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Redes Sociais, Cultura e Poder (LIVRO)

Larissa Adler Lomnitz

Dos rigores do pensar
Larissa Adler tem um lugar destacado entre os pioneiros da análise de redes sociais nas ciências aplicadas. É considerada uma das mais importantes pensadoras latino-americanas que trabalha na interdisciplinaridade fronteiriça das ciências exatas e sociais. Foi pioneira na identificação do papel central das redes sociais nos estudos urbanos na década de 1970, vendo nos marginalizados das periferias um resultado da expansão industrial distorcida, característica do paradigma, que as comunidades populares transformavam em estratégias de sobrevivência, aproveitando e criando nichos nos interstícios do sistema tecnológico que os excluía. No centro nervoso dessas estratégias estavam as redes sociais construídas sobre o princípio da reciprocidade e os vínculos horizontais.

Seu primeiro livro, Cómo Viven los Marginados, publicado em 1975, ainda inédito em português, atingiu 15 edições e tornou-se obra de referência para estudos sobre a pobreza na América Latina. Seis dos oito livros por ela escritos tomam a economia substantiva, as redes de reciprocidade e as formas de intercâmbio como a base teórica de suas pesquisas sobre a cultura e a política. No livro, a pobreza urbana de migrantes rurais na cidade do México foi tratada por um ângulo novo: os mecanismos de sobrevivência através das redes de intercâmbio e laços de reciprocidade.

Após esse trabalho inicial, dedicou-se a estudar uma grande família de empresários, como se deu sua estruturação durante gerações, as ramificações que foram sendo desenvolvidas nos setores econômicos e políticos da sociedade e o papel das redes sociais no processo de industrialização do México. Outro projeto inovador, orientado para a análise do fenômeno da classe alta e das elites econômicas na América Latina cuja reprodução, em geral esteve vinculada à reprodução de empresas familiares dentro de um panorama institucional ou macropolítico. Centrada na articulação e uso de estruturas ideológicas e simbólicas, a análise revelou a sutil relevância dos papéis femininos nas tramas empresariais nas quais as informações são trocadas e se consolidam alianças informais, apoiadas em uma estrutura familiar de gerações construída em torno às relações verticais. Essa estrutura permite criar e manipular relações preferenciais que podem ser transladas para âmbitos pragmáticos variados, combinando autoridade, compadrio, interdependência econômica e espírito corporativo.

Seguindo nesse caminho, em meados da década de 1980, a pesquisadora e seus assistentes aprofundaram a compreensão das redes informais de intercâmbio nos sistemas formais mexicanos e formularam um modelo teórico de interpretação, concluindo que a própria formalização da sociedade é quem produz a informalidade graças às contradições e imperfeições dos sistemas. Em sistemas nos quais a lei e as garantias individuais constituem um espaço fictício, as relações de confiança e lealdade, incorporadas em redes de laços horizontais e verticais, permitem aos indivíduos construir um espaço inteligível e previsível, nos negócios, nos bairros populares, na universidade, nas práticas profissionais e especialmente, na política.

Inquieta, Larissa em seguida passou a estudar o mundo universitário mexicano, em particular sua Universidad Nacional y Autônoma de Mexico (Unam), uma das maiores universidades do planeta – e a carreira de pesquisador, com olhares antropológicos. Em uma estrutura universitária aparentemente ininteligível enquanto racionalidade formal, a professora Adler identificou racionalidades subjacentes. Partindo dos vínculos horizontais destacou o funcionamento dos grupos clientelísticos, chegando à intermediação vertical nos níveis acadêmico, profissional, político ideológico e político pragmático. Assim, depois de haver tocado os extremos da sociedade mexicana, voltou-se para a universidade e dedicou-se a estudar as classes médias. As pesquisas na Unam geraram dois livros Ser científico en Mexico e La nueva clase em Mexico: el caso de los veterinarios, além de muitos artigos.

Dando continuidade à mesma linha de pesquisa, Larissa foi para o Chile, dedicando-se a estudar as classes médias chilenas, tomando como foco de atenção o professorado fortemente afetado pelas reformas neoliberais. Larissa revisita e atualiza seus conceitos de compadrio e redes sociais, além de abordar o problema da transição democrática e do nacionalismo, comparando as sociedades chilena e mexicana. Ela passa então a estudar a cultura dos partidos políticos e, por seu intermédio, o funcionamento das redes de intercâmbio de favores na classe média chilena. O resultado veio a ser consolidado em seu livro intitulado La clase media chilena y los desafíos para sobrevivir frente al Neoliberalismo.

