha de Paula

Professora doutora em Geografia Humana . Professora efetiva, lotada no Departamento de Política e Ciências Sociais (DPCS) da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES- MG). Professora no curso de Ciências Sociais. Docente do quadro permanente no Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Social/PPGDS/UNIMONTES. Professora permanente no Programa de Pós Graduação associado UFMG/UNIMONTES em Sociedade, Ambiente e Território. Bolsista de produtividade BIPDT- Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais/FAPEMIG.

Aldinei S. Dias Leão

É advogado, mestre em Sociedade, Ambiente e Território (UFMG-UNIMONTES 2019-2021), possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2012), Pós-graduação - Especialização em Direitos Sociais do Campo pela Universidade Federal de Goiás (2015). É coordenador do Projeto Projeto Ponto de Cultura Riguilido no município de Rio Pardo de Minas. Atuou como coordenador de Projetos no Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, nos municípios de Santo Antônio do Retiro e Montezuma. Assessor Técnico em Gestão Social - ATGS, no Território da Cidadania do Alto Rio Pardo pelo Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial do Norte e Noroeste de Minas Gerais – NEDET/UNIMONTES.

Cledinado Aparecido Dias

Psicólogo e Administrador. Doutor em Administração pelo Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de Brasília (PPGA/UnB). Mestre em Administração pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Especialista em Gestão Estratégica em Marketing pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e também especialista em Educação à Distância pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Possui graduação em Administração pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) e Graduação em Psicologia pelas Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros. É professor Adjunto do Magistério Superior na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).

Cristh Ellen Ferreira Pinheiro

Mestre em Sociedade, Ambiente e Território pelo ICA/UFMG. Professora do curso de graduação em Administração das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros (FIPMOC).

Daniel Coelho de Oliveira

Doutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Ministra disciplinas nas áreas de sociologia clássica e contemporânea, sociologia da alimentação e sociologia rural. Como pesquisador, vem desenvolvendo pesquisas sobre tendências da alimentação contemporânea, politização do consumo, sistema agroalimentares e desenvolvimento rural. Professor no Departamento de Ciências Sociais da UNIMONTES. Professor permanente do Mestrado Associado UFMG-UNIMONTES em Sociedade, Ambiente e Território. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Emília Murta Morais

Doutora em Educação - Universidade Federal de Minas Gerais (2013), Mestre em Educação, - Universidade Federal de Minas Gerais (2002), Especialista em Pedagogia - Universidade Estadual de Montes Claros- Unimontes (1997), Especialista em Alfabetização - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1995), Graduada em Pedagogia - Fundação Norte- Mineira de Ensino Superior (1986). Professora da Universidade Estadual de Montes Claros, com experiência na área de Educação, trabalhando de maneira mais específica com as disciplinas Didática, Iniciação Científica, Fundamentos e Metodologia da Língua Portuguesa e Fundamentos e Metodologia da Alfabetização no Curso de Pedagogia e demais licenciaturas.

Erika Fernanda Pereira de Souza

Doutoranda e Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Graduada em Licenciatura Plena em Pedagogia pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) e integrante do Laboratório de Educação do Campo e da Articulação Por Uma Educação do Campo no Semiárido mineiro. Atua com as seguintes temáticas: Educação do Campo; Movimentos sociais do campo; Pedagogia da Alternância.

Fábio da Silva Gonçalves

Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social (PPGDS) pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes); Mestre em Sociedade, Ambiente e Território pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Possui graduação em Geografia pela Universidade Estadual de Montes Claros (2008). Professor efetivo na rede estadual de Educação Básica de Minas Gerais. Ênfase em Geografia e Estudos Territoriais.

Felisa Cançado Anaya

Doutora em Sociologia pela UFMG, Professora do Departamento de Saúde Mental e Coletiva da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES-MG) e dos Programas de Pós- graduação em Sociedade, Ambiente e Território-PPGSAT/UFMG-UNIMONTES e em Desenvolvimento Social – PPGDS/UNIMONTES. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental – NIISA/UNIMONTES e bolsista CAPES do Programa Professor Visitante no Exterior.

Giliarde Souza Brito

É Técnico em Agropecuária pela UFMG/NCA com experiência em Extensão Rural em áreas de agricultura familiar. Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual de Montes Claros (2008); Graduado em Logística pela UNOPAR. Tem mestrado em Ciências Agrárias com ênfase em Agroecologia pela UFMG/ICA. Foi vice - coordenador da Comissão Regional de Segurança Alimentar Nutricional Sustentável e conselheiro do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Montes Claros. Em 2012 foi eleito para presidente do COMSEA - MOC ano 2013-2014. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Desenvolvimento, atuando principalmente nos seguintes temas: agricultura familiar, ação coletiva no meio rural, cooperação, economia solidaria e desenvolvimento sustentável. Atualmente desenvolve pesquisas em áreas urbanas e rurais; vinculadas a trabalho rural, educação rural, trabalho infantil, evasão escolar no rural e migração rural urbana.

Hélder dos Anjos Augusto

Graduado em Administração Rural (habilitação em empresas rurais e Cooperativas) pela Universidade Federal de Lavras (2000), mestre em Administração (Gestão social e Ambiente e Desenvolvimento Rural) pela Universidade Federal de Lavras (2002) e doutor em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Atualmente, é Professor Associado II do Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais.

José Paulo Pietrafesa

Possui graduação em Ciências Sociais (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade Federal de Goiás (1985), Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Goiás - UFG (1995), Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília - UnB (2002), Pós-doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Geografia (Instituto de Estudos Socioambientais - IESA - 2011) da UFG. Atualmente é professor Associado II da Universidade Federal de Goiás - Faculdade de Educação e do Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE-UFG).

Júlia Veloso dos Santos

Mestre em Sociedade, Ambiente e Território – UFMG/UNIMONTES, pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental – NIISA/UNIMONTES e coordenadora do Conselho Regional de Direitos Humanos de Montes Claros-MG.

Maria Jacy Maia Velloso Velloso

Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes (1995). Especialista em Psicopedagogia (1999) pela Unimontes e em Educação a Distância pela UNB (2009). Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010) e doutora em Educação pela UFMG (2015). É professora adjunta do Departamento de Métodos e Técnicas Educacionais da Unimontes .

Mônica Maria Teixeira Amorim

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2013) e Mestre em Educação pela mesma Instituição (2002). Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Norte de Minas (1989). É professora titular da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Tem experiência como Pedagoga na Escola Pública Básica e como Docente na Educação Básica e Superior, atuando especialmente na formação de profissionais professores. É coordenadora associada do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social/Unimontes desde dezembro de 2019. É, também, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social/Unimontes e do Programa de Pós-Graduação em Educação/Unimontes.

Rômulo Soares Barbosa

Doutor e Mestre em Sociologia pelo CPDA/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Montes Claros. Professor do Departamento de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros e do Mestrado Associado UFMG/UNIMONTES em Sociedade, Ambiente e Território. Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental- NIISA. Foi pesquisador BIPDT da FAPEMIG. Foi Pró-Reitor de Pesquisa da UNIMONTES.


1 ROSA, J.G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006.

2 ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.

3 ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.

4 Agradecemos ao apoio do Programa PROAP/CAPES. Auxílio Nº 0933/2020.

Agradecemos ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Processo: 315674/2020-2.

Agradecemos ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) Processo - APQ-01453-18/ APQ-02576-21.

5 Para maiores informações ver Ministério do Meio Ambiente, disponível em: https://antigo.mma.gov.br/desenvolvimento-rural/terras-ind%C3%ADgenas,-povos-e-comunidades- tradicionais/comiss%C3%A3o-nacional-de-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel-de-povos-e-comunidades- tradicionais.html; acesso em outubro de 2021.

6 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, promulgada pelo Decreto nº 5.753, de 12/4/2006

7 Declaração de Tlaxcala (1982), produzida no Simpósio Interamericano sobre a Conservação do Patrimônio Edificado dedicado ao tema da “Revitalização dos Pequenos Povoados”, organizado pelo Comité Nacional Mexicano do ICOMOS, reunido em La Trinidad, Tlaxcala, entre 25 e 28 de Outubro de 1982.

8 Decreto nº 4.339/2002, que institui a Política Nacional da Biodiversidade, baseada em princípios que preveem a compatibilização de direitos, como afirmado no artigo 2º, XII: ‘a manutenção da diversidade cultural nacional é importante para a pluralidade de valores na sociedade em relação à biodiversidade, sendo que os povos indígenas, os quilombolas e as outras comunidades locais desempenham um papel importante na conservação e na utilização sustentável da biodiversidade brasileira.

9 “(...) os dispositivos das Constituições estaduais, como aquelas do Maranhão e da Bahia, que falam respectivamente em assegurar “a exploração dos babaçuais em regime de economia familiar e comunitária” (Art.196 da Constituição do Maranhão de 1990) e em conceder o direito real de concessão de uso nas áreas de fundo de pasto (Art.178 da Constituição da Bahia de 1989); A lei estadual do Paraná´ de 14 de agosto de 1997 que reconhece formalmente os faxinais como “sistema de produção camponês tradicional, característico da região Centro-Sul do Paraná´, que tem como traço marcante o uso coletivo da terra”. ( ALMEIDA, 2004,p3.)

10 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm Acesso em julho de 2021.

11 DAYRELL, C. A. De nativos e de caboclos: reconfiguração do poder de representação de comunidades que lutam pelo lugar. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Social) – Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2019.

12 ANAYA, F. C. De “encurralados pelos parques” a “vazanteiros em movimento”: as reivindicações territoriais das comunidades vazanteiras de Pau Preto, Pau de Légua e Quilombo da Lapinha no campo ambiental / Felisa Cançado Anaya. – 2012. 255 f. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

13 NOGUEIRA, M. C. R. Gerais a dentro e a fora: identidade e territorialidade entre Geraizeiros do Norte de Minas Gerais. 2009. 233 f. Tese (Doutorado em Antropologia)-Universidade de Brasília, Brasília, 2009.

14 COSTA FILHO, A. Os Gurutubanos: territorialização, produção e sociabilidade em um quilombo do centro norte-mineiro. 2008. 293 f. Tese (Doutorado em Antropologia)-Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

15 Disponível em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=2964018&disposition=inline. Acesso em 10 mai 2017.

16 Conforme Souza (2008) o termo afro-brasileiro é usado para indicar mestiçagens para os quais as principais matrizes são as africanas e as lusitanas, comumente com entremeios indígenas, ressalvando que tais manifestações são acima de tudo brasileiras por terem se confluído no Brasil. Não obstante, neste texto, opta-se pelo termo religiões “afro-ameríndio-euro-brasileira” por se acreditar que o termo “afro-brasileiro” em se tratando de religiões acaba por invisibilizar semanticamente a formação sincrética, que além das influências africanas, consta também com influências indígenas e europeias, sendo particularizadas em solo brasileiro. A despeito dos movimentos de reafricanização ou desafricanização, entre outros de adesão a um ou mais elementos desses componentes, todos esses elementos são muito importantes nos cultos de Umbanda, Candomblé, Quimbanda, Xangô, Tambor de Mina, Batuques, Macumbas, entre outros. Portanto, ao usar a expressão religiões afro-ameríndio-euro-brasileiras, é uma referência às supracitadas religiões.

17 “Direita” e “Esquerda”, de acordo com Rainho (2013) e Mattos (2014), são divisões existentes na Umbanda para classificação das linhas de trabalho e do nível vibracional de cada “Entidade”. Assim, por exemplo, acredita- se que as energias da “Direita” (Caboclos, Boiadeiros, Pretos Velhos, Erês, etc.) são irradiadores de energia que reestabelecem o equilíbrio interior e elevam a moral do ser humano; enquanto as energias da “Esquerda” (Exus e Pomba-Giras) são energias consumidoras, isto é, vibrariam no sentido de extirpar o desequilíbrio, a amoralidade, o negativismo e os vícios da humanidade.

18 Esse trabalho é fruto de uma dissertação de mestrado defendida em Julho de 2017.

19 Nação de Candomblé é um termo utilizado para diferenciar os distintos segmentos da religião existentes no Brasil da origem dos escravos que lhe deram origem, como Ketu e Angola, por exemplo.

20 Feitura do Santo é o rito iniciático realizado na camarinha no qual o adepto pratica um conjunto específico de rituais e dedicação à religião.

21 De modo geral, esta construção “pai-de-orixá” é uma expressão utilizada no contexto do Zambi-Iris. Os motivos de utilizar essa expressão e não “pai-de-santo”, é que os adeptos consideram o termo “Santo” influência do Catolicismo, religião da qual esse terreiro pretende se dessincretizar o máximo possível.

22 A inserção ou interditos alimentares decorrentes de rituais, fundamentos doutrinários/teológicos os quais podem interferir na alimentação do médium. É importante frisar que não se cogita a análise nutricional ou econômico- financeira das comidas ingeridas por eles. Assim, refere-se à prática alimentar balizada por um recorte, aquele relacionado à religião.

23 Rabelo (2013) categoriza a comida dos Orixás em comida seca (realizada à base de vegetais) e matança (que envolve sacrifício animal).

24 Segundo Carneiro (2011) os transterritórios compreendem os espaços extra-terreiros utilizados para o culto afro- ameríndio-euro-brasileiro, normalmente envolvendo as oferendas. Apesar da importância, o tema não será aprofundado neste artigo.

25 Passar a rasteira, derrubar, por no chão significa “vencer”, “derrotar” alguém por meio de ação espiritual promovida por meio de trabalhos feitos ás entidades. Igualmente, pode ser usada ainda a expressão “pegar pela macumba”.

26 A respeito das hipóteses do surgimento da Pomba-Gira nos terreiros de Umbanda e sobre as possíveis construções etimológicas da palavra “Pomba-Gira” vide Barros (2006).

27 No Zambi-Iris não existe o processo de feitura de Santo, portanto o preceito a ser descrito se aplica somente ao Ilê.

28 Este texto apresenta um recorte da discussão feita na dissertação de mestrado que objetivou investigar o impacto da formação pedagógica desenvolvida pela Escola Família Agrícola Nova Esperança no território Alto Rio Pardo através da atuação dos egressos na dimensão produtiva, profissional e social (SOUZA, 2019).

29 Os Centros Educativos Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs), compostos por experiências dais quais as EFAs fazem parte, são estruturados em quatro pilares: a Pedagogia da Alternância, a formação integral, o desenvolvimento numa perspectiva social, humana, política, econômica, ambiental etc., e a organização em associação local. A Pedagogia da Alternância se sustenta pela organização de tempos e espaços formativos através da articulação entre escola família e comunidade, sendo dividida em tempo-escola e tempo-comunidade (QUEIROZ, 2004; GIMONET, 2007).

30 Entende-se como uma estratégia de diversificação das atividades, inclusive fora da unidade produtiva familiar, para garantir a reprodução do grupo e a permanência no campo. Não pode ser vinculada a morte do campesinato, desconsiderando suas tensões e mudanças históricas (WANDERLEY, 2009).

31 Para maiores detalhes ver: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16762-balanco-social-sesu- 2003-2014&Itemid=30192 Acesso em 29/09/2020.

32 Disponível em: https://unimontes.br/apresentacao/ Acesso em 29/09/2020. 32Parecer CEP UNIMONTES n° 2.536.224 de 09/03/2018.

33 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16762- balanco-social-sesu-2003-2014&Itemid=30192 Acesso em 29/09/2020.

34 A Reserva de Vagas foi instituída em 2004 na Unimontes por meio da Resolução nº 104 CEPEX/2004, com base na Lei Estadual nº 15.259 de 27/07/2004. Definiu percentuais de vagas para Afro-descendente -carente (20% das vagas), Egresso da escola pública – carente (20%) e Portador de deficiência e Indígenas (5%).

35 Valor informado à época da coleta de dados.

36 Pobreza no sentido de privação do acesso a condições fundamentais à vida digna como acesso a alimentação, água potável, serviço de esgoto, saúde, educação, dentre outros. Estudo recente, de Pereira e Souza (????), analisa a pobreza na macro região Norte do estado de Minas Gerais. Maiores detalhes veja o artigo intitulado “POBREZA NO ESTADO DE MINAS GERAIS: UMA ANÁLISE DA REGIÃO NORTE” na Revista Iniciativa Econômica, Araraquara, v. 4 n. 2, julho/dezembro 2018. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/iniciativa/article/view/11787 Acesso em 09/10/2020.

37 Neste trabalho, o conservacionismo e o preservacionismo são tratados como sinônimos, como uma vertente do movimento ambientalista que representa a ideia de preservação vinculada à conservação da natureza em seu estado virgem, intocado, não domesticado. O preservacionismo ou conservacionismo também são tratados por Alier (1999) como sinônimos, embora Diegues (2000b) acentue suas diferenças, esclarecendo que o conservacionismo refere-se ao uso racional e adequado dos recursos naturais, enquanto o preservacionismo prega o uso da natureza apenas como objeto de contemplação e reverência.

38 A ideia de uso sustentável está relacionada à noção de socioambientalismo, outra vertente do movimento ambientalista, que surge no momento em que os “atingidos” pela conservação começam a se organizar em movimentos sociais e organizações não governamentais numa luta pela inclusão do homem nas estratégias de preservação da natureza. No Brasil, o socioambientalismo emergiu-se a partir da luta de Chico Mendes pela permanência dos povos na floresta e a manutenção de suas práticas de coleta sustentáveis nos seringais, idealizando a Reserva Extrativista, que mais tarde fora legalmente criada pelo SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação nos anos 2000 (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010).

39 O projeto “Dinâmicas do São Francisco: identificação e caracterização de terras tradicionalmente ocupadas” foi financiado pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário – SEDA e executado pelo NIISA da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. O projeto “Conflitos Sociais e Desenvolvimento Sustentável no Brasil Central – Núcleo Minas Gerais” foi financiado pela Fundação Ford e executado pela equipe do NIISA/Unimontes.

40 Trata-se da ação de desapropriação que fora proposta em 2007 pelo IEF em face de Air Léllis Vieira e seus filhos Jairo Ataíde Vieira, Mércio Ataíde Vieira e Gualter Ataíde Vieira. O processo nº 0177034- 66.2007.8.13.0393 está em trâmite perante a secretaria da 1ª Vara Cível da comarca de Manga/MG e, até a presente data, não possui decisão definitiva transitada em julgado, tendo em vista discordância das partes em relação ao valor da indenização a ser paga pelo Estado.

41 Luz de Oliveira (2005), Costa Filho (2008), Araújo (2009) e Anaya (2012).

42 Há relatos de que, naquele tempo, muitos fazendeiros incentivavam as pessoas que chegavam em suas terras a ali se estabelecerem como agregados, posto que era importante que as terras estivessem ocupadas a fim de que o governo não as considerasse terras devolutas. Araújo (2009) também identifica outro motivo que tornava a vinda dos agregados interessante aos fazendeiros, a oportunidade de se apadrinhar famílias estabelecendo ali uma relação de confiança e submissão.

43 Não se pode afirmar com veemência que o nome do fazendeiro era José de Oliveira Rocha ou José de Oliveira Filho, uma vez que as transcrições cartorárias que embasaram o levantamento dominial da referida fazenda apresentam os dois nomes distintos referindo-se ao mesmo proprietário. Já os relatos dos vazanteiros entrevistados referem-se ao fazendeiro apenas como “pai de Seu Darly” não chegando a mencionar o nome do mesmo.

44 De acordo com Luz de Oliveira (2005), o lastro mítico diz respeito aos seres dotados de características humanas e míticas ao mesmo tempo, que aparecem vez ou outra para os membros da comunidade sinalizando a forte ligação que aquele povo tem com o lugar que habitam.

45 Air Lélis Vieira, falecido em ????, foi uma das figuras da elite oligárquica do Norte de Minas. O ruralista ocupou cargos na Diretoria da Sociedade Rural de Montes Claros e tinha ligações com a elite política da região. Um de seus filhos, Jairo Ataíde Vieira, ocupou importantes cargos políticos, tendo sido prefeito de Montes Claros por 2 mandatos, além de ter legislado como deputado estadual e federal.

46 O fazendeiro Air Lélis Vieira tomou posse da fazenda a partir da compra e venda da propriedade rural através de escritura pública lavrada em cartório. As escrituras públicas da referida propriedade foram analisadas na pesquisa que embasou este estudo e, a partir da observação da cadeia dominial, verificou-se que não há um registro primário que prove a forma de aquisição do imóvel. O primeiro registro do imóvel data de 1917 e consiste numa transcrição de uma sentença proferida nos autos de uma ação de divisão judicial. Portanto, pairam dúvidas sobre se o imóvel rural fora fruto de uma apropriação de terras públicas.

47 A implantação do Projeto Jaíba na região representou uma importante mudança nas formas de apropriação territorial às margens do Rio São Francisco. As fazendas foram se tornando grandes empresas agropecuárias cujas atividades giravam em torno do cultivo de cana de açúcar, criação de gado e fruticultura. A intensificação dessas produções levou ao desmatamento de extensas áreas de mata seca na região.

48 O Decreto nº 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Este Decreto representou um grande avanço no reconhecimento de direitos territoriais aos povos e comunidades tradicionais no Brasil, tornando-se marco jurídico e esteio para a elaboração e implementação de políticas públicas voltadas para essas populações. Foi a partir desta Política que populações não abarcadas categoricamente pela legislação até então vigente, como é o caso dos vazanteiros, passaram a ter os seus direitos amparados legalmente, em âmbito nacional. Antes disso, a legislação federal e a própria Constituição Federal de 1988 somente se referiam de maneira específica a populações indígenas e de remanescentes de quilombos, o que servia de subterfúgio para a negativa de direitos a outros povos tradicionais.

49 A RURALMINAS, Fundação Rural Mineira, órgão da Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais, foi criada em 1966 como parte da contribuição mineira para a modernização da agricultura no estado. Tinha poderes para comprar, subdividir, desenvolver e administrar propriedades agrícolas de interesses do plano. Para que pudesse realizar seus objetivos, as terras devolutas existentes no território estadual passaram a ser administradas por esta fundação. A RURALMINAS foi objeto de investigação pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) devido a denúncias de corrupção. Inicialmente, o objetivo da CPI era apurar denúncias de irregularidades no pagamento de pessoal da Ruralminas e desvio de documentação. Posteriormente, em 16/04/1991, foi ampliado para possibilitar a apuração de possíveis irregularidades na alienação de bens patrimoniais de terras públicas da entidade. Fonte: <https://atom.almg.gov.br/index.php/cpi-da-ruralminas- pagamentos-de-pessoal-e-desvio-de-documentacao-12- legislatura> . Acesso em: 16/10/2020.

50 Agradecemos ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Agradecemos ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

51 O termo “Gerais” é neste texto tratado no plural e no singular. No plural remete-se à diversidade dos Gerais, afirmando que Gerais são vários, são muitos, com suas historicidades, não são homogêneos. No singular “o Gerais” indica-se um Gerais específico, remetendo à singularidade do lugar em meio à vastidão dos Gerais.

52 Doravante denominado Entrevistado A.

53 Atualmente, a instituição recebe a alcunha de “Associação da Comunidade Tradicional Geraizeira de Vereda Funda”.

54 Veja o vídeo-documentário em: http://cineclubedesertoverde.org/2012/08/06/cacunda-di-librina/

55 Veja o vídeo-documentário emhttp://ufftube.uff.br/video/X5857XUON848/Romaria-do-Arei%C3%A3o

56 Entidades presente/representadas na 4ª Conferência Geraizeira: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); instituto Federal do Norte de Minas (IFMG – Salinas), Embrapa Cerrados; Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes); Organização para libertação dos povos sem Territórios (OLST); Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG – Montes Claros); Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri- (UFVJM – Diamantina); Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM) Universidade Federal de Goiás (UFG – Programa de Pós-Graduação em Direitos Sociais do Campo – Residência Agrária); Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Rio Pardo de Minas – MG.

57 A Portaria que cria o PAE Veredas Vivas, de Vereda Funda – o único desta modalidade no Estado de Minas Gerais – foi assinada pelo INCRA em 20/09/2013, após mais de uma década de luta por aquela comunidade.

58 Associação da Comunidade Tradicional Geraizeira do Sobrado.

Veja também

capa do livro

O censo potiguara

referências originárias, alinhamentos políticos e adscrição étnica

Walter Coutinho