Segundo Larissa existem duas abordagens para a compreensão das estruturas sociais. Uma é adotada pela análise de classes sociais e consiste em postular um modelo de posicionamento de classe e partindo desse princípio, mapear a realidade social usando esse modelo, chegando a um conjunto de relações estruturais que mostram as diferentes posições assumidas pelos grupos sociais em diversos momentos. A outra abordagem, que ela foi consolidando ao longo de seus estudos, consiste em observar as complexas interações entre pessoas e grupos em diferentes níveis com as estruturas de poder. O ponto inicial é a observação cuidadosa dos atores e seus desempenhos visando a partir daí descrever as estruturas sociais. As análises derivam então de suas experiências com os sistemas.

Em plena Glasnost viajou à Rússia, onde pôde observar formas alternativas de sobrevivência da população que escapavam à economia planificada e controlada. A partir daí começou a estudar as relações econômicas informais na antiga União Soviética. Posteriormente estendeu suas observações aos países pós-comunistas do leste europeu. Suas análises sobre o lugar central das redes sociais na economia informal, além de lhe render artigos e conferências, anteciparam relações econômicas que a sociedade russa iria adotar nos anos 1990. Como um coroamento desse percurso de quase duas décadas, Larissa reuniu um amplo conjunto de artigos e ensaios e publicou a antologia intitulada Redes Sociales, Cultura y Poder.

O projeto seguinte de Larissa Adler foi dirigido a explicar a criação do consenso em uma sociedade autoritária, desigual e hierárquica como a mexicana. Observando o fenômeno do apadrinhamento e compadrio, destacou que o domínio estatal não era independente da relatividade desses tipos de vínculos. Ela apontou como o consenso descansava sobre uma complexa rede de alianças verticais e horizontais que requeria uma ideologia que a justificasse, nacionalista em termos abstratos, proclamadora da legitimidade do Partido Revolucionário Institucional (PRI) em termos práticos. Em estudos mais recentes, Larissa vem explorando os impactos da globalização e dos ajustes econômicos, a liberalização política na estrutura corporativa do país e suas implicações sociais.

Em quase 40 anos de vida acadêmica, a obra de Larissa abriu caminhos inéditos para as ciências sociais latino-americanas, as análises de organizações e gestão de redes. Partindo de seus estudos pioneiros sobre comunidades indígenas e camponesas migrantes urbanizadas, Larissa avançou para novos estudos sobre um amplo espectro de questões contemporâneas: as classes médias, a cidade, a universidade e as profissões, o mundo dos grandes negócios, as redes familiares, os partidos políticos, o espaço cultural das nações e os efeitos da globalização sobre as instituições e as organizações sociais. Ao rigor científico, ao conhecimento da teoria e da literatura, associou a sistemática observação direta apoiada na pesquisa empírica de campo. E a tudo isso uniu sua notável virtude da intuição, realizando uma produção acadêmica desmistificadora e crítica, sem falsos radicalismos.

Lindsay Waters, editor da Harvard University Press, publicou uma forte crítica aos rumos da produção intelectual das universidades contemporâneas, centrada no produtivismo sem reflexão (Enemies of Promise. Publishing, Perishing and the Eclipse of Scholarship, Prickly Paradigm Press, 2004, tradução brasileira de Luiz Henrique de Araújo Dutra: Inimigos da Esperança. Publicar, Perecer e o Eclipse da Erudição, Unesp, 2006). Nesse livro Waters alerta para um grave risco que corre a reflexão acadêmica na contemporaneidade. É o risco de que o norte da atividade universitária se resuma ao empenho por atingir um conjunto de “indicadores de produtividade em pesquisa”, em uma verdadeira “ditadura da contagem da produção”, em que escritos são feitos para serem publicados (e transformados em estatísticas), e não primordialmente para comunicarem reflexões e serem lidos.

O alerta de Lindsay Waters é convergente com a ácida ironia do físico Wolfgang Pauli: “não me importo com seu pensamento lento. O que me importa é você publicar mais rápido do que pode pensar”. A vida e a obra de Larissa dão testemunho às novas gerações de pesquisadores, estudiosos e acadêmicos que uma outra atitude é possível e fecunda.

Não podemos deixar de expressar nossa alegria em viabilizar essa tradução brasileira de trabalhos de Larissa. Que esse pequeno livro sirva de ponte para renovados diálogos e encontros é nosso desejo!

Roberto Bartholo

